Minha nossa - disse Pru. - Aí está de novo. O arcano nove. Isso é estranho demais. Cee Cee e eu trocamos olhares. Estranho não era exatamente a palavra.
Não que fosse desagradável. Longe disso. Pelo menos na minha opinião. Pru Webb, a tia de Cee Cee, era meio estranha. Isso certamente era verdade.
Mas sua casa era muito aromática com todas as velas perfumadas que mantinha acesas em toda parte. E ela havia se mostrado uma anfitriã muito solícita, dando a cada um de nós um copo de limonada feita em casa. Era uma pena, claro, que tivesse esquecido de pôr açúcar, mas esse tipo de esquecimento parece não ser incomum para alguém tão em contato com o mundo dos espíritos. Tia Pru havia nos informado que seu mentor, o paranormal mais poderoso da Costa Oeste, freqüentemente não conseguia lembrar do próprio nome, porque estava canalizando muitas outras almas.
Mesmo assim, até então nossa visitinha não fora particularmente esclarecedora. Eu fiquei sabendo, por exemplo, que, segundo as linhas na palma da minha mão, ia crescer e ter um trabalho desafiador no campo da pesquisa médica (É! Nem no dia de São Nunca). Cee Cee, enquanto isso, ia ser estrela de cinema, e Adam astronauta.
Sério. Astronauta.
Admito que fiquei meio ciumenta com a carreira deles, que eram muito mais empolgantes do que a minha, mas tentei controlar a inveja.
O que eu tinha parado de tentar controlar - e Cee Cee aparentemente também - era Adam. Ele contou à tia Pru, antes que eu pudesse impedi-lo, sobre o meu "sonho", e agora a pobre mulher estava tentando - de graça, veja bem - invocar o espírito de Deirdre Fiske usando cartas de tarô e cânticos entoados baixinho.
Só que não parecia estar funcionando, porque cada vez que ela começava a virar as cartas, recebia a mesma.
O arcano nove.
Aparentemente isso a estava perturbando. Sacudindo a cabeça, tia Pru - foi como ela disse para eu chamá-la - juntou todas as cartas de novo numa pilha, embaralhou e, fechando os olhos, puxou uma do meio e colocou virada para cima, para nós vermos.
Então abriu os olhos, olhou para ela e disse:
- De novo! Isso não faz o menor sentido.
Ela não estava brincando. A idéia de alguém invocar um fantasma com um baralho não fazia qualquer sentido... pelo menos para mim. Eu não podia invocá-los nem mesmo se ficasse parada gritando o nome deles - coisa que eu tinha tentado, acredite - e eu sou mediadora. Meu serviço é me comunicar com os mortos.
Mas os fantasmas não são cachorros. Não vêm quando você chama. Veja o meu pai, por exemplo. Quantas vezes eu quis que ele aparecesse - até precisei dele? Ele aparecia, certo: três, quatro semanas depois. Os fantasmas são muito irresponsáveis na maior parte das vezes.
Mas eu não podia explicar exatamente à tia de Cee Cee que o que ela estava fazendo era uma enorme perda de tempo... e que enquanto ela estava ali sentada fazendo isso, havia um gato tentando comer minha bolsa no carro de Adam.
Ah, e aquele cara que podia ou não ser um vampiro - mas que certamente era responsável pelo desaparecimento de um bocado de gente - estava solto por aí. Eu só podia ficar ali sentada com um grande sorriso estúpido na cara, fingindo que me divertia, enquanto na verdade estava doida para ir para casa e telefonar ao padre Dom, para a gente deduzir o que faria com Red Beaumont.
- Minha nossa - disse tia Pru. A tia de Cee Cee era muito bonita. Albina como a sobrinha, seus olhos eram violetas. Usava um vestido florido da mesma cor. O contraste que o cabelo comprido e branco fazia com o roxo do vestido era espantoso - e legal. Eu sabia que Cee Cee provavelmente iria ficar igual à tia Pru algum dia, isto é, assim que se livrasse do aparelho dos dentes e da gordurinha infantil.
Motivo pelo qual Cee Cee provavelmente não a suportava.
- O que isso pode significar? - murmurou tia Pru consigo mesma. - O eremita. O eremita.
Pelo que pude ver, parecia haver um eremita na carta que tia Pru ficava virando e revirando. E não era um caranguejo eremita, e sim do tipo velho-morando-numa-caverna. Eu não sabia o que um eremita teria a ver com a Sra. Fiske, mas uma coisa eu sabia: estava de saco cheio.
Mais uma vez - disse tia Pru, lançando um olhar cauteloso na direção de Cee Cee. Cee Cee havia deixado claro que a gente não tinha o dia inteiro. Era eu que mais precisava ir para casa, óbvio. Tinha de estar presente num jantar dos Ackerman. Noite de frango kung pao. Se me atrasasse, mamãe iria me matar.
Hmm - falei. - Sra. Webb?
Tia Pru, querida.
Certo. Tia Pru. Posso usar o seu telefone?
Claro. - Tia Pru nem olhou para mim. Estava ocupada demais canalizando.
Saí da sala meio escura e fui para o corredor. Havia um telefone de disco, antiquado, numa mesinha. Disquei meu número - depois de uma breve luta para lembrá-lo, já que só o tinha há algumas semanas - e quando Dunga atendeu, pedi para ele dizer a mamãe que não tinha esquecido do jantar e que estava indo para casa.
Dunga informou, não muito gentilmente, que estava na outra linha, e que como não era meu secretário social, não tinha intenção de dar nenhum recado meu, que eu deveria ligar depois de novo.
- Com quem você pensa que está falando? - perguntei.
- Com Debbie, sua escrava sexual?
Dunga respondeu desligando na minha cara. Algumas pessoas não têm senso de humor.
Desliguei o telefone e estava ali parada, olhando um calendário zodiacal e imaginando se estaria em algum tipo de zona celestial da sorte - considerando o que tinha acontecido com Tad e coisa e tal - quando alguém parado junto de mim falou numa voz irritada:
- Bem? O que você quer?
Pulei quase meio metro. Juro, eu faço isso desde que nasci, mas não consigo me acostumar. Preferia ter outro poder secreto - tipo a capacidade de fazer divisões compridas na cabeça - do que essa droga de mediação, juro.
Girei, e ali estava ela, parada junto à porta de tia Pru, mal ajambrada com um chapéu de jardinagem e luvas.
Não era a mesma mulher que vinha me acordando à noite. Tinham corpos semelhantes, eram pequenas e magras, com o mesmo corte de cabelo de gnomo, mas essa mulher tinha facilmente uns sessenta anos.
- Bem? - Ela me encarou. - Eu não tenho o dia inteiro.
Por que você me chamou?
Encarei a mulher, espantada. A verdade é que eu não a tinha chamado. Não tinha feito nada, a não ser ficar ali parada imaginando se Tad ainda iria gostar de mim quando Mercúrio retrocedesse para Aquário.
Sra. Fiske? - sussurrei.
É, sou eu. - A velha me olhou de cima a baixo. – Foi você que me chamou, não foi?
Hmm... - Eu olhei para a sala onde ainda podia ouvir tia Pru dizendo, aparentemente para si mesma, já que nem Cee Cee nem Adam poderiam ter entendido do que ela estava falando:
Mas o arcano nove não tem orientação...
Virei-me de volta para a Sra. Fiske.
Acho que sim - falei.
A Sra. Fiske me olhou de cima a baixo. Estava claro que não gostava muito do que via.
- Bem? - disse ela. - O que é?
Por onde começar? Aqui estava a mulher que tinha desaparecido e fora considerada morta há quase tanto tempo quanto eu estava viva. Olhei de novo para tia Pru e os outros, só para garantir que não estivessem espiando na minha direção, e sussurrei:
- Eu só precisava saber, Sra. Fiske... O Sr. Beaumont. Ele matou a senhora, não foi?
De repente a Sra. Fiske não estava mais tão irritada. Seus olhos, que eram muito azuis, se fixaram nos meus. Ela disse chocada:
- Meu Deus. Meu Deus, finalmente... alguém sabe. Alguém finalmente sabe.
Estendi a mão para encostá-la de um jeito tranqüilizador no braço dela.
- Sim, Sra. Fiske. Eu sei. E vou impedir que ele machuque mais alguém. A Sra. Fiske afastou minha mão e me olhou de soslaio.
- Você? - Ela ainda estava perplexa, mas agora de um modo diferente. Percebi que modo era esse na hora em que ela explodiu numa gargalhada. Você vai impedi-lo? - Ela continuou rindo. - Você é... você é uma garotinha!
Não sou uma garotinha. Sou uma mediadora.
Mediadora? - Para minha surpresa, a Sra. Fiske jogou a cabeça para trás e riu mais ainda. - Uma mediadora. Ah, bom, isso melhora tudo, não é?
Queria dizer que não me importava com seu tom de voz, mas a Sra. Fiske não deu chance.
- E você acha que pode impedir Beaumont? Querida, você tem muito a aprender.
Não achei isso exatamente gentil. Falei:
Olha, moça, eu posso ser nova, mas sei o que estou fazendo. Agora só diga onde ele escondeu o seu corpo e...
Você é maluca? - A Sra. Fiske finalmente parou de rir.
Agora balançou a cabeça. - Não resta nada de mim. Beaumont não é amador, você sabe. Ele se certificou de que não houvesse erros. E não houve. Você não vai achar nem um fiapo de prova para implicá-lo. Acredite. O sujeito é um monstro. Um verdadeiro bebedor de sangue. - Então suas feições endureceram. - Ainda que não seja pior do que os meus filhos. Vender minha terra para aquele sanguessuga! Escute, você. Você é uma mediadora. Dê aos meus filhos o seguinte recado: diga que eu espero que eles queimem no...
- Ei, Suze. - Cee Cee apareceu de repente no corredor. - A bruxa desistiu. Ela tem de consultar o guru, porque continua sem conseguir nada.
Lancei um olhar frenético para a Sra. Fiske. Espera! Eu ainda não tinha tido chance de perguntar como ela havia morrido! Red Beaumont era mesmo um vampiro? Tinha sugado toda a vida dela? Ela queria dizer que ele era literalmente um bebedor de sangue?
Mas era tarde demais. Cee Cee, ainda vindo na minha direção, atravessou direto o que me parecia uma senhora pequenina e velha com chapéu e luvas de jardinagem. E a velhinha estremeceu indignada.
Não!, eu quis gritar, não vá!
- Argh - disse Cee Cee com um ligeiro tremor enquanto se livrava do resto da aura da Sra. Fiske. - Anda. Vamos sair daqui. Este lugar me dá arrepios.
Eu não fiquei sabendo qual era o recado da Sra. Fiske para os filhos, mas tinha uma idéia. A velha, com um último olhar enojado para mim, desapareceu. No momento em que tia Pru chegava ao corredor, com ar de quem se desculpava.
- Sinto muito, Suze. Eu tentei mesmo, mas a corrente Santa Ana esteve particularmente forte este ano, de modo que houve muita interferência nos caminhos espirituais que eu utilizo normalmente.
Talvez isso explicasse por que eu tinha conseguido invocar o espírito da Sra. Fiske. Será que eu poderia fazer isso de novo, imaginei, e dessa vez me lembrar de perguntar exatamente como Red Beaumont a havia matado?
Enquanto voltávamos ao carro, Adam pareceu imensamente satisfeito consigo mesmo.
- E então, Suze? - perguntou ele enquanto mantinha aberta a porta do carona para nós duas. - Já conheceu alguém assim antes?
Claro que sim. Sendo um ímã para almas dos mortos infelizes, eu tinha conhecido gente de todo tipo, inclusive sacerdotes incas, vários curandeiros e até uma colonizadora que fora queimada como bruxa.
Mas como isso parecia tão importante para ele, sorri e disse:
- Não exatamente. - O que era verdade, de certa forma.
Cee Cee não pareceu tão empolgada com o fato de um dos membros de sua família ter conseguido dar tanta diversão ao garoto por quem ela - vamos encarar os fatos - tinha uma paixonite enorme. Ela se arrastou para o banco de trás e ficou carrancuda. Cee Cee era uma aluna que só tirava nota máxima e não acreditava em nada que não pudesse ser provado cientificamente, especialmente nada que tivesse a ver com outra vida... o que tornava meio problemático o fato de seus pais a terem posto numa escola católica.
Mas, para mim, mais problemático do que a falta de fé de Cee Cee ou minha recém-descoberta capacidade de invocar espíritos à vontade era o que eu iria fazer com aquele gato. Enquanto estávamos na casa de tia Pru o bicho tinha conseguido abrir um buraco no canto da bolsa e agora estava enfiando uma pata por ele, golpeando às cegas com garras totalmente esticadas qualquer coisa que chegasse ao seu alcance - principalmente eu, já que era eu que estava segurando a bolsa. Adam, não importando o quanto eu tenha implorado, não quis levar o gato para casa e Cee Cee apenas riu quando eu pedi. Eu sabia que de jeito nenhum ia convencer o padre Dominic a deixá-lo viver na reitoria: a irmã Ernestine nunca iria permitir.
O que me deixava apenas uma alternativa. E eu realmente, realmente não estava satisfeita com ela. Além do que o gato tinha feito no interior de minha bolsa - Só Deus sabe o que faria no meu quarto -, havia o fato de que eu tinha quase certeza de que os felinos eram proibidos no lar dos Ackerman devido à sensibilidade delicada de Dunga ao pêlo deles.
De modo que eu ainda tinha o gato estúpido, além de uma bolsa do Safeway contendo uma caixa de areia, a areia em si e umas vinte latas de Fancy Feast, quando Adam parou na minha casa para me deixar.
- Ei - disse ele em tom de apreciação enquanto eu lutava para sair do carro. - Quem está visitando vocês? O papa?
Olhei para onde ele estava apontando... e meu queixo caiu.
Estacionada em nossa entrada de veículos havia uma enorme limusine preta, do tipo que estivera em minha fantasia de ir ao baile de formatura com Tad.
- Ahn - falei, batendo a porta do fusca de Adam. – Vejo vocês, pessoal.
Subi correndo a entrada de veículos levando Spike, decidido a não ser esquecido só porque tinha sido fechado numa sacola de livros, rosnando e cuspindo o tempo todo. Enquanto eu subia os degraus da varanda, ouvi o barulho de vozes na sala de estar.
E quando passei pela porta da frente e vi a quem as vozes pertenciam... bem, Spike chegou bem perto de virar panqueca de gatinho, tamanha a força com que espremi a bolsa contra o peito.
Porque sentado ali, batendo papo amigavelmente com minha mãe e segurando uma xícara de chá, estava ninguém menos do que Thaddeus "Red" Beaumont.
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