Capítulo 14 > (O Arcano Nove)

Bem, em certo Tad não era exatamente meu namorado e eu tinha acreditado honestamente que seu pai era um vampiro.
Mas sabe de uma coisa? Não era. E eu tinha matado o cara.
Até que ponto isso me tornaria impopular?
E uma pequena bolha de histeria começou a subir na minha garganta. Dava para ver que eu ia gritar. Realmente não queria. Mas ali estava eu, numa sala com um garoto inconsciente e seu pai psicopata, cujo coração eu tinha acabado de atravessar com um lápis n° 2. Eu não conseguia deixar de ficar pensando: sabe, eles vão me chutar direitinho do diretório estudantil...
Qual é. Você também teria começado a gritar.
Mas nem bem enchi o pulmão de ar e estava me preparando para soltá-lo num berro que com toda a certeza traria correndo Yoshi e todos aqueles garçons que tinham servido o jantar e alguém parado atrás de mim perguntou incisivo:
- O que aconteceu aqui?
Girei. E ali, parecendo perplexo, estava Marcus, o secretário de Red Beaumont.
Falei a primeira coisa que me veio à cabeça, que foi:
- Eu não queria fazer isso, juro. Só que ele estava me apavorando, por isso eu enfiei o lápis nele.
Marcus, vestido como da última vez em que eu o tinha visto, de terno e gravata, veio rapidamente para mim. Não para o chefe, que estava esparramado no chão. Mas para mim.
- Você está bem? - perguntou, me agarrando pelos ombros e olhando meu corpo de cima a baixo... mas principalmente meu pescoço. - Ele machucou você?
O rosto de Marcus estava branco de ansiedade.
- Eu estou bem - falei. Estava começando a sentir um nó na garganta. - É com o seu chefe que você deveria estar preocupado... - Meu olhar foi na direção de Tad, ainda de cara para baixo no sofá. - Ah, e o filho dele. Ele envenenou o filho.
Marcus foi até Tad e abriu uma das pálpebras. Depois se curvou e ouviu a respiração dele.
- Não - falou quase para si mesmo. - Não envenenou.
- Só drogou.
- Ah - falei com um riso nervoso. - Ah, então tudo bem.
Que diabo estava acontecendo aqui? Esse cara era de verdade?
Parecia. Obviamente estava muito preocupado. Empurrou a mesa de centro para fora do caminho, depois se curvou e virou o chefe.
Tive de desviar o olhar. Achei que não suportaria ver aquele lápis se projetando do peito do Sr. Beaumont. Quero dizer, eu tinha acertado fantasmas no peito com todo tipo de coisas - picaretas, facas de açougueiro, paus de barraca, qualquer coisa que estivesse à mão. Mas o negócio com os fantasmas é que... bem, eles já estão mortos. O pai de Tad estava vivo quando eu cravei o lápis nele.
Ah, meu Deus, por que eu deixei o padre Dom colocar aquela estúpida idéia de vampiro na minha cabeça? Que tipo de idiota acredita em vampiros? Eu devia estar pirada.
- Ele está... - eu mal podia desembuchar a pergunta.
Tinha de manter o olhar em Tad porque, se olhasse para o pai dele, iria botar para fora todo aquele cordeiro e a salada mista. Mesmo na minha ansiedade não pude deixar de ver que, inconsciente, Tad ainda era um gato. Certamente não estava babando nem nada. - Ele está morto?
E pensei que mamãe ficaria furiosa se descobrisse sobre a coisa de ser mediadora. Você imagina como ela ficaria furiosa se descobrisse que eu sou uma assassina adolescente?
A voz de Marcus pareceu surpresa.
- Claro que ele não está morto. Só desmaiou. Você deve ter dado um tremendo susto nele.
Espiei na direção de Marcus. Ele tinha se levantado e estava parado ali, com meu lápis na mão. Desviei o olhar rapidamente, com o estômago revirando.
- Foi isso que você usou nele? - perguntou Marcus numa voz esquisita. Quando assenti em silêncio, ainda não querendo olhar na sua direção para o caso de ter um vislumbre do sangue do Sr. Beaumont, ele disse: - Não se preocupe. Não entrou muito fundo. Você acertou o esterno.
Meu Deus. Foi ótimo Red Beaumont não ser um vampiro de verdade, caso contrário eu estaria seriamente encrencada. Nem era capaz de enfiar uma estaca direito num cara. Realmente devia estar perdendo o jeito.
Como aconteceu, tudo que consegui foi bancar a completa panaca. Ainda sentindo aquela bolha de histeria no peito, a qual culpei pelo meu balbuciar incoerente, falei:
- Ele envenenou Tad, depois me agarrou, e eu pirei de vez...
Marcus deixou o corpo inconsciente do chefe e pôs a mão no meu braço, num gesto reconfortante.
- Shh, eu sei, eu sei - falou numa voz tranqüilizadora.
- Eu sinto muito, de verdade - continuei arengando. - Mas ele tinha aquela coisa com a luz do sol, depois não quis comer e quando sorriu tinha aqueles dentes pontudos, e eu realmente pensei...
-... que ele era um vampiro.
Para minha surpresa, Marcus terminou a frase.
- Eu sei Srta. Simon.
Sinto vergonha de admitir, mas a verdade é que eu estava à beira de abrir o berreiro. Mas a admissão de Marcus me fez esquecer toda a ânsia de desmoronar em soluços enormes.
- Você sabe - ecoei, olhando-o incrédula.
Ele assentiu. Sua expressão era séria.
- É o que os médicos dele chamam de fixação. Ele está tomando medicamentos para isso e na maior parte dos dias fica bem. Mas algumas vezes, quando não temos cuidado, ele deixa de tomar uma dose e... bem, você mesma pode ver os resultados. Ele se convence de que é um vampiro perigoso que matou dúzias de pessoas...
- É. Ele mencionou isso também. - E também tinha parecido bastante perturbado.
- Mas eu garanto, Srta. Simon, que de modo algum ele é uma ameaça à sociedade. Na verdade ele é bem inofensivo... nunca fez mal a ninguém.
Meu olhar foi na direção de Tad. Marcus deve ter notado, porque acrescentou rapidamente:
- Bem, só digamos que ele nunca causou nenhum dano permanente.
Dano permanente? Seu próprio pai lhe dar um sonífero não era considerado dano permanente por aqui? E como isso explica a Sra. Fiske e todos aqueles ambientalistas desaparecidos?
- Nem sei como pedir desculpas a você, Srta. Simon - estava dizendo Marcus. Ele passou o braço em volta de mim e estava me afastando do sofá, e, veja só, para a entrada. - Sinto muito você ter testemunhado essa cena perturbadora.
Olhei por cima do ombro. Atrás de mim Yoshi tinha aparecido. Ele virou Tad de modo a não ficar com a cara esmagada no sofá, depois colocou um cobertor em cima dele enquanto dois outros caras levantavam o Sr. Beaumont. Ele murmurou alguma coisa e girou a cabeça.
Não estava morto. Definitivamente não estava morto.
- Claro, não preciso dizer que nada disso teria acontecido... - Marcus não parecia tão pedindo desculpas quanto antes - se você não tivesse pregado aquela pequena peça nele ontem à noite. O Sr. Beaumont não é um homem bem de saúde. Ele se agita muito facilmente. E uma coisa que o deixa particularmente agitado é qualquer menção a coisas ocultas. O suposto sonho que você descreveu a ele só serviu para provocar outro ataque da doença.
Eu senti que tinha de, pelo menos, tentar me defender. Por isso falei:
- Bom, como é que eu iria saber disso? Quero dizer, se ele tende a ter esses ataques, por que não o mantêm trancado?
- Porque não estamos na Idade Média, moça.
Marcus tirou o braço dos meus ombros e ficou me olhando muito seriamente.
- Hoje em dia os médicos preferem tratar as pessoas que sofrem de desordens como a do Sr. Beaumont com medicação e terapia, em vez de mantê-lo isolado da família. O pai de Tad pode viver e trabalhar normalmente, até mesmo bem, desde que menininhas que não sabem o que é bom para elas fiquem com o nariz longe dos negócios dele.
Argh! Essa foi má. Eu tinha de lembrar a mim mesma que não era a bandida aqui. Quero dizer, não era eu que andava por aí insistindo em que era um vampiro.
E não tinha feito um punhado de gente desaparecer porque elas haviam entrado no meu caminho de construir outro shopping.
Mas mesmo enquanto pensava isso, imaginei se seria verdade. Quero dizer, o pai de Tad não parecia ter engrenagens suficientes na cabeça para organizar uma coisa tão sofisticada quanto seqüestro e assassinato. Ou meu esquisitômetro estava pifado ou havia alguma coisa seriamente errada aqui... e uma mera "fixação" não explicava isso. E quanto à Sra. Fiske, pensei. Ela estava morta e o Sr. Beaumont a havia matado - ela mesma disse. Marcus estava obviamente tentando diminuir a seriedade da psicose de seu patrão.
Estaria mesmo? Um homem que desmaiava só porque uma garota o cutucava com um lápis não parecia exatamente do tipo que realizaria com sucesso um assassinato. Seria possível que ele não estivesse sofrendo de sua "desordem" atual quando apagou a Sra. Fiske e aquelas outras pessoas?
Eu ainda estava tentando solucionar isso tudo quando Marcus, que tinha me acompanhado à porta da frente, pegou meu casaco. Ele me ajudou a vesti-lo e disse:
- Aikilu vai levar você para casa, Srta. Simon.
Olhei em volta e vi outro japonês, todo vestido de preto, perto da porta da frente. Ele fez uma reverência educada para mim.
- E vamos deixar uma coisa clara.
Marcus ainda estava falando comigo em tom paternal. Parecia irritado, mas não realmente furioso.
- O que aconteceu aqui esta noite foi muito estranho, é verdade. Mas ninguém se machucou...
Ele deve ter notado meu olhar ir na direção de Tad, ainda desmaiado no sofá, já que acrescentou:
- Pelo menos não se machucou seriamente. Por isso acho que seria bom você ficar de boca fechada com relação ao que viu aqui. Porque se decidir contar a alguém o que viu – Marcus continuou de um modo que quase poderia ser chamado de amigável - claro que eu terei de contar aos seus pais sobre aquela peça infeliz que você pregou no Sr. Beaumont... e fazer uma denúncia formal de agressão contra você, claro.
Minha boca se abriu. Eu percebi isso, depois de um segundo, e fechei-a de novo.
- Mas ele... - comecei.
Marcus me interrompeu:
- Foi mesmo? - Ele me olhou de modo significativo. - Foi mesmo? Não há testemunhas desse fato, além de você.
- E você realmente acredita que alguém vai aceitar a palavra de uma pequena delinqüente juvenil como você contra a de um empresário respeitável?
O sacana tinha me pego, e sabia disso.
Ele sorriu para mim, com um brilhozinho triunfante no olho.
- Boa noite, Srta. Simon.
Provando de novo que a vida de mediadora não é lá essas coisas: eu nem pude ficar para a sobremesa.

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