Capítulo 16 > (O Arcano Nove)

Apesar de eu ter quase matado um homem naquela noite, não tive muito problema para dormir. Sério.
Bem, então eu estava cansada, certo? Olha, vamos encarar: eu tive um dia difícil.
E não que aqueles telefonemas que eu recebi logo antes de ir para a cama tenham ajudado. O padre Dominic estava totalmente furioso comigo por não ter contado antes sobre Jesse e agora Tad também parecia me odiar.
Ah, e o tio dele, Marcus? É, o possível assassino em série. Quase esqueci essa parte.
Mas, sério, o que eu deveria fazer? Quero dizer, eu sabia perfeitamente bem que o padre Dom não ficaria empolgado com o Jesse. E quanto ao Tad, bem, se meu pai tivesse me drogado, eu com certeza iria querer saber.
Eu tinha feito a coisa certa contando ao Tad.
Só que fiquei meio pensando no que aconteceria se Tad realmente fosse perguntar ao seu tio Marcus o que eu quis dizer sobre de onde vinha o dinheiro dele. Marcus provavelmente acharia que era alguma referência obscura à doença mental do pai de Tad.
Eu esperava.
Porque se ele deduzisse que eu suspeitava da verdade - você sabe, aquela coisa toda sobre ele matar qualquer um que entrasse no caminho das Indústrias Beaumont para abocanhar o máximo de propriedades disponíveis no norte da Califórnia - eu tinha a sensação de que ele não gostaria muito.
Mas até que ponto um sujeito que jogava alto como Marcus Beaumont ficaria com medo de uma garota de dezesseis anos? Quero dizer, sério. Ele não fazia idéia do negócio de mediadora, de que eu tinha falado com uma de suas vítimas e confirmado a coisa toda.
Bem, mais ou menos.
Mesmo assim, apesar de tudo isso, finalmente consegui dormir. Estava sonhando que Kelly Prescott tinha ouvido falar que eu e Tad fomos juntos ao Coffee Clutch e que, como vingança, ela estava tentando vetar a decisão de não haver um baile de primavera, quando um barulho baixo me acordou. Levantei a cabeça e forcei a vista na direção da janela.
Spike estava de volta. E tinha companhia.
Vi Jesse sentado ao lado de Spike. Para minha absoluta perplexidade o gato estava deixando que ele o acariciasse.
Aquele gato estúpido que tinha tentado me morder a cada vez que eu chegava perto estava deixando um fantasma - seu inimigo natural - acariciá-lo.
E mais, Spike parecia gostar. Estava ronronando tão alto que eu podia ouvi-lo do outro lado do quarto.
- Epa - falei, me apoiando nos cotovelos. - Isso é digno do Acredite se Quiser.
Jesse riu.
- Acho que ele gosta de mim.
- Não se ligue demais. Ele não pode ficar aqui, você sabe.
Pude jurar que Jesse ficou frustrado.
- Por quê?
- Porque Dunga é alérgico, para começar. E porque eu nem perguntei a ninguém se podia ter um gato.
- Agora a casa é sua, não só dos seus irmãos - disse Jesse dando de ombros.
- Irmãos adotivos - corrigi. Eu pensei no que ele disse, depois acrescentei: - E acho que eu ainda me sinto mais uma hóspede do que uma moradora de verdade.
- Espere um século, mais ou menos. - Ele riu mais um pouco. - E você supera isso.
- Muito engraçado. Além disso, esse gato me odeia.
- Tenho certeza que não.
- Odeia sim. Sempre que chego perto ele tenta me morder.
- Ele só não conhece você. Vou apresentá-la. - Ele pegou o gato e o apontou na minha direção. - Gato. Esta é Suzannah. Suzannah, conheça o gato.
- Spike - falei.
- Perdão?
- Spike. O nome do gato é Spike.
Jesse pôs o gato no chão e olhou horrorizado.
- É um nome horrível para um gato.
É - falei. Depois acrescentei em tom puramente casual, se é que você me entende: - Então, eu soube que você esteve com o padre Dominic.
Jesse levantou o olhar e deixou-o pousar inexpressivamente em mim.
- Por que você não contou a ele a meu respeito, Suzannah?
Engoli em seco. O que é que as pessoas fazem, ensinam aos caras esse olhar de censura ao nascer, ou algo assim? Quero dizer, todos eles parecem ter aquilo pronto. Isto é, menos Dunga.
- Olha - falei. - Eu queria contar. Só que tinha certeza de que ele ia pirar de vez. Puxa, ele é um padre. Eu não achei que ele ficaria muito empolgado em saber que eu tenho um cara, ainda que seja um cara morto, morando no meu quarto. - Tentei parecer tão preocupada quanto me sentia. - Então, é... pelo que vejo vocês dois não se deram muito bem, não foi?
- Entre seu pai e o padre - disse Jesse com ar pervertido - eu ficaria com seu pai em qualquer situação.
- Bem. Não se preocupe com isso. Amanhã só vou contar ao padre Dom sobre todas as vezes em que você salvou minha vida, e aí ele vai ter de aceitar.
Jesse claramente não acreditava que seria tão simples, se é que a careta que apareceu em seu rosto fosse indicação de alguma coisa. O triste é que ele claramente estava certo. O padre Dom não seria aplacado tão facilmente, e nós dois sabíamos.
- Olha. - Joguei as cobertas para longe e me levantei da cama, indo até o banco da janela vestida de short e camiseta. - Desculpe. Desculpe de verdade, Jesse. Eu deveria ter contado antes a ele, e apresentado vocês dois direito. A culpa é minha.
- Não é sua culpa.
- É sim. - Sentei-me ao lado dele, certificando-me que Jesse estivesse entre mim e o gato. - Quero dizer, você pode estar morto, mas eu não tenho direito de tratá-lo como se estivesse. Isso é simplesmente grosseria. Talvez o que a gente devesse fazer é você, eu e o padre Dom nos sentarmos juntos para almoçar, ou alguma coisa assim, e então ele poderá ver como você é um cara legal.
Jesse me olhou como se eu fosse uma doente mental.
- Suzannah, eu não como, lembra?
- Ah, é. Esqueci.
Spike cutucou Jesse no braço e ele levantou a mão e começou a coçar as orelhas do gato. Eu me sentia tão péssima pelo Jesse - quero dizer, pense bem: ele estava naquela casa cento e cinqüenta anos antes de eu aparecer, sem ninguém com quem conversar, ninguém - que falei subitamente:
- Jesse, se houvesse um modo de eu fazer com que você não estivesse morto, eu faria.
Ele sorriu, mas para o gato, não para mim.
- Faria?
- Num minuto - falei, e então continuei, com uma ousadia completa: - Só que, se você não estivesse morto, provavelmente não iria querer ficar comigo.
Isso o fez me olhar.
- Claro que iria.
- Não - falei examinando um dos meus joelhos nus ao luar. - Não iria. Se você não estivesse morto, estaria na faculdade ou alguma coisa assim e iria querer ficar com garotas de faculdade e não com garotas chatas, do segundo grau, como eu.
- Você não é chata.
- Ah, sim, eu sou. Você simplesmente está morto há tempo demais, não sabe das coisas.
- Suzannah, eu sei das coisas, certo?
Dei de ombros.
-Você não tem de tentar fazer com que eu me sinta melhor. Tudo bem. Eu passei a aceitar. Há umas coisas que simplesmente não dá para mudar.
- Como estar morto - disse Jesse em voz baixa.
Bem, isso certamente colocava uma surdina nas coisas. Eu estava meio me sentindo deprimida com tudo - o fato de Jesse estar morto e, apesar disso, Spike gostar mais dele do que de mim e coisas do tipo - quando de repente Jesse estendeu a mão e segurou meu queixo, quase exatamente como Tad tinha feito no carro, entre o indicador e o polegar, e virou meu rosto para ele.
E de repente as coisas começaram a parecer melhores.
Em vez de desmoronar em choque - meu primeiro instinto - eu levantei o olhar para o rosto dele. O luar que estava se filtrando no quarto através da janela se refletia nos olhos escuros e suaves de Jesse e eu podia sentir o calor de seus dedos se espalhando por mim.
Foi quando percebi que, apesar do quanto eu vinha tentando não me apaixonar por Jesse, não estava fazendo um trabalho muito bom. Dava para ver isso pelo modo como meu coração começou a martelar contra a camiseta quando ele me tocou. Meu coração não tinha feito isso quando Tad me tocou exatamente do mesmo modo.
E também dava para ver pelo modo como instantaneamente comecei a me preocupar com o fato de ele ter escolhido exatamente esse momento específico para me beijar, o meio da noite, quando fazia horas desde que eu tinha escovado os dentes e tinha certeza de que provavelmente estava com mau hálito. Não é apetitoso?
Mas nunca descobri se Jesse ficaria enojado com meu hálito - ou mesmo se realmente iria me beijar - porque naquele instante aquela mulher maluca que ficava insistindo que Red não a havia matado apareceu de repente outra vez, berrando feito uma louca furiosa.
Juro que pulei quase trinta centímetros. Ela era a última pessoa que eu esperava ver.
- Ah, meu Deus - gritei, apertando as mãos contra os ouvidos enquanto ela soltava os bichos como um alarme de detector de fumaça. - Qual é o problema?
A mulher estava usando o capuz do agasalho cinza de ginástica. Agora puxou-o para trás, e ao luar eu pude ver as lágrimas que tinham feito riscas pelas suas bochechas pálidas. Eu não podia acreditar que a havia confundido com a Sra. Fiske. Essa mulher era muitos anos mais nova e tremendamente mais bonita.
- Você não contou a ele - disse ela, entre uivos soluçantes.
Surpreendi-me.
- Contei sim.
- Não contou!
- Não, eu contei, contei de verdade. - Fiquei chocada com essa acusação injusta. - Contei a ele há dois dias. Jesse, diga a ela.
- Ela contou - garantiu Jesse à defunta.
Você imaginaria que um fantasma aceitaria a palavra de outro. Mas ela não quis aceitar. Gritou:
- Não contou! E você tem de contar a ele. Você simplesmente tem. Isso está me rasgando por dentro.
- Espere um minuto - falei. - Red Beaumont é o Red de quem você está falando, não é? Foi ele que matou você?
Ela balançou a cabeça com tanta força que o cabelo bateu nas bochechas e ficou ali, grudado à pele pelas lágrimas.
- Não. Não! Eu disse a você que Red não me matou.
- Marcus, quero dizer - emendei rapidamente. - Eu sei que não foi o Red. Ele simplesmente se culpa por isso, não é? É isso que você quer que eu diga. Que não foi culpa dele.
- Foi o irmão, Marcus Beaumont, que matou você, não foi?
- Não! - Ela me olhou como se eu fosse uma imbecil. E eu estava começando a me sentir assim. - Não Red Beaumont. Red. Red. Você conhece ele.
Eu conheço? Eu conheço alguém chamado Red? Não nesta vida.
- Olha - falei. - Eu preciso de um pouco mais de informação do que isso. Por que não começamos com as apresentações? Eu sou Suzannah Simon, certo? E você é...?
O olhar que ela me deu teria partido o coração até mesmo do mediador mais frio.
- Você sabe - disse ela com uma expressão tão ferida que eu tive de desviar o olhar. - Você sabe...
E então, quando arrisquei outro olhar em sua direção, ela sumiu de novo.
- Hmm - falei desconfortavelmente a Jesse. - Acho que eu peguei o Red errado.

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