Bem, certo, não era realmente impenetrável. Eu ainda podia ver Jesse, brilhando daquele seu jeito.
- Isso foi muito impressionante, Suzannah - disse ele olhando para Marcus que gemia.
- Obrigada - falei, satisfeita por ter obtido sua aprovação.
Isso acontecia muito raramente. Fiquei feliz por ter ouvido Mestre durante uma de suas recentes palestras sobre segurança elétrica.
Agora você crê que pode me contar exatamente o que está acontecendo aqui? - perguntou Jesse oferecendo-me a mão enquanto eu descia do aquário. - Aquele ali no sofá é o seu amigo Tad?
- Ahã. - Antes de descer eu me abaixei, procurando o fio no chão. - Venha aqui, certo, para eu poder... - O brilho de Jesse, por mais sutil que fosse, logo revelou o que eu estava procurando. - Não importa. - Puxei o fio de volta para o aquário. - Só para o caso de eles religarem o disjuntor antes de eu sair daqui - falei, levantando-me e saindo do aquário.
- Eles quem? Suzannah, o que está acontecendo aqui?
- É uma longa história. E não vou ficar aqui para contar. Quero estar longe quando ele tiver acordado – assenti para Marcus, que agora estava gemendo mais alto. - Ele tem dois compadres de pescoço grosso esperando por mim, também, para o caso... - parei.
Jesse me olhou interrogativamente.
- O quê?
- Está sentindo esse cheiro?
Pergunta idiota. Quero dizer, afinal de contas, o cara está morto. Será que os fantasmas sentem cheiro? Aparentemente sim, porque ele disse:
- Fumaça.
Apenas uma palavra, mas ela fez um arrepio descer pela minha coluna. Ou isso ou um peixe tinha entrado no meu suéter.
Olhei para o aquário. Para além dele pude ver um brilho rosado emanando da sala contígua. Como eu havia suspeitado, ao dar um gigantesco choque elétrico em Marcus eu tinha conseguido provocar uma fagulha no painel de circuitos. Aparentemente o fogo se espalhou para as paredes em volta. Dava para ver as primeiras línguas minúsculas de chamas laranja saltando de trás do lambri.
- Fantástico - falei. O elevador era inútil sem eletricidade. E, como eu sabia muito bem, não havia outra saída da sala.
Mas Jesse não era tão derrotista quanto eu.
- As janelas - disse ele, e correu para elas.
- Não adianta. - Eu me encostei na mesa do Sr. Beaumont e peguei o telefone interno. Desligado, como eu esperava. - Elas são pregadas.
Jesse olhou para mim por cima do ombro. Pareceu achar divertido.
- E daí? - perguntou.
- E daí - eu bati com o fone. - Pregadas, Jesse. Tipo impossível de abrir.
- Para você, talvez. - Ao mesmo tempo em que dizia, os postigos de madeira perto da janela mais próxima começaram a tremer malignamente como se sopradas por um vendaval invisível. - Mas não para mim.
Olhei impressionada.
- Que coisa, moço - falei. - Eu tinha esquecido dos seus super-poderes.
O olhar de Jesse passou de divertido para confuso.
- Meus o quê?
- Ah. - Parei com a imitação que eu estava fazendo de um garoto de um episódio do Superman.
- Não faz mal.
Acima do som de pregos gritando como se fossem apanhados na zona de sucção de um tornado classe 5, ouvi pessoas gritando. Olhei para o elevador. Os capangas, aparentemente preocupados com o bem-estar do patrão, estavam berrando o nome dele para dentro do poço.
Acho que não podia culpá-los. A fumaça ia enchendo constantemente a sala. Eu pude ouvir pequenas erupções agora enquanto substâncias químicas - provavelmente de natureza perigosa - usadas para manter o aquário do Sr. Beaumont explodiam em chamas no cômodo ao lado. Se não saíssemos logo, eu tinha a sensação de que estaríamos todos inalando alguns vapores bastante tóxicos.
Felizmente naquele momento os postigos voaram, primeiro numa e depois em outra janela, com toda a força como se um furacão as tivesse subitamente arrancado. Blam! E depois blam de novo. Eu nunca tinha visto algo assim, nem mesmo no Discovery Channel.
A luz cinzenta entrou. Percebi que ainda estava chovendo lá fora.
Não importava. Acho que nunca fiquei tão feliz em ver o céu, mesmo estando com nuvens escuras daquele jeito. Corri para a janela mais próxima e olhei para fora, forçando a vista por causa da chuva.
Vi que estávamos no último andar da casa. Abaixo de nós ficava o pátio...
E a piscina.
Os gritos no poço do elevador estavam mais fortes. Parecia que quanto mais densa ficava a fumaça, mais frenéticos os capangas se tornavam. Que Deus não permitisse que um deles ligasse para o 911. Mas, considerando as escolhas profissionais que tinham feito, esse número provavelmente não tinha muito apelo para eles.
Medi a distância entre onde eu estava e a parte funda da piscina.
- Não pode ter mais de seis metros. - Observando meus cálculos, Jesse assentiu para Marcus. - Vá você. Eu cuido dele. - Seus olhos escuros se viraram para o poço do elevador. - E deles, se fizerem algum progresso.
Não perguntei o que ele queria dizer com "cuido". Não precisava. A luz perigosa em seus olhos dizia tudo.
Olhei para Tad. Jesse acompanhou meu olhar, depois revirou os olhos, onde a luz perigosa tinha se extinguido. Ele murmurou alguma coisa em espanhol.
- Bem, eu não posso simplesmente deixá-lo aqui - falei.
- Não.
E foi assim que, alguns segundos depois, apoiado por mim mas transportado pela ligação telecinética de Jesse, Tad terminou empoleirado no parapeito de uma das janelas que Jesse tinha arrombado para mim.
O único modo de colocar Tad na piscina - e em segurança - era jogá-lo da janela. Esse já era um empreendimento suficientemente arriscado sem ter um inferno chamejando na sala ao lado, e assassinos de aluguel descendo. Eu tinha de me concentrar. Não queria nada malfeito. E se eu errasse e ele batesse no pátio? Tad podia quebrar o pescoço cheio de erupção de sumagre venenoso.
Mas eu não tinha muita escolha. Era transformá-lo numa possível panqueca ou deixá-lo virar churrasco de verdade. Optei pela possível panqueca, pensando que era mais provável ele se curar de um crânio rachado do que de queimaduras de terceiro grau a tempo para o baile de formatura e, depois de mirar do melhor modo possível, soltei-o. Ele caiu para trás, como um homem rã mergulhando da lateral de um barco, girando uma vez no céu e fazendo o que Dunga chamaria de um mortal invertido bem sinistro (Dunga é um ávido praticante de snowboard - ainda que sem talento).
Felizmente o mortal invertido sinistro de Tad terminou com ele flutuando de costas na parte funda da piscina de seu pai.
Claro, para garantir que ele não se afogasse - pessoas inconscientes não são os melhores nadadores - eu pulei em seguida... mas não antes de dar uma última olhada em volta.
Marcus finalmente ia começando a recuperar a consciência. Estava tossindo um pouco por causa da fumaça e espadanando na água dos peixes. Jesse estava acima dele, olhando sério.
- Vá, Suzannah - disse ele quando notou que eu tinha hesitado.
Assenti. Mas ainda havia uma coisa que eu precisava saber.
- Você não vai... - Eu não queria, mas tinha de perguntar. - Você não vai matá-lo, vai?
Jesse pareceu tão incrédulo como se eu tivesse perguntado se ele ia servir uma fatia de torta de queijo a Marcus. Falou:
- Claro que não. Vá.
Fui.
A água estava quente. Era como pular numa banheira gigante. Quando nadei até a superfície - o que, por sinal, não era exatamente fácil com botas - fui rapidamente para perto de Tad.
E descobri que a água o havia reanimado. Ele estava espadanando, confuso e tomando grandes goles de água. Bati em suas costas algumas vezes e o guiei até a beira da piscina, à qual ele se agarrou agradecido.
S... Sue - engasgou ele, perplexo. - O que você está fazendo aqui? - Então notou minha jaqueta de couro. – E por que não está usando roupa de banho?
- É uma longa história.
Depois disso ele pareceu ainda mais confuso, mas tudo bem. Achei que, com tanta coisa com a qual ele teria de lidar - seu pai sendo candidato ao Prozac, o tio um assassino em série - ele não precisava de todos os detalhes gosmentos imediatamente. Em vez disso guiei-o até a parte rasa. Só estávamos ali há um minuto quando o Sr. Beaumont abriu a porta deslizante e saiu.
- Crianças - disse ele. Estava usando um roupão de seda e chinelos. Parecia muito empolgado. - O que estão fazendo nessa piscina? Há um incêndio! Saiam da casa imediatamente.
Ao mesmo tempo em que ele dizia isso eu pude ouvir, à distância, o uivo de uma sirene. O corpo de bombeiros estava a caminho. Alguém tinha telefonado para o 911.
- Eu avisei ao Marcus sobre as ligações elétricas na minha sala - disse o Sr. Beaumont, enquanto estendia uma grande toalha fofa para Tad. - Eu tinha a sensação de que havia um defeito. Meu telefone nunca fazia ligações externas.
Ainda de pé na água que ia até a cintura, acompanhei o olhar do Sr. Beaumont e me vi olhando para a janela de onde eu tinha pulado. A fumaça saía dela. O incêndio parecia contido naquela parte da casa, mas mesmo assim parecia bastante ruim. Imaginei se Marcus e seus capangas teriam saído a tempo.
E então alguém subiu na janela e olhou para mim.
Não era Marcus. E também não era Jesse, se bem que essa pessoa tivesse uma luminosidade reveladora.
Era alguém que acenava alegre para mim.
A Sra. Deirdre Fiske.
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