Capítulo 1 > (Assombrado)

- Bem, bem, bem - disse uma voz claramente masculina atrás de mim. - Vejam se não é Suzannah Simon.
Olha, não vou mentir para você. Quando um cara bonito fala comigo (e pela voz do cara dava para saber que ele era um gato; a autoconfiança daquele bem, bem, bem, o modo acariciante com que disse meu nome) eu presto atenção. Não posso evitar. Afinal de contas sou uma garota de 16 anos. Minha vida não pode girar inteiramente em volta da última estampa de miniblusa da Lilly Pulitzer's e de qualquer inovação que Bobbi Brown tenha feito no mundo do delineador labial que não sai.
Então vou admitir que, mesmo tendo namorado - ainda que namorado seja uma palavra meio otimista para ele - quando me virei para ver o gostosão que estava falando comigo, dei uma leve sacudida no cabelo. Por que não? Quero dizer, considerando todo o produto que passei nele naquela manhã, em homenagem ao primeiro dia da décima primeira série (para não mencionar a névoa marinha que costuma transformar minha cabeça numa confusão encaracolada), meu penteado estava excepcionalmente bom.
Só quando tinha dado uma sacudida na velha juba castanha eu me virei e vi que o gato que tinha dito meu nome não era alguém de quem eu gostasse muito.
De fato você pode dizer que tenho motivos para morrer de medo dele.
Acho que ele pôde ler o medo nos meus olhos - cuidadosamente maquiados naquela manhã com uma combinação nova em folha de sombras chamadas Bruma Café - porque o sorriso que se abriu em seu rosto bonito era ligeiramente torto num dos cantos.
- Suze - disse ele num tom brincalhão. Nem a névoa podia embotar as luzes brilhantes em seu cabelo escuro, encaracolado e revolto. Os dentes eram de um branco ofuscante em contraste com o bronzeado de jogar tênis. - Aqui estou eu, nervoso porque sou novo na escola, e você nem me diz oi! Isso é jeito de tratar um velho amigo?
Continuei a encará-lo, perfeitamente incapaz de falar. A gente não pode falar, claro, quando está com a boca seca como... bem, como o prédio de tijolos à nossa frente.
O que ele estava fazendo aqui? O que ele estava fazendo aqui?
O negócio é que eu não podia seguir meu primeiro impulso e sair gritando, fugindo dele. As pessoas tendem a falar quando vêem garotas impecavelmente embonecadas como eu fugir gritando de um gato de 17 anos. Durante todo esse tempo eu tinha conseguido esconder dos colegas de turma o meu talento incomum e não iria escancará-lo agora, mesmo que estivesse - e acredite, eu estava - morrendo de medo.
Mas se não podia fugir gritando, certamente podia passar rapidamente por ele sem dizer uma palavra, esperando que ele não reconhecesse o que a pressa realmente era: puro terror.
Não sei se o cara sentiu meu medo ou não. Mas certamente não gostou de eu bancar a indiferente para cima dele. Sua mão se estendeu quando eu tentei passar, e a próxima coisa que eu soube foi que seus dedos estavam enrolados no meu braço como um torno.
Claro que eu poderia ter puxado o braço e lhe dado um soco. Não era à toa que tinha sido chamada de Garota com Mais Probabilidade de Desmembrar Alguém na minha velha escola no Brooklyn, você sabe.
Mas queria começar esse ano com o pé direito - com Bruma Café e minha nova calça capri Club Mônaco (com um suéter cor-de-rosa que eu tinha conseguido por uma pechincha na ponta de estoque da Benetton em Paacific Grove) - e não com uma briga. E o que meus amigos e colegas de turma iriam pensar - e eles certamente notariam, já que todos estavam em volta de nós, falando um ocasional "Oi, Suze" e me elogiando pela roupa chiquérrima - se eu começasse a dar socos no aluno novo, feito uma pirada?
E havia o fato inevitável de que eu estava bastante convencida de que, se desse um soco nele, ele poderia tentar me dar um soco de volta.
De algum modo consegui achar minha voz. Só esperava que ele não notasse o quanto eu estava tremendo.
- Solta o meu braço – falei.
- Suze. - Ele ainda estava sorrindo, mas agora parecia ter um conhecimento cheio de malícia. - Qual é o problema? Você não parece muito feliz em me ver.
- Você ainda não soltou meu braço - lembrei-o. Dava para sentir o gelo de seus dedos através da manga de seda. O cara parecia ser totalmente sangue-frio, além de ter uma força sobrenatural.
Ele baixou a mão, dizendo:
- Olha, desculpe, de verdade. Pelo modo como as coisas aconteceram na última vez em que nos encontramos.
Na última vez em que nos encontramos. Instantaneamente fui transportada em pensamento para aquele corredor comprido - o que eu tinha visto freqüentemente nos sonhos. Cheio de portas de cada lado - portas que se abriam para quem-sabe-o-quê. Era como um corredor de hotel ou de um prédio de escritórios ... só que aquele corredor não existia em nenhum hotel ou prédio de escritórios conhecidos dos homens. Nem mesmo existia em nossa dimensão atual.
E Paul tinha ficado ali, sabendo que Jesse e eu não tínhamos idéia de como achar a saída, e riu. Só riu, como se fosse uma piada enorme o fato de que, se eu não voltasse logo ao meu universo, morreria, enquanto Jesse ficaria preso para sempre naquele corredor. Eu ainda podia ouvir o riso de Paul ressoando nos ouvidos. Ele tinha continuado gargalhando ... até o momento em que Jesse acertou o punho na sua cara.
Eu mal podia acreditar que isso estava acontecendo. Uma perfeita manhã de setembro em Carmel, Califórnia - o que significava, claro, uma densa camada de névoa pairando sobre tudo, mas que logo se desvaneceria para revelar um céu azul sem nuvens e um sol dourado - e eu estava ali parada na passagem coberta entre os prédios da Academia da Missão Junipero Serra, cara a cara com a pessoa que vinha assombrando meus pesadelos havia semanas.
Só que não era um pesadelo. Eu estava acordada. Sabia que estava acordada, porque nunca sonharia com meus amigos Cee Cee e Adam passando enquanto eu confrontava aquele monstro do meu passado, e dizendo "Oi, Suze", como se fosse... bem, como se fosse simplesmente o primeiro dia de volta à escola depois das férias de verão.
- Quer dizer, a parte em que você tentou me matar?? - grasnei quando Cee Cee e Adam estavam fora do alcance da audição. Dessa vez soube que Paul ouvira minha voz tremer. Soube porque ele pareceu perturbado - ainda que talvez fosse por causa da acusação. De qualquer modo ele levantou a mão grande e bronzeada e passou pelos cabelos encaracolados.
- Eu nunca tentei matar você, Suze - disse ele, parecendo meio magoado.
Ri. Não pude evitar. Meu coração estava na garganta, mas eu ri mesmo assim.
- Ah. Certo.
- Verdade, Suze. Não foi isso. Eu só ... Eu só não sou muito bom perdedor.
Encarei-o. Não importando o que dissesse, ele tinha tentado me matar. Mas pior, tinha se esforçado ao máximo para eliminar Jesse, de um modo completamente desleal. E agora estava tentando dizer que era apenas falta de esportividade?
- Não entendo - falei, balançando a cabeça. - O que você perdeu? Você não perdeu nada.
- Não, Suze? - Seu olhar se cravou no meu. Eu tinha ouvido aquela voz repetidamente nos sonhos, rindo de mim enquanto eu lutava para achar a saída de um corredor escuro e cheio de névoa, em cujas extremidades havia um precipício caindo num vácuo negro feito de nada absoluto, sobre o qual, logo antes de acordar, eu cambaleava perigosamente. Era uma voz cheia de significado oculto...
Só que eu não tinha idéia de qual seria esse significado, ou do que ele estava dando a entender. Só sabia que o cara me aterrorizava.
- Suze - disse ele com um sorriso. Sorrindo (e provavelmente zombando também) ele parecia um modelo para cuecas Calvin Klein. E não era só o rosto. Afinal de contas eu o tinha visto com calção de banho.
- Olha, não fique assim - disse ele. - É um novo ano escolar. Não podemos começar de novo?
- Não. - Eu fiquei feliz por minha voz não tremer desta vez. - Não podemos. Na verdade, você... é melhor você ficar longe de mim.
Ele pareceu achar isso tremendamente divertido.
- Ou então o que? - perguntou, com outro daqueles sorrisos que revelavam todos os dentes brancos e regulares. Um sorriso de político, pensei.
- Ou então você vai se arrepender. - a tremor tinha voltado à minha voz.
- Ah - disse ele, com os olhos escuros se arregalando de terror fingido. - Você vai botar seu namorado atrás de mim?
Esta não era uma coisa com a qual eu brincaria, se fosse ele. Jesse poderia matá-lo - e provavelmente mataria, se descobrisse que o cara tinha voltado. Só que eu não era exatamente namorada de Jesse, por isso não era realmente o serviço dele me proteger de psicopatas como aquele que estava na minha frente.
Pela minha expressão ele deve ter deduzido que nem tudo ia as mil maravilhas na Suze-e-Jesselândia, porque riu e disse:
- Então é assim. Bem, eu nunca achei de verdade que Jesse fosse o seu tipo, sabe? Você precisa de alguém um pouquinho menos...
Ele não teve chance de terminar a frase, porque naquele momento Cee Cee, que estivera seguindo Adam na direção do armário dele - mesmo nós tendo jurado uma à outra na noite anterior, pelo telefone, que não iríamos começar o ano andando atrás dos garotos - voltou para perto nós, com o olhar fixo no sujeito parado tão perto de mim.
- Suze - disse ela educadamente. Diferentemente de mim, Cee Cee tinha passado o verão trabalhando no setor sem fins lucrativos, por isso não tinha um monte de dinheiro para torrar em guarda-roupa e maquiagem de volta à escola. Não que Cee Cee fosse gastar seu dinheiro numa coisa tão frívola como maquiagem. O que era ótimo, já que, sendo albina, ela precisava encomendar toda a maquiagem, não poderia simplesmente ir até o balcão da M.A.C. e torrar a grana como todo mundo.
- Quem é o seu amigo? - perguntou ela.
Eu não ficaria ali parada fazendo apresentações. Na verdade, estava pensando seriamente em ir para a administração e perguntar o que eles estavam pensando, ao admitir um cara assim no que eu já havia considerado uma escola passável.
Mas ele estendeu uma daquelas mãos frias e fortes para Cee Cee e disse com aquele riso que eu já havia considerado franco e agora me enregelava até os ossos.
- Oi, eu sou Paul. Paul Slater. Prazer em conhecê-la. Paul Slater. Não era realmente o tipo de nome capaz de provocar terror no coração de uma garota, hein? Quero dizer, parecia bastante inócuo. Oi, eu sou Paul. Paul Slater. Não havia nada naquela declaração que pudesse ter alertado Cee Cee para a verdade: Paul Slater era doentio, manipulador, e tinha uma pedra de gelo no lugar do coração.
Não, Cee Cee não fazia a mínima. Porque eu não tinha contado, claro. Não tinha contado a ninguém.
Idiota.
Se Cee Cee achou os dedos de Paul um pouquinho frios para seu gosto, não deu a entender.
- Cee Cee Webb - disse ela, enquanto apertava a mão dele com o seu jeito tipicamente profissional. - Você deve ser novo aqui, porque nunca o vi antes.
Paul piscou, chamando atenção para os cílios, que eram realmente compridos para um cara. Quase pareciam pesados nas pálpebras, como se fossem difíceis de levantar. Meu meio-irmão Jake tem cílios mais ou menos parecidos, só que nele isso faz parecer que está com sono. Em Paul tinha mais um efeito do tipo gostosão astro de rock. Olhei preocupada para Cee Cee. Ela era uma das pessoas mais sensatas que eu já havia conhecido, mas será que alguma de nós realmente é imune ao tipo gostosão astro de rock?
- É o meu primeiro dia - disse Paul com outro riso daqueles. - Sorte minha, já conheço a Srta. Simon aqui.
- Que fortuito! - disse Cee Cee (que como editora do jornal da escola gostava de palavras difíceis) com as sobrancelhas branco-louras ligeiramente levantadas. - Você era da escola antiga da Suze?
- Não - falei depressa. - Não. Olha, é melhor a gente ir para a sala, se não acaba arranjando encrenca...
Mas Paul não estava preocupado com a hipótese de arranjar encrenca. Provavelmente porque estava acostumado com isso.
- Suze e eu tivemos um caso no verão passado - informou ele a Cee Cee, cujos olhos púrpura se arregalaram por trás dos óculos diante dessa informação.
- Um caso?
- Não houve caso nenhum - garanti às pressas. - Acredite. Caso nenhum.
Os olhos de Cee Cee ficaram ainda mais arregalados.
Estava claro que não acreditava. Bom, por que acreditaria? Eu era sua melhor amiga, verdade. Mas será que eu já tinha sido completamente honesta com ela? Não. E ela claramente sabia.
- Ah, então vocês terminaram? - perguntou objetivamente.
- Não, nós não terminamos - disse Paul, com outro daqueles sorrisos cheios de segredos, de quem sabe das coisas.
Porque nós nunca estivemos juntos, eu quis gritar. Você acha que eu sairia com ele? Ele não é o que você acha, Cee Cee. Ele parece humano, mas por baixo dessa fachada de garanhão ele é um... um...
Bem, eu não sabia o que Paul era exatamente.
Mas o que isso me tornava? Paul e eu tínhamos muito mais em comum do que eu me sentia confortável em admitir, até para mim mesma.
Ainda que eu tivesse tido coragem para dizer alguma coisa desse tipo na frente dele, não tive chance, porque de repente soou uma voz seria:
- Srta. Simon! Srta. Webb! As madames não tem uma aula?
A irmã Ernestine - que três meses de ausência da minha vida não haviam deixado menos intimidante, com seu peito enorme e o crucifixo ainda maior adornando-o - partiu para cima de nós, com as amplas mangas pretas de seu hábito adejando como asas.
- Vão andando - falou para nós, balançando as mãos na direção dos armários montados nas paredes de adobe ao longo do pátio lindamente cuidado da missão. - Vocês vão se atrasar para a primeira aula.
Fomos... mas infelizmente Paul veio logo atrás.
- Suze e eu nos conhecemos há muito tempo - estava dizendo ele a Cee Cee, enquanto seguíamos pelo corredor coberto até meu armário. - Nós nos conhecemos no Pebble Beach Hotel and Golf Resort.
Eu só pude olhá-lo, enquanto girava a combinação do cofre. Não podia acreditar que isso estivesse acontecendo. Não podia mesmo. O que Paul estava fazendo aqui? O que Paul estava fazendo se matriculando na minha escola, transformando meu mundo - do qual eu tinha pensado que o havia afastado para sempre - num pesadelo da vida real?
Não queria saber. Quaisquer que fossem seus motivos para voltar, eu não queria saber. Só queria me afastar dele, ir para a aula, para qualquer lugar, qualquer um...
... desde que longe dele.
- Bem - falei, fechando com força a porta do armário.
Mal sabia o que estava fazendo. Tinha enfiado a mão dentro e apanhado as cegas os primeiros livros em que meus dedos tocaram. - Tenho de ir.
Ele olhou os livros nos meus braços, os que eu estava segurando quase como um escudo, como se fossem me proteger do que quer que fosse (e tive certeza de que havia alguma coisa) que ele guardava para mim. Para nós.
- Você não vai achar aí - disse Paul com um movimento cifrado de cabeça para os livros nos meus braços.
Eu não sabia do que ele estava falando. Não queria saber.
Só sabia que queria sair dali, e depressa. Cee Cee continuou ao meu lado, olhando perplexa do meu rosto para o de Paul. A qualquer segundo, eu sabia, ela começaria a fazer perguntas, perguntas as quais eu não ousava responder... porque ela não acreditaria, mesmo que eu tentasse.
Mesmo assim, mesmo não querendo, ouvi-me perguntando, como se as palavras fossem arrancadas involuntariamente dos lábios:
- Não vou achar o que aqui?
- As respostas que você está procurando. - A expressão nos olhos azuis de Paul era intensa. - O motivo pelo qual você, logo você, foi escolhida. E o que, exatamente, você é.
Dessa vez eu não tinha de perguntar o que ele queria dizer. Sabia. Sabia como se ele tivesse dito as palavras em voz alta. Paul estava falando do dom que nós dois compartilhávamos, do qual ele parecia ter um controle tão melhor do que eu - e do qual parecia ter um conhecimento tão superior.
Enquanto Cee Cee ficava ali parada, olhando nós dois como se estivéssemos conversando numa língua estranha, Paul continuou com sua fala macia:
- Quando estiver pronta para ouvir a verdade sobre o que você é, vai saber onde me encontrar. Porque eu vou estar aqui mesmo.
E então ele se afastou, aparentemente não percebendo todos os olhares femininos que atraia de minhas colegas, enquanto se movia com uma graça de pantera pela passagem coberta.
Com os olhos violeta ainda arregalados por trás dos óculos, Cee Cee me espiou, interrogativamente.
- O que esse cara estava falando? E quem, afinal de contas, é Jesse?

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