Conta-se aqui uma aventura que começou na Calormânia e foi acabar em Nárnia, na Idade do Ouro,
quando Pedro era o Grande Rei de Nárnia e seu irmão também era rei, e rainhas suas irmãs.
Vivia naqueles tempos, numa pequena enseada bem ao sul da Calormânia, um pobre pescador
chamado Arriche; com ele morava um menino que o chamava de pai. O nome do menino era Shasta. Quase
todos os dias, Arriche saía de manhã para pescar e, à tarde, atrelava o burro a uma carroça e ia vender os
peixes no vilarejo que ficava cerca de um quilômetro mais para o sul. Quando a venda era boa, ele voltava
para casa com o humor um pouco melhor e nada dizia a Shasta. Mas quando a venda era fraca descobria
defeitos no menino e às vezes até o espancava.
Sempre havia motivos para achar malfeitos, pois Shasta vivia cheio de coisas para fazer: remendar ou
costurar as redes, fazer a comida, limpar a cabana em que moravam...
Shasta não tinha o mínimo interesse pela vila onde o pai vendia o pescado. Nas poucas vezes em
que tinha ido lá não vira nada de interessante. Só encontrara gente parecida com o pai: homens
barbudos, usando mantos sujos e compridos, turbantes na cabeça e tamancos de pau de bico virado para
cima, e que resmungavam entre si uma conversa mole e enjoada. Mas tudo o que existia do lado oposto, no
Norte, despertava uma enorme curiosidade em Shasta, pois ninguém jamais ia para lá, e ele próprio não tinha
permissão para isso. Quanto se sentava à soleira da porta, remendando as redes, costumava olhar
ansiosamente para aqueles lados.
Às vezes perguntava:
- Pai, o que existe depois daquela serra?
Se o pescador estava mal-humorado, dava-lhe um sopapo no pé do ouvido e lhe mandava prestar
atenção no trabalho. Se o dia era de boa paz, Arriche respondia:
- Meu filho, não deixe o seu espírito se perder em divãgações. E como diz um dos grandes poetas:
“A atenção é o caminho da prosperidade, e os que metem o nariz onde não são chamados acabam
quebrando a cara no pedregulho da miséria.”
Por essa razão, Shasta imaginava que no Norte, além da serra, só podia existir um fabuloso segredo, do qual o pai queria afastá-lo. Mas o pescador nem sequer sabia onde ficava o Norte. E nem queria saber,
pois era um homem prático.
Um dia chegou do Sul um homem nada parecido com os outros que Shasta conhecera. Montava um
grande cavalo malhado, de crina esvoaçante, com estribos e freios de prata. A ponta do elmo saía do
centro do seu turbante de seda, e ele usava uma cota de malha. Empunhava uma lança e trazia ao lado uma
cimitarra e um escudo de bronze. Seu rosto escuro não causou a menor surpresa a Shasta, pois todos os
calormanos também são escuros. Surpresa, sim, causou-lhe a ondulada barba do homem, pintada de
vermelho-carmesim e besuntada de óleo perfumado.
Pela pulseira de ouro que o estrangeiro usava, Arriche logo viu que se tratava de um tarcaã, isto é, um
senhor de alta linhagem. Ajoelhando-se diante do cavaleiro, o pescador acenou a Shasta para que fizesse
o mesmo.
O estrangeiro pediu pousada para a noite, coisa que Arriche jamais teria a coragem de recusar. O que
tinham de melhor foi preparado para a ceia do tarcaã; coube a Shasta, como sempre acontecia quando o
pescador recebia alguém, um naco de pão. Nessas ocasiões costumava dormir ao lado do burro, numa
cocheira coberta de palha. Como era cedo demais para dormir, Shasta, que jamais aprendera que não se deve ouvir atrás da porta, foi sentar-se de orelha colada a uma fenda que havia na parede de madeira da cabana.
Estava curioso para saber o que diziam os adultos. Eis o que ouviu:
- Agora, meu anfitrião - disse o tarcaã -, quero dizer-lhe que estou pensando em comprar-lhe esse
menino.
- Meu amo e senhor - respondeu o pescador (e Shasta adivinhou que o pai fazia no momento uma
cara ambiciosa) -, que preço poderia convencer este seu servo a vender-lhe o seu único filho? Por que
preço tornar escravo quem é carne da minha própria carne? É como diz um dos grandes poetas: “O
sentimento vale mais do que a sopa, e um filho é mais precioso que o diamante.”
- É verdade - respondeu o hóspede com secura - mas um outro poeta também disse: “Quem tenta
enganar o sábio, já está tirando a camisa para receber chicotadas.” Não encha essa boca murcha de mentiras.
É evidente que esse menino não é seu filho, pois o seu rosto é escuro como o meu, e o rapazinho é claro e
bonito como os malditos mas belos selvagens que habitam as distantes terras do Norte.
- Como é certo o ditado - respondeu o pescador - que diz que “espada não entra em escudo, mas contra
o olho da sabedoria não há defesa!” Saiba então, meu sublime senhor, que devo à minha extrema pobreza
não ter tido nem mulher nem filho. Contudo, no mesmo ano em que o Tisroc - que ele viva para
sempre! - iniciou o seu augusto e generoso reinado, numa noite de lua cheia, os deuses fizeram a graça de
roubar-me o sono. Levantei-me da enxerga e fui tomar o ar fresco da praia e contemplar o luar sobre as
águas. Foi quando percebi um ruído de remos na minha direção e ouvi um choro miúdo. Pouco depois,
a maré trazia à praia uma canoa, onde estavam apenas um homem vergado de fome e sede e que parecia ter
morrido havia poucos instantes - pois ainda estava quente -, um cantil vazio... e uma criança, que ainda
vivia. Sem dúvida, pensei, esses desgraçados conseguiram salvar-se dum naufrágio; por graça dos
deuses, o homem matou-se de fome e sede para manter a criança viva, perecendo à vista da terra.
Assim, certo de que os deuses nunca deixam de recompensar aqueles que socorrem os infelizes,
tocado de piedade, pois este seu servo é homem de coração...
- Pare com esses elogios em causa própria - interrompeu o tarcaã. - Basta saber que você pegou a
criança, e já recebeu com o trabalho do menino dez vezes mais do que o pão que lhe deu a cada dia. Isto é
evidente. O que interessa é o seguinte: quanto quer pelo menino? Estou cheio do seu palavrório.
Arriche respondeu:
- Muito bem o disse, meu senhor: o trabalho do menino tem sido para mim de inestimável valor. É
importante levar isso em conta ao ajustarmos o preço.
Pois, é claro, se vender o menino, serei obrigado a comprar ou alugar um outro, capaz de fazer os
mesmos trabalhos.
- Dou quinze crescentes por ele - disse o tarcaã.
- Quinze! - bradou Arriche, com uma voz que ficava entre o ganido e o vagido. - Quinze
crescentes!? Pelo arrimo da minha velhice!? Pela consolação dos meus olhos!? Não zombe das minhas
barbas grisalhas, mesmo sendo o senhor um tarcaã!
Meu preço é setenta.
Nessa altura Shasta saiu na ponta dos pés. Tinha ouvido o suficiente; de experiência própria, na vila,
sabia bem o que é uma conversa de barganha.
Chegava a adivinhar que, no fim das contas, Arriche o venderia por muito mais do que quinze crescentes e
muito menos do que setenta. Mas levariam horas para chegar a essa conclusão.
Não vá pensar que Shasta sentiu o que você sentiria, caso ouvisse o seu pai negociando a sua
venda como escravo. Primeiro: a vida dele já era bem parecida com a de um escravo e provavelmente o
tarcaã o trataria melhor do que Arriche. Depois, aquela história de ter sido encontrado numa canoa
dava-lhe novo ânimo e certo alívio. Freqüentemente tinha remorsos por não sentir afeto pelo pescador, pois
sabia que um filho deve amar o pai. Não tendo parentesco com Arriche, tirava um peso da consciência, chegando até a imaginar: “Quem sabe não serei filho de algum tarcaã... ou filho até do Tisroc - que ele viva para sempre! -, ou filho de um deus?”
Devaneava assim, sentado na relva à beira da cabana. Duas estrelas já tinham surgido no céu,
embora restos do pôr-do-sol ainda clareassem o ocidente. A uma certa distância pastava o cavalo do
estrangeiro, amarrado ao anel de ferro da co-cheira do burro. Como se vagueasse, Shasta caminhou até ele e
acariciou-lhe o pescoço. O animal continuou arrancando ervas, sem tomar conhecimento.
Uma outra idéia passou pela cabeça do menino:
“Seria formidável se esse tarcaã fosse um bom sujeito.
Em casa dos grandes senhores há certos escravos que quase não fazem nada. Usam roupas bonitas e comem
carne todos os dias. Quem sabe ele me levasse para a guerra e eu tivesse de salvar a vida dele numa batalha;
aí ele me daria a liberdade e me adotaria como filho...
Aí eu ia ganhar um palácio, uma carruagem e uma armadura... Mas, e se ele for um homem terrível e
cruel? Pode ser que me mande trabalhar no campo, acorrentado. Ah, se eu soubesse! Aposto que o cavalo
sabe. Pena que não saiba falar.”
O cavalo levantou a cabeça. Shasta tocou-lhe o focinho acetinado, dizendo:
- Seria tão bom se você falasse, companheiro!
Por um instante pensou que estava sonhando, pois, com a maior clareza, embora em voz baixa, o cavalo
disse:
- Eu falo.
Os olhos de Shasta ficaram quase do tamanho dos olhos do cavalo.
- Mas como é que você aprendeu a falar?
- Psiu! Mais baixo! Aprendi na minha terra, onde quase todos os cavalos sabem falar.
- Onde fica a sua terra?
- Minha terra é Nárnia... Nárnia, a terra feliz das montanhas, dos rios, dos vales floridos, das grutas
cheias de musgo, das florestas que vibram com as marteladas dos anões. Oh, como é leve o ar de Nárnia!
Uma hora lá vale mais do que mil anos na Calormânia.
A descrição de Nárnia acabou num relincho que mais parecia um suspiro de pesar.
- Como você veio para cá?
- Seqüestro! - respondeu o cavalo. - Roubado, capturado, como você achar melhor. Não passava de
um potro. Minha mãe sempre me dizia para nunca ir às encostas do Sul, à Arquelândia. Mas não lhe dei
ouvidos. Pela juba do Leão! Estou pagando pela minha loucura. Fiquei escravo dos homens esse tempo
todo, ocultando a minha verdadeira natureza, fingindo que sou mudo e estúpido como os cavalos deles.
- Por que não lhes contou quem você é?
- Não faria essa loucura! Se descobrissem que sei falar, seria exibido nas feiras. Passaria a ser mais
vigiado do que nunca e perderia qualquer esperança de escapar.
- Mas...
- Escute: não vamos perder tempo em conversa fiada. Você quer saber a respeito do meu dono, que se
chama Anradin. É um sujeito ruim. Não para mim, pois um bom cavalo custa um bom dinheiro. Mas,
quanto a você, seria mais feliz morto hoje à noite do que escravo dele amanhã.
- Ah, então vou fugir! - exclamou Shasta, empalidecendo.
- É o que tem a fazer - replicou o cavalo. - Por que não foge comigo?
- Você também está pensando em fugir?
- Se você vier comigo... É a nossa oportunidade, entende? Se fujo sem um cavaleiro, vão pensar que
sou um cavalo perdido e me pegam. Com alguém em cima, há uma chance. É aí que você entra. Quanto a
você, com essas perninhas (são incríveis essas pernas humanas!) não iria longe. Comigo, porém, não há
cavalo neste país que nos apanhe. É aí que eu entro. A propósito, acho que você deve saber montar...
- Mas é claro - respondeu Shasta. - Pelo menos já montei o burro.
- Montou o quê}\ - fungou o cavalo com enorme desprezo. (Nem mesmo chegou a falar, pois os
cavalos falantes ficam com o sotaque ainda mais cavalar quando sentem raiva.) E continuou: - Em
outras palavras, você sabe montar coisa nenhuma. Isso é ponto contra. Tenho de ensinar-lhe pelo caminho. Já que não sabe montar, pelo menos sabe cair?
- Bem, todo mundo sabe cair.
- Estou dizendo o seguinte: sabe cair e montar de novo, sem chorar, e cair de novo e montar de
novo, sem ficar com medo de voltar a cair?
- Vou tentar, posso tentar - respondeu Shasta.
- Coitado do bichinho! - falou o cavalo num tom mais bondoso. - Esqueci que você é ainda um potro.
Vamos fazer de você um excelente cavaleiro. Preste atenção: como só partiremos depois que aqueles dois
pegarem no sono, vamos aproveitar o tempo para traçar nossos planos. Meu tarcaã está de viagem para
o Norte, para a própria Tashbaan, a grande cidade onde fica a corte do Tisroc...
- Por favor - interrompeu Shasta -, por que você não disse “que ele viva para sempre”?
- E por quê!? - replicou o cavalo. - Fique sabendo que sou um narniano livre! Por que iria usar
linguagem de escravo? Não quero que ele viva, e muito menos para sempre. E está na cara que você é
um homem livre do Norte. Vamos acabar com esse palavreado sulista! Como ia dizendo, o meu humano
está de viagem para Tashbaan, no Norte.
- Isso significa que é melhor a gente ir para o Sul?
- Não acho - respondeu o cavalo. - Ele pensa que sou mudo e burro como os outros cavalos. Se eu fosse
mesmo, no momento em que ficasse solto iria correndo para o meu estábulo, para o meu pasto, lá no
palácio dele, no Sul, a dois dias de viagem daqui. É onde ele irá me procurar. Mas nunca passará pela
cabeça dele que fui sozinho para o Norte. Ele pode imaginar também que alguém nos seguiu até aqui e
me roubou.
- Fabuloso! - exclamou Shasta. - Vamos para o Norte. É para o Norte que eu sempre quis ir a
vida inteira.
- Sem dúvida - comentou o cavalo. - É a voz do sangue. Você para mim só pode ser nortista.
Fale baixo... Já devem estar quase dormindo.
- Acho que vou dar uma olhada - sugeriu Shasta.
- Boa idéia, mas tome muito cuidado.
Estava escuro e quieto; o barulho das ondas Shasta nem notava, depois de ouvi-lo a vida toda,
dia e noite. Não havia luz acesa na cabana. Nem ouviu ruído na frente. Na única janela escutou o ronco de
sempre do velho pescador. “Engraçado”, pensou, “se tudo correr bem, é a última vez que escuto esse
guincho”. Prendendo a respiração, sentindo um pouco de pena (uma pena que não era nada, perto da alegria), Shasta deslizou pela relva até a cocheira do burro, foi tateando até o lugar onde estava escondida a chave, abriu a porta e achou o arreio e as rédeas do cavalo.
Beijou o focinho do burro: “Desculpe por não poder levá-lo.”
- Até que enfim - disse o cavalo, quando Shasta voltou. - Já estava meio preocupado.
- Fui buscar suas coisas na cocheira. Como é que a gente coloca isto?
Por alguns minutos Shasta agiu cautelosamente, evitando tinidos, enquanto o cavalo ia dizendo:
“Aperte um pouco mais a barrigueira.” “Tem uma fivela aí mais embaixo.” “Encurte um pouco mais os
estribos.” Por fim disse:
- Você vai usar rédeas, mas só para manter as aparências. Enrole a ponta na sela, bem frouxa, para
que eu possa mexer à vontade com a cabeça. Escute: não toque nunca nestas rédeas!
- Mas, então, para que serve isso?
- Em geral, para que me dirijam. Mas, como quem vai dirigir esta viagem sou eu, por favor não
mexa nisso aí. Aliás, mais um aviso: não se agarre na minha crina.
- Mas espere aí: se não posso segurar nem nas rédeas nem na crina, onde vou me agarrar?
- Em seus joelhos: é o segredo de quem sabe montar. Pode apertar o meu corpo como quiser; sentese
bem aprumado, cotovelos para dentro. Aliás, o que você fez com as esporas?
- Coloquei nos pés, é claro. Isso eu sei.
- Pois então tire essas esporas dos pés e guarde na sacola. Talvez possa vendê-las em Tashbaan.
Pronto? Acho que já pode subir.
- Puxa! Você é muito alto - reclamou Shasta, depois da primeira tentativa de montar.
- Sou um cavalo, só isso - foi a resposta. - Pelo jeito que você monta, diriam que sou um monte de
capim. Isso, melhorou. Agüente firme e não se esqueça dos joelhos. Engraçado! Pensar que eu, que
conduzi cargas de cavalaria e venci tantas corridas, levo agora na sela uma espécie de saco de batatas!
Deixe pra lá e vamos em frente.
Com grande precaução, foram inicialmente na direção oposta, por trás da cabana, onde passava um
riacho a caminho do mar, tendo o cuidado de deixar na lama pegadas que apontavam para o Sul. Depois
pegaram um trecho da margem coberto de seixos e seguiram para o lado do Norte. A passo, voltaram pelo
caminho da cabana, passaram pela árvore e pelo estábulo do burro, deixaram o riacho e sumiram na
noite quente.
Tomaram a direção das colinas e chegaram à crista que marcava o fim do mundo conhecido por
Shasta; este nada via à frente, a não ser uma relva que parecia não ter fim, um campo aberto sem casa
alguma.
- Que beleza de lugar para um galope! - sugeriu o cavalo.
- Não, por favor, ainda não. Por favor, cavalo.
Ei, ainda não sei o seu nome.
- Meu nome é Brirri-rini-brini-ruri-rá.
- Não vou aprender isso nunca. Posso chamá-lo de Bri?
- Bem, se não consegue dizer mais do que isso...
E o seu nome?
- Shasta.
- Opa! Nomezinho complicado! Mas vamos ao galope. É bem mais fácil do que o trote, pois você não
tem de subir e descer. Aperte os joelhos, olho firme entre as minhas orelhas. Não olhe para o chão. Se
achar que vai cair, aperte mais os joelhos, empine-semais. Pronto? Já! Para Nárnia e para o Norte!
quando Pedro era o Grande Rei de Nárnia e seu irmão também era rei, e rainhas suas irmãs.
Vivia naqueles tempos, numa pequena enseada bem ao sul da Calormânia, um pobre pescador
chamado Arriche; com ele morava um menino que o chamava de pai. O nome do menino era Shasta. Quase
todos os dias, Arriche saía de manhã para pescar e, à tarde, atrelava o burro a uma carroça e ia vender os
peixes no vilarejo que ficava cerca de um quilômetro mais para o sul. Quando a venda era boa, ele voltava
para casa com o humor um pouco melhor e nada dizia a Shasta. Mas quando a venda era fraca descobria
defeitos no menino e às vezes até o espancava.
Sempre havia motivos para achar malfeitos, pois Shasta vivia cheio de coisas para fazer: remendar ou
costurar as redes, fazer a comida, limpar a cabana em que moravam...
Shasta não tinha o mínimo interesse pela vila onde o pai vendia o pescado. Nas poucas vezes em
que tinha ido lá não vira nada de interessante. Só encontrara gente parecida com o pai: homens
barbudos, usando mantos sujos e compridos, turbantes na cabeça e tamancos de pau de bico virado para
cima, e que resmungavam entre si uma conversa mole e enjoada. Mas tudo o que existia do lado oposto, no
Norte, despertava uma enorme curiosidade em Shasta, pois ninguém jamais ia para lá, e ele próprio não tinha
permissão para isso. Quanto se sentava à soleira da porta, remendando as redes, costumava olhar
ansiosamente para aqueles lados.
Às vezes perguntava:
- Pai, o que existe depois daquela serra?
Se o pescador estava mal-humorado, dava-lhe um sopapo no pé do ouvido e lhe mandava prestar
atenção no trabalho. Se o dia era de boa paz, Arriche respondia:
- Meu filho, não deixe o seu espírito se perder em divãgações. E como diz um dos grandes poetas:
“A atenção é o caminho da prosperidade, e os que metem o nariz onde não são chamados acabam
quebrando a cara no pedregulho da miséria.”
Por essa razão, Shasta imaginava que no Norte, além da serra, só podia existir um fabuloso segredo, do qual o pai queria afastá-lo. Mas o pescador nem sequer sabia onde ficava o Norte. E nem queria saber,
pois era um homem prático.
Um dia chegou do Sul um homem nada parecido com os outros que Shasta conhecera. Montava um
grande cavalo malhado, de crina esvoaçante, com estribos e freios de prata. A ponta do elmo saía do
centro do seu turbante de seda, e ele usava uma cota de malha. Empunhava uma lança e trazia ao lado uma
cimitarra e um escudo de bronze. Seu rosto escuro não causou a menor surpresa a Shasta, pois todos os
calormanos também são escuros. Surpresa, sim, causou-lhe a ondulada barba do homem, pintada de
vermelho-carmesim e besuntada de óleo perfumado.
Pela pulseira de ouro que o estrangeiro usava, Arriche logo viu que se tratava de um tarcaã, isto é, um
senhor de alta linhagem. Ajoelhando-se diante do cavaleiro, o pescador acenou a Shasta para que fizesse
o mesmo.
O estrangeiro pediu pousada para a noite, coisa que Arriche jamais teria a coragem de recusar. O que
tinham de melhor foi preparado para a ceia do tarcaã; coube a Shasta, como sempre acontecia quando o
pescador recebia alguém, um naco de pão. Nessas ocasiões costumava dormir ao lado do burro, numa
cocheira coberta de palha. Como era cedo demais para dormir, Shasta, que jamais aprendera que não se deve ouvir atrás da porta, foi sentar-se de orelha colada a uma fenda que havia na parede de madeira da cabana.
Estava curioso para saber o que diziam os adultos. Eis o que ouviu:
- Agora, meu anfitrião - disse o tarcaã -, quero dizer-lhe que estou pensando em comprar-lhe esse
menino.
- Meu amo e senhor - respondeu o pescador (e Shasta adivinhou que o pai fazia no momento uma
cara ambiciosa) -, que preço poderia convencer este seu servo a vender-lhe o seu único filho? Por que
preço tornar escravo quem é carne da minha própria carne? É como diz um dos grandes poetas: “O
sentimento vale mais do que a sopa, e um filho é mais precioso que o diamante.”
- É verdade - respondeu o hóspede com secura - mas um outro poeta também disse: “Quem tenta
enganar o sábio, já está tirando a camisa para receber chicotadas.” Não encha essa boca murcha de mentiras.
É evidente que esse menino não é seu filho, pois o seu rosto é escuro como o meu, e o rapazinho é claro e
bonito como os malditos mas belos selvagens que habitam as distantes terras do Norte.
- Como é certo o ditado - respondeu o pescador - que diz que “espada não entra em escudo, mas contra
o olho da sabedoria não há defesa!” Saiba então, meu sublime senhor, que devo à minha extrema pobreza
não ter tido nem mulher nem filho. Contudo, no mesmo ano em que o Tisroc - que ele viva para
sempre! - iniciou o seu augusto e generoso reinado, numa noite de lua cheia, os deuses fizeram a graça de
roubar-me o sono. Levantei-me da enxerga e fui tomar o ar fresco da praia e contemplar o luar sobre as
águas. Foi quando percebi um ruído de remos na minha direção e ouvi um choro miúdo. Pouco depois,
a maré trazia à praia uma canoa, onde estavam apenas um homem vergado de fome e sede e que parecia ter
morrido havia poucos instantes - pois ainda estava quente -, um cantil vazio... e uma criança, que ainda
vivia. Sem dúvida, pensei, esses desgraçados conseguiram salvar-se dum naufrágio; por graça dos
deuses, o homem matou-se de fome e sede para manter a criança viva, perecendo à vista da terra.
Assim, certo de que os deuses nunca deixam de recompensar aqueles que socorrem os infelizes,
tocado de piedade, pois este seu servo é homem de coração...
- Pare com esses elogios em causa própria - interrompeu o tarcaã. - Basta saber que você pegou a
criança, e já recebeu com o trabalho do menino dez vezes mais do que o pão que lhe deu a cada dia. Isto é
evidente. O que interessa é o seguinte: quanto quer pelo menino? Estou cheio do seu palavrório.
Arriche respondeu:
- Muito bem o disse, meu senhor: o trabalho do menino tem sido para mim de inestimável valor. É
importante levar isso em conta ao ajustarmos o preço.
Pois, é claro, se vender o menino, serei obrigado a comprar ou alugar um outro, capaz de fazer os
mesmos trabalhos.
- Dou quinze crescentes por ele - disse o tarcaã.
- Quinze! - bradou Arriche, com uma voz que ficava entre o ganido e o vagido. - Quinze
crescentes!? Pelo arrimo da minha velhice!? Pela consolação dos meus olhos!? Não zombe das minhas
barbas grisalhas, mesmo sendo o senhor um tarcaã!
Meu preço é setenta.
Nessa altura Shasta saiu na ponta dos pés. Tinha ouvido o suficiente; de experiência própria, na vila,
sabia bem o que é uma conversa de barganha.
Chegava a adivinhar que, no fim das contas, Arriche o venderia por muito mais do que quinze crescentes e
muito menos do que setenta. Mas levariam horas para chegar a essa conclusão.
Não vá pensar que Shasta sentiu o que você sentiria, caso ouvisse o seu pai negociando a sua
venda como escravo. Primeiro: a vida dele já era bem parecida com a de um escravo e provavelmente o
tarcaã o trataria melhor do que Arriche. Depois, aquela história de ter sido encontrado numa canoa
dava-lhe novo ânimo e certo alívio. Freqüentemente tinha remorsos por não sentir afeto pelo pescador, pois
sabia que um filho deve amar o pai. Não tendo parentesco com Arriche, tirava um peso da consciência, chegando até a imaginar: “Quem sabe não serei filho de algum tarcaã... ou filho até do Tisroc - que ele viva para sempre! -, ou filho de um deus?”
Devaneava assim, sentado na relva à beira da cabana. Duas estrelas já tinham surgido no céu,
embora restos do pôr-do-sol ainda clareassem o ocidente. A uma certa distância pastava o cavalo do
estrangeiro, amarrado ao anel de ferro da co-cheira do burro. Como se vagueasse, Shasta caminhou até ele e
acariciou-lhe o pescoço. O animal continuou arrancando ervas, sem tomar conhecimento.
Uma outra idéia passou pela cabeça do menino:
“Seria formidável se esse tarcaã fosse um bom sujeito.
Em casa dos grandes senhores há certos escravos que quase não fazem nada. Usam roupas bonitas e comem
carne todos os dias. Quem sabe ele me levasse para a guerra e eu tivesse de salvar a vida dele numa batalha;
aí ele me daria a liberdade e me adotaria como filho...
Aí eu ia ganhar um palácio, uma carruagem e uma armadura... Mas, e se ele for um homem terrível e
cruel? Pode ser que me mande trabalhar no campo, acorrentado. Ah, se eu soubesse! Aposto que o cavalo
sabe. Pena que não saiba falar.”
O cavalo levantou a cabeça. Shasta tocou-lhe o focinho acetinado, dizendo:
- Seria tão bom se você falasse, companheiro!
Por um instante pensou que estava sonhando, pois, com a maior clareza, embora em voz baixa, o cavalo
disse:
- Eu falo.
Os olhos de Shasta ficaram quase do tamanho dos olhos do cavalo.
- Mas como é que você aprendeu a falar?
- Psiu! Mais baixo! Aprendi na minha terra, onde quase todos os cavalos sabem falar.
- Onde fica a sua terra?
- Minha terra é Nárnia... Nárnia, a terra feliz das montanhas, dos rios, dos vales floridos, das grutas
cheias de musgo, das florestas que vibram com as marteladas dos anões. Oh, como é leve o ar de Nárnia!
Uma hora lá vale mais do que mil anos na Calormânia.
A descrição de Nárnia acabou num relincho que mais parecia um suspiro de pesar.
- Como você veio para cá?
- Seqüestro! - respondeu o cavalo. - Roubado, capturado, como você achar melhor. Não passava de
um potro. Minha mãe sempre me dizia para nunca ir às encostas do Sul, à Arquelândia. Mas não lhe dei
ouvidos. Pela juba do Leão! Estou pagando pela minha loucura. Fiquei escravo dos homens esse tempo
todo, ocultando a minha verdadeira natureza, fingindo que sou mudo e estúpido como os cavalos deles.
- Por que não lhes contou quem você é?
- Não faria essa loucura! Se descobrissem que sei falar, seria exibido nas feiras. Passaria a ser mais
vigiado do que nunca e perderia qualquer esperança de escapar.
- Mas...
- Escute: não vamos perder tempo em conversa fiada. Você quer saber a respeito do meu dono, que se
chama Anradin. É um sujeito ruim. Não para mim, pois um bom cavalo custa um bom dinheiro. Mas,
quanto a você, seria mais feliz morto hoje à noite do que escravo dele amanhã.
- Ah, então vou fugir! - exclamou Shasta, empalidecendo.
- É o que tem a fazer - replicou o cavalo. - Por que não foge comigo?
- Você também está pensando em fugir?
- Se você vier comigo... É a nossa oportunidade, entende? Se fujo sem um cavaleiro, vão pensar que
sou um cavalo perdido e me pegam. Com alguém em cima, há uma chance. É aí que você entra. Quanto a
você, com essas perninhas (são incríveis essas pernas humanas!) não iria longe. Comigo, porém, não há
cavalo neste país que nos apanhe. É aí que eu entro. A propósito, acho que você deve saber montar...
- Mas é claro - respondeu Shasta. - Pelo menos já montei o burro.
- Montou o quê}\ - fungou o cavalo com enorme desprezo. (Nem mesmo chegou a falar, pois os
cavalos falantes ficam com o sotaque ainda mais cavalar quando sentem raiva.) E continuou: - Em
outras palavras, você sabe montar coisa nenhuma. Isso é ponto contra. Tenho de ensinar-lhe pelo caminho. Já que não sabe montar, pelo menos sabe cair?
- Bem, todo mundo sabe cair.
- Estou dizendo o seguinte: sabe cair e montar de novo, sem chorar, e cair de novo e montar de
novo, sem ficar com medo de voltar a cair?
- Vou tentar, posso tentar - respondeu Shasta.
- Coitado do bichinho! - falou o cavalo num tom mais bondoso. - Esqueci que você é ainda um potro.
Vamos fazer de você um excelente cavaleiro. Preste atenção: como só partiremos depois que aqueles dois
pegarem no sono, vamos aproveitar o tempo para traçar nossos planos. Meu tarcaã está de viagem para
o Norte, para a própria Tashbaan, a grande cidade onde fica a corte do Tisroc...
- Por favor - interrompeu Shasta -, por que você não disse “que ele viva para sempre”?
- E por quê!? - replicou o cavalo. - Fique sabendo que sou um narniano livre! Por que iria usar
linguagem de escravo? Não quero que ele viva, e muito menos para sempre. E está na cara que você é
um homem livre do Norte. Vamos acabar com esse palavreado sulista! Como ia dizendo, o meu humano
está de viagem para Tashbaan, no Norte.
- Isso significa que é melhor a gente ir para o Sul?
- Não acho - respondeu o cavalo. - Ele pensa que sou mudo e burro como os outros cavalos. Se eu fosse
mesmo, no momento em que ficasse solto iria correndo para o meu estábulo, para o meu pasto, lá no
palácio dele, no Sul, a dois dias de viagem daqui. É onde ele irá me procurar. Mas nunca passará pela
cabeça dele que fui sozinho para o Norte. Ele pode imaginar também que alguém nos seguiu até aqui e
me roubou.
- Fabuloso! - exclamou Shasta. - Vamos para o Norte. É para o Norte que eu sempre quis ir a
vida inteira.
- Sem dúvida - comentou o cavalo. - É a voz do sangue. Você para mim só pode ser nortista.
Fale baixo... Já devem estar quase dormindo.
- Acho que vou dar uma olhada - sugeriu Shasta.
- Boa idéia, mas tome muito cuidado.
Estava escuro e quieto; o barulho das ondas Shasta nem notava, depois de ouvi-lo a vida toda,
dia e noite. Não havia luz acesa na cabana. Nem ouviu ruído na frente. Na única janela escutou o ronco de
sempre do velho pescador. “Engraçado”, pensou, “se tudo correr bem, é a última vez que escuto esse
guincho”. Prendendo a respiração, sentindo um pouco de pena (uma pena que não era nada, perto da alegria), Shasta deslizou pela relva até a cocheira do burro, foi tateando até o lugar onde estava escondida a chave, abriu a porta e achou o arreio e as rédeas do cavalo.
Beijou o focinho do burro: “Desculpe por não poder levá-lo.”
- Até que enfim - disse o cavalo, quando Shasta voltou. - Já estava meio preocupado.
- Fui buscar suas coisas na cocheira. Como é que a gente coloca isto?
Por alguns minutos Shasta agiu cautelosamente, evitando tinidos, enquanto o cavalo ia dizendo:
“Aperte um pouco mais a barrigueira.” “Tem uma fivela aí mais embaixo.” “Encurte um pouco mais os
estribos.” Por fim disse:
- Você vai usar rédeas, mas só para manter as aparências. Enrole a ponta na sela, bem frouxa, para
que eu possa mexer à vontade com a cabeça. Escute: não toque nunca nestas rédeas!
- Mas, então, para que serve isso?
- Em geral, para que me dirijam. Mas, como quem vai dirigir esta viagem sou eu, por favor não
mexa nisso aí. Aliás, mais um aviso: não se agarre na minha crina.
- Mas espere aí: se não posso segurar nem nas rédeas nem na crina, onde vou me agarrar?
- Em seus joelhos: é o segredo de quem sabe montar. Pode apertar o meu corpo como quiser; sentese
bem aprumado, cotovelos para dentro. Aliás, o que você fez com as esporas?
- Coloquei nos pés, é claro. Isso eu sei.
- Pois então tire essas esporas dos pés e guarde na sacola. Talvez possa vendê-las em Tashbaan.
Pronto? Acho que já pode subir.
- Puxa! Você é muito alto - reclamou Shasta, depois da primeira tentativa de montar.
- Sou um cavalo, só isso - foi a resposta. - Pelo jeito que você monta, diriam que sou um monte de
capim. Isso, melhorou. Agüente firme e não se esqueça dos joelhos. Engraçado! Pensar que eu, que
conduzi cargas de cavalaria e venci tantas corridas, levo agora na sela uma espécie de saco de batatas!
Deixe pra lá e vamos em frente.
Com grande precaução, foram inicialmente na direção oposta, por trás da cabana, onde passava um
riacho a caminho do mar, tendo o cuidado de deixar na lama pegadas que apontavam para o Sul. Depois
pegaram um trecho da margem coberto de seixos e seguiram para o lado do Norte. A passo, voltaram pelo
caminho da cabana, passaram pela árvore e pelo estábulo do burro, deixaram o riacho e sumiram na
noite quente.
Tomaram a direção das colinas e chegaram à crista que marcava o fim do mundo conhecido por
Shasta; este nada via à frente, a não ser uma relva que parecia não ter fim, um campo aberto sem casa
alguma.
- Que beleza de lugar para um galope! - sugeriu o cavalo.
- Não, por favor, ainda não. Por favor, cavalo.
Ei, ainda não sei o seu nome.
- Meu nome é Brirri-rini-brini-ruri-rá.
- Não vou aprender isso nunca. Posso chamá-lo de Bri?
- Bem, se não consegue dizer mais do que isso...
E o seu nome?
- Shasta.
- Opa! Nomezinho complicado! Mas vamos ao galope. É bem mais fácil do que o trote, pois você não
tem de subir e descer. Aperte os joelhos, olho firme entre as minhas orelhas. Não olhe para o chão. Se
achar que vai cair, aperte mais os joelhos, empine-semais. Pronto? Já! Para Nárnia e para o Norte!
4 comentários:
Legaaaaal....... ^~^
Livro fod9!!!
Eu quero um resumo desse capítulo e não do livro todo
Vdd
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