20. A praia dos cães

Como colunista de jornal, eu sempre estava à cata de histórias
interessantes ou instigantes sobre as quais pudesse escrever. Eu
escrevia três colunas por semana, o que significava que um dos maiores
desafios do meu trabalho era manter um constante fluxo de assuntos
novos. Toda manhã eu começava destrinchando os quatro jornais
diários do Sul da Flórida, circulando e recortando tudo que valesse a
pena destacar. Depois, bastava encontrar meu ponto de vista ou meu
ângulo sobre a questão. Minha primeira crônica veio direto das
manchetes. Um carro em alta velocidade com oito adolescentes a bordo
havia capotado em um canal ao lado do pântano. Apenas a motorista de
dezesseis anos, sua irmã gêmea e outra garota escaparam do desastre
depois que o carro submergiu. Era uma grande história que eu queria
abordar, mas qual seria meu ponto de vista? Fui dirigindo até o local do
acidente esperando encontrar inspiração, e antes mesmo de estacionar
o carro me ocorreu uma idéia. Os colegas dos cinco adolescentes
mortos haviam transformado o asfalto em um emaranhado de
mensagens escritas com tinta spray. O local estava coberto de um lado a
outro por mais de um quilômetro, e a emoção dessas manifestações era
palpável. Com o caderninho em punho, comecei a copiar as palavras.
“Juventude desperdiçada”, dizia uma mensagem, com uma seta pintada
em direção à água. Então, no meio da catarse comunitária, encontrei:
um pedido público de desculpas da jovem motorista, Jamie Bardol. Ela
escreveu em letras redondas garrafais, num garrancho de criança:
“Queria ter morrido no lugar deles. Me perdoem”. Eu havia encontrado
o gancho para minha coluna.
Nem todos os assuntos eram assim tão trágicos. Quando uma
aposentada recebia uma ordem de despejo de seu condomínio porque
seu cãozinho havia excedido o peso limite para animais de estimação,
eu corria para contar a história do peso-pesado. Quando uma senhora
confusa batia com o carro em uma loja enquanto tentava estacionar,
felizmente sem ferir ninguém, eu estava logo atrás, falando com as
testemunhas. Meu trabalho me levou, certa vez, a um acampamento de
imigrantes; à mansão de um milionário; e a uma esquina perdida no
meio da cidade. Eu amava a variedade dos temas, eu amava as pessoas
que encontrava e, mais do que qualquer outra coisa, eu amava a quase
total liberdade que me era permitida para ir onde e quando quisesse em
busca de qualquer assunto que atiçasse minha curiosidade.
O que meus chefes não sabiam era que, por trás de minhas
excursões jornalísticas, havia um propósito secreto: usar minha posição
como colunista para engendrar tantos “feriados a trabalho” sem culpa
quanto fossem possíveis. Meu lema era “quando o colunista se diverte, o
leitor se diverte”. Por que se esfalfar em uma audiência sobre reajuste de
impostos, em busca de um furo jornalístico, quando se poderia estar
sentado, digamos, ao ar livre em um bar em Key West, com uma
bebida na mão? Alguém tinha de padecer para contar a história dos
saleiros perdidos em Margaritaville; claro que poderia ser eu. Eu
ansiava por qualquer desculpa para passar o dia à toa, de preferência
de shorts e camiseta, atrás de vários assuntos divertidos e recreacionais
que eu me convencia de que o público precisava que alguém fosse
investigar. Toda profissão tem seus instrumentos de ofício, e os meus
incluíam um caderno de anotações, um punhado de canetas e uma
toalha de praia. Comecei a carregar bloqueadores solares e uma sunga
de banho no carro como equipamento de trabalho.
Gastei um dia zunindo pelos Everglades em um barco aéreo e
outro fazendo trilha à beira do Lago Okeechobee. Gastei outro dia
andando de bicicleta pela Estrada Estadual A1A, à margem do Oceano
Atlântico, para poder relatar, em primeira mão, sobre a proposta pavorosa
de partilhar o asfalto com peixes confusos e turistas distraídos. Passei um
dia inteiro mergulhando acima dos perigosos recifes na costa de Key Largo
e mais um em um campo de tiro experimentando várias munições, com
uma vítima por duas vezes de assalto que jurava que jamais seria
assaltada novamente. Passei mais um dia boiando em um barco de pesca
comercial e outro tocando com uma banda de roqueiros cinqüentões. Um
dia, simplesmente subi em uma árvore e fiquei sentado por horas
desfrutando da solidão; um incorporador tencionava arrancá-la para
construir um condomínio de edifícios, e eu imaginei que o mínimo que eu
poderia fazer era conceder a este último remanescente da natureza no
meio da selva de concreto um enterro adequado. Meu maior golpe foi
quando convenci meus editores a me enviar para as Bahamas, para que
eu pudesse estar no limiar de um ciclone em formação que abria
caminho em direção ao Sul da Flórida. O ciclone desviou para o mar sem
causar nenhum dano, e eu passei três dias na praia em um hotel de luxo,
bebericando pina colada, debaixo do mais perfeito céu azul.
Foi nesse veio de pesquisa jornalística que tive a idéia de levar
Marley para passar um dia na praia. Ao longo de toda a costa do Sul da
Flórida, onde há uma alta densidade demográfica, várias cidades
haviam abolido a presença de animais, e por justo motivo. A última
coisa que os freqüentadores de praia queriam era cocô de cachorro
revolvido no meio da areia e cães sacudindo-se perto deles, enquanto
tentavam pegar um bronzeado. Avisos de PROIBIDO CACHORROS
espalhavam-se por quase todas as praias.
Havia um lugar, no entanto, uma pequena nesga de areia pouco
conhecida, sem avisos ou cartazes, sem proibições ou restrições em
relação a quadrúpedes amantes de água. A praia estava escondida em
um bolsão não-incorporado do Condado de Palm Beach entre West
Palm Beach e Boca Raton, estendendo-se por uma centena de metros,
por trás de uma duna coberta de relva ao final de uma rua sem saída.
Não havia estacionamento, banheiros, salva-vidas, apenas um pedaço
inexplorado de areia branca displicente estendida diante do mar semfim.
Ao longo dos anos, ganhou fama por boca-a-boca entre os donos de
animais de estimação como um dos últimos refúgios seguros para seus
cães virem se esbaldar à beira d’água no Sul da Flórida, sem correr o
risco de serem multados. O lugar não tinha um nome oficial; extraoficialmente,
todo mundo conhecia como Praia dos Cães.
A Praia dos Cães era usada de acordo com um punhado de regras
estabelecidas implicitamente ao longo do tempo, postas em prática pelo
consenso geral entre os donos de cães que a freqüentavam, e impostas
pela pressão solidária e um código moral tácito. Os donos de cães
policiavam-se uns aos outros para que os novatos não se sentissem
tentados a violá-lo, punindo os infratores com olhares de reprovação e, se
necessário, algumas palavras bem escolhidas. As regras eram poucas e
simples: cães ferozes deveriam caminhar com uma guia na coleira; todos
os demais poderiam correr soltos. Os donos deveriam trazer sacos
plásticos para recolher quaisquer dejetos que seu cão produzisse. Todo
lixo, incluindo as fezes recolhidas nos sacos plásticos, deveria ser
descartado em lugar apropriado. Cada cão deveria ter um suprimento de
água potável. Principalmente, a água do mar não poderia ser poluída. A
etiqueta recomendava que os donos, ao chegar, caminhassem com seus
cães ao longo das dunas, longe da beira d’água, até que seus animais se
aliviassem. Então, poderiam ensacar os dejetos e seguir em segurança para
o mar.
Eu havia ouvido falar da Praia dos Cães, mas nunca a visitara.
Agora eu tinha a minha desculpa. Este resquício esquecido da antiga
Flórida que desaparecia rapidamente, aquela que existira antes da
chegada dos altos edifícios de condomínios à beira-mar, parquímetros
ao longo da praia, e valores imobiliários astronômicos, estava no
noticiário. Uma comissária do condado favorável ao desenvolvimento da
região começara a reclamar sobre este trecho de praia nãoregulamentado
e perguntar por que as regras que se aplicavam a outras
praias do condado não se aplicavam a esta. Ela deixou bem clara a sua
intenção: banir as criaturas peludas, melhorar o acesso público e abrir
este valioso refúgio à população em geral.
Imediatamente me prendi à história pelo que ela era: uma perfeita
desculpa para passar um dia na praia durante o expediente. Em uma
perfeita manhã de junho, troquei minha gravata e pasta de trabalho por
sunga e sandálias de dedo, e segui com Marley pela Intracoastal
Waterway. Enchi o carro com todas as toalhas de praia que pude
encontrar — que serviram apenas para a viagem de ida. Como sempre,
a língua de Marley estava pendurada do lado de fora, lançando saliva
para todo o lado. Parecia que eu estava viajando com uma cachoeira.
Eu lamentava que não houvesse um limpador de pára-brisas do lado de
dentro.
Seguindo o código da Praia dos Cães, estacionei a vários
quarteirões de distância, onde eu não seria multado, e comecei a longa
caminhada pela sonolenta vizinhança de casas da década de 1960, com
Marley andando à frente. No meio do caminho, uma voz mal-humorada
exclamou:
— Ei, você aí com o cachorro!
Gelei, achando que seria execrado por um vizinho enfezado que
queria que eu levasse meu cachorro para longe da praia dele. Mas era
outro dono de cachorro, que se aproximou de mim com seu imenso cão
preso à guia e me estendeu um abaixo-assinado para que os comissários do
condado preservassem a Praia dos Cães. A propósito, nós poderíamos ter
parado para conversar, mas do modo como Marley e o outro cão estavam
se cercando, eu sabia que seria uma questão de segundos antes que, das
duas uma: (a) eles se atracassem em combate mortal, ou (b) se unissem em
casamento. Puxei Marley para trás e continuei caminhando. Ao chegarmos
na entrada da praia, Marley se abaixou na grama e esvaziou o intestino.
Perfeito. Pelo menos, esta pequena gentileza já estaria cumprida. Ensaquei
a prova e disse a ele:
— Agora, vamos para a praia!
Ao atingirmos o alto da duna, surpreendi-me de ver diversas
pessoas passeando à beira d’água como seus cães presos nas guias. O
que significava aquilo? Eu esperava ver os cães correndo livremente em
harmonia.
— Um assistente do xerife acabou de passar por aqui — explicoume
um sorumbático dono de cachorro. — Ele disse que a partir de
agora eles vão estar obrigando o uso da guia e irão multar se
encontrarem os cães correndo soltos.
Parecia que eu havia chegado muito tarde para desfrutar
inteiramente dos simples prazeres da Praia dos Cães. A polícia, sem
dúvida, cedendo às forças políticas ligadas à pressão contrária à Praia
dos Cães, estava apertando o laço. Andei, como esperado, com Marley
pela beira d’água com os outros cães e seus donos, sentindo-me mais
como se estivesse em um exercício no pátio da prisão do que na última
praia livre do Sul da Flórida.
Retornei com ele até a toalha e estava servindo uma tigela de
água para Marley, de um cantil que trouxera comigo, quando sobre a
duna surgiu um homem tatuado, sem camisa, trajando uma calça jeans
bem cortada e botas de trabalho, e um pit bull musculoso com cara de
bravo na ponta de uma corrente pesada ao seu lado. Pit bulls são
conhecidos por serem agressivos, sendo pública e notória sua presença
nesta época do ano no Sul da Flórida. Eles eram a raça de cães preferida
de membros de gangues, rudes e grosseiros, em geral, treinados para
serem malvados. Os jornais estavam cheios de relatos de ataques
despropositais de pit bulls por vezes, fatais, tanto contra animais
quanto contra pessoas. O dono do cão deve ter notado que eu me
encolhi, porque ele logo exclamou:
— Não se preocupe. Matador é amigável. Ele não se bate com outros
cães.
Eu estava começando a suspirar de alívio quando ele acrescentou
com visível orgulho:
— Mas você deveria vê-lo dilacerar um porco selvagem. Vou te
contar ele consegue abatê-lo em apenas quinze segundos!
Marley e o pit bull Matador de Porcos puxaram as guias,
circulando, farejando-se furiosamente. Marley nunca entrara em uma
briga em sua vida, e era tão maior que os outros cães que jamais fora
desafiado por nenhum deles. Mesmo quando um cão tentava começar
uma briga, ele nem ligava. Respondia, simplesmente, com um olhar
divertido, virava-se, balançava o rabo com um sorriso feliz e idiota na
cara. Nunca havia sido confrontado por um matador profissional, por
um malandro de rua. Imaginei Matador avançando sem prévio aviso na
garganta de Marley sem querer soltar. Seu dono não estava preocupado
com isso.
— A menos que seja um porco selvagem, ele só irá lambê-lo — ele
disse.
Eu disse a ele que os policiais tinham acabado de passar por ali e
iriam multar quem deixasse de usar a guia na coleira de seus cachorros.
— Creio que estejam fechando o cerco — comentei.
— Isso é besteira! — ele exclamou, cuspindo na areia. — Tenho
trazido meus cães nesta praia há anos. Não precisamos usar guias na
Praia dos Cães. Que besteira!
Ao dizer isso, soltou a pesada corrente e Matador trotou pela praia
e mergulhou na água. Marley sentou-se sobre as patas traseiras, ansioso.
Ele olhava para Matador e depois para mim. Ele olhava de novo para
Matador e de volta para mim. Suas patas batiam nervosamente sobre a
areia, ganindo baixinho sem parar. Se pudesse falar, eu sabia o que ele
estaria me perguntando. Olhei para o alto das dunas; nem um policial à
vista. Olhei para Marley. “Por favor! Por favor! Por favorzinho! Serei
bonzinho! Eu prometo!”
— Vamos, solte-o! — disse o dono de Matador. — Um cão não
nasceu para passar a vida na ponta de uma corda!
— Ora, que se dane! — eu exclamei, e soltei a guia da coleira.
Marley disparou até a água, lançando areia em cima de nós. Ele se jogou
sobre a onda assim que ela arrebentou, derrubando-o debaixo d’água.
Um segundo depois, levantou a cabeça para fora da rebentação, e assim
que se pôs de pé, jogou-se sobre o pit bull Matador de Porcos, caindo com
ele. Eles rolaram debaixo d’água e eu prendi a respiração, imaginando se
Marley teria ultrapassado o limite que incitaria a fúria homicida
antilabrador do pit bull. Mas quando emergiram novamente, balançavam
o rabo, com um sorriso estampado na cara. Matador se jogava sobre as
costas de Marley e Marley sobre as costas de Matador, mordiscando a
garganta um do outro. Correram e brincaram de pique por toda a praia,
jogando água para todo o lado. Eles correram, dançaram, lutaram,
mergulharam. Acho que nunca, jamais testemunhei, nem antes, nem
depois, urna alegria mais autêntica.
Os outros donos de cachorro seguiram nosso exemplo e logo
todos os cães, cerca de doze, estavam correndo soltos. Todos os cães se
deram muito bem; todos os donos estavam seguindo as regras. Era a
Praia dos Cães como ela deveria ser. Esta era a verdadeira Flórida,
imaculada e livre, a Flórida de tempos remotos e esquecidos, uma época
de um lugar mais simples, imune à marcha do progresso.
Houve apenas um pequeno problema. A medida que a manhã
avançava, Marley continuou bebendo água salgada. Eu o seguia de
perto com a tigela de água potável, mas ele estava muito distraído para
beber. Várias vezes eu o forçava a beber e enfiava seu nariz dentro da
tigela, mas ele rejeitava a água fresca como se fosse vinagre, apenas
preocupado em se juntar ao seu novo melhor amigo, Matador e os
outros cachorros.
A beira d’água, ele parava de brincar para beber mais água
salgada.
— Pare com isso, seu tonto! — eu gritei. — Você vai acabar...
Antes que eu terminasse de falar, aconteceu. Seus olhos se
vidraram e um som horrível emergiu de sua garganta. Ele arqueou as
costas e começou a abrir e fechar a boca várias vezes, como se estivesse
tentando cuspir algo do estômago. Seus ombros se levantaram, seu
abdômen se contorceu. Eu me apressei em terminar minha frase:
— ...vomitando!
Quando eu disse esta palavra, Marley cumpriu minha profecia,
cometendo a mais terrível heresia da Praia dos Cães.
GAAAAAAAAACK!
Corri para puxá-lo para fora da água, mas era tarde demais. Ele
começou a colocar tudo para fora. GAAAAAAAAACK! Pude ver a
comida de cachorro da véspera flutuando nas águas,
surpreendentemente muito parecida com o que era antes de ser
deglutida à noite. Entre as bolinhas de ração havia grãos de milho não
digeridos que ele roubara do prato das crianças, uma tampa de galão
de leite e a cabeça decepada de um. minúsculo soldadinho de plástico.
O vômito não durou mais do que três segundos, e assim que seu
estômago ficou vazio, levantou a cabeça alegremente, parecendo
totalmente recuperado, sem nenhum efeito colateral, como se dissesse:
“Agora que me livrei disso, quem quer pegar um jacaré?”. Olhei nervoso
em volta, mas ninguém pareceu notar. Os outros donos de cachorro
estavam ocupados com seus próprios cães mais abaixo na praia, uma
mãe mais próxima estava concentrada em ajudar sua filha de dois anos
a construir um castelo de areia, e os poucos banhistas espalhados
estavam deitados de costas, tomando sol, com os olhos fechados.
Graças a Deus, pensei, enquanto eu dispersava os restos de vômito de
Marley, jogando água discretamente com os pés, para apagar a prova do
crime. Que vergonha eu teria passado! De qualquer forma, pensei,
apesar da violação técnica da Regra N° 1 da Praia dos Cães, na
realidade, não causamos nenhum mal. Afinal, era apenas comida mal
digerida; os peixes iriam agradecer a refeição, não? Eu até peguei a
tampinha do galão de leite e a cabeça do soldadinho e guardei-as no
bolso para não sujar a praia.
— Ouça bem, você — eu disse num tom sério, agarrando Marley
pelo nariz e forçando-o a me olhar diretamente. — Pare de beber água
salgada. Que tipo de cachorro é você que não sabe que não pode beber
água salgada?
Pensei em arrastá-lo da praia e encurtar nossa aventura, mas ele
parecia estar se comportando agora. Não poderia haver mais nada em
seu estômago. O estrago estava feito, e saímos impunes- Eu o soltei e ele
correu pela praia para se juntar a Matador.
O que eu deixei de levar em conta foi que, enquanto o estômago
de Marley tinha sido totalmente esvaziado, seu intestino, não. O sol
estava refletindo sobre a água e me cegando, e eu apertei os olhos para
observar Marley brincando com os outros cachorros. Enquanto eu o
olhava, de repente, ele se afastou e começou a andar em círculos no
raso. Eu conhecia muito bem a manobra circular. Era o que ele fazia
todas as manhãs no quintal de casa ao se preparar para evacuar. Era
como um ritual para ele, embora nem todo lugar servisse para ele
entregar o presente que estava a ponto de ofertar ao mundo. Às vezes, a
caminhada em círculos se prolongaria por mais de um minuto enquanto
procurava pelo lugar perfeito. E agora ele estava andando em círculos
no raso na Praia dos Cães, naquela histórica fronteira onde nenhum
cachorro havia ousado evacuar antes. Ele estava começando a se
abaixar. E desta vez ele tinha uma platéia. O papai de Matador e vários
outros donos de cachorro estavam de pé a poucos metros dele. A mãe e
sua filha desviaram a atenção de seu castelo de areia para olhar para o
mar. Um casal se aproximou, caminhando de mãos dadas pela beira
d’água.
— Não! — eu sussurrei. — Por favor, Deus, não!
—Ei! — alguém gritou. — Segure seu cachorro!
—Não o deixe evacuar! — alguém mais gritou.
Enquanto as vozes gritavam alarmadas, os banhistas se
levantavam para ver do que se tratava toda aquela comoção.
Disparei, correndo para agarrá-lo antes que fosse tarde demais. Se
eu pudesse alcançá-lo e tirá-lo daquela posição agachada antes que seu
intestino começasse a funcionar, eu seria capaz de interromper toda
aquela humilhação, pelo menos o suficiente para carregá-lo a salvo para
o outro lado da duna de areia. Ao correr na direção dele, aconteceu o que
somente poderia ser descrito como uma experiência extracorpórea.
Enquanto corria, eu me via de cima, a cena se desenrolando embaixo,
quadro a quadro. Cada passo parecia durar uma eternidade. Cada
passada batia na areia provocando um estampido surdo. Meus braços
elevaram-se no ar; meu rosto se contorceu numa expressão de agonia.
Enquanto corria, eu percebia os quadros se sucedendo em câmera lenta à
minha volta: uma jovem banhista, segurando o sutiã de seu biquíni sobre
os seios com uma das mãos e a outra sobre a boca; a mãe levantando sua
filha do chão e afastando-se da beira d’água; a expressão de desgosto dos
donos dos cachorros, apontando para Marley; o dono de Matador, com
seu pescoço túrgido, inflado, gritando. Marley terminara de andar em
círculos e se agachara, olhando para cima como se estivesse orando. E
ouvi minha própria voz se elevar acima do alarido, desenrolando-se em
um estranho, gutural e distorcido urro:
— Nãããàãããããããããããooooo!
Eu quase o peguei, estando a poucos passos dele:
— Marley, não! — exclamei. — Não, Marley, não! Não! Não!
Não!
Não adiantou. Ao alcançá-lo, ele explodiu em uma diarréia
aquosa. Todo mundo deu um passo para trás, recolhendo-se, refugiandose
em um lugar mais alto. Os donos agarraram seus cachorros. Os
banhistas ergueram suas toalhas. Então, tudo acabou. Marley deixou a
água e passou para a areia, sacudiu-se com prazer, e virou-se para olhar
para mim, arfando de felicidade. Tirei um saco plástico do meu bolso e
segurei-o no ar, sem poder fazer nada. Logo vi que não ajudaria muito. As
ondas continuaram batendo espalhando os dejetos de Marley pela água e
deixando-os sobre o raso.
— Cara — disse o dono de Matador num tom de voz que me fez
perceber como os porcos selvagens devem se sentir no momento do
golpe final e fatal de Matador —, isso não foi legal.
Não, não fora nada legal. Marley e eu havíamos violado a regra
sagrada da Praia dos Cães. Havíamos sujado a água, não apenas uma,
mas duas vezes, e estragado a manhã de todo o mundo. Era o momento
de bater em rápida retirada.
— Desculpe! — murmurei para o dono de Matador, enquanto
prendia a guia na coleira de Marley. — Ele bebeu muita água salgada.
Ao entrar de volta no carro, joguei uma toalha sobre Marley e
esfreguei-o com vigor. Quanto mais eu esfregava, mais ele se sacudia, e
logo fiquei coberto de areia, água e pêlos. Eu queria zangar com ele.
Queria esganá-lo. Mas agora era tarde. Além disso, quem não teria
passado mal depois de beber meio litro de água salgada? Como em
muitos de seus infortúnios, este não acontecera por mal nem fora
premeditado. Não aconteceu como se ele tivesse desobedecido a uma
ordem ou se comportado assim para me humilhar. Ele não conseguiu
evitar o que aconteceu. E verdade que acontecera no lugar e na hora
errados, e na frente de todas as pessoas erradas. Eu sabia que ele era
uma vítima de sua capacidade mental reduzida. Ele foi o único cão em
toda a praia suficientemente burro para beber água salgada. Meu cão
sofria de deficiência mental. Como poderia condená-lo por isso?
— Pode ir desfazendo essa cara de alegria — eu disse, colocando-o
no banco de trás do carro.
Mas ele se sentia satisfeito. Ele não iria se sentir mais feliz se eu
tivesse comprado uma ilha do Caribe para ele. Mas ele não sabia que
esta seria a última vez que iria colocar suas patas no mar. Seus dias — ou
melhor, suas horas — como vagabundo de praia estavam contadas.
— Bem, Cão do Mar — eu disse, dirigindo de volta para casa, —
você conseguiu desta vez. Se os cachorros forem banidos da Praia dos
Cães, saberemos por quê.
Isso levaria mais alguns anos para ocorrer, mas, no fim, foi
exatamente o que aconteceu.

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