29. O Clube dos Cães Malvados

Quando cheguei ao trabalho na manhã seguinte, a luzinha
vermelha da caixa de mensagens do meu telefone estava piscando. A
maioria das pessoas que escreveu ou telefonou queria simplesmente
expressar sua solidariedade, dizer que também trilhara esse caminho,
e que sabia o que minha família estaria passando. Outros tinham
cachorros cujas vidas estavam caminhando para o inevitável fim;
temiam o que sabiam que estava por acontecer, da mesma forma que
havíamos temido.
Um casal escreveu: “Entendemos perfeitamente e sentimos que
vocês tenham perdido Marley, assim como sentimos ter perdido Rusty.
Sempre sentiremos saudade deles, e eles jamais serão substituídos”.
Joyce, uma leitora, escreveu: “Obrigada por nos lembrar de Duncan, que
está enterrado no quintal de nossa casa”. Uma moradora do subúrbio,
chamada Debi, acrescentou: “Nossa família entende como você se
sente. No último Dia do Trabalho tivemos de sedar nosso labrador
dourado Chewy. Ele tinha treze anos e também muitos dos problemas
que você citou em relação ao seu cachorro. Quando não conseguiu
sequer se levantar para sair para se aliviar naquele dia, percebemos que
não poderíamos mais manter aquele sofrimento. Também fizemos um
enterro no quintal de casa, debaixo de um bordo vermelho que será
sempre seu memorial”.
Uma funcionária de um departamento pessoal chamada Mônica,
dona da labradora Katie, escreveu: “Minhas condolências e lágrimas
para vocês. Minha querida Katie tem apenas dois anos e eu sempre me
pergunto: Mônica, como é que você permite que esta criatura
maravilhosa tome conta de seu coração desse jeito?”. De Carmela:
“Marley deve ter sido um ótimo cão para ter uma família que o amava
tanto. Só quem tem cães pode entender o amor incondicional que eles
oferecem e a dor imensa quando eles se vão”. De Elaine: “Nossos
animais de estimação têm vida tão curta e, ainda assim, passam a
maior parte do tempo esperando que voltemos para casa todos os dias. É
impressionante quanto amor e alegria eles trazem para nossas vidas, e
quanto nos aproximamos uns dos outros por causa deles”. De Nancy:
“Os cães são uma das maravilhas da vida e enriquecem tanto a nossa”.
De MaryPat: “Até hoje sinto saudade do barulho que Max fazia andando
pela casa farejando tudo; este silêncio enlouquece qualquer um
principalmente à noite”. De Connie: “Amar um cão é a coisa mais
incrível, não é mesmo? Faz com que nossos relacionamentos com as
pessoas pareçam tão chatos quanto um prato de cereal”.
Quando as mensagens finalmente pararam de chegar, vários dias
depois, resolvi contá-las. Cerca de oitocentas pessoas, que amavam
cães, se sentiram compelidas a me escrever. Tamanho
transbordamento foi uma grande catarse para mim. Quando terminei
de ver todas as mensagens — e respondido o máximo que pude — eu
me sentia melhor. Eu fazia parte de uma gigantesca rede de apoio
cibernético. Meu sofrimento pessoal havia se transformado em uma
sessão de terapia pública e, no meio dessa multidão, ninguém tinha
vergonha de admitir uma dor verdadeira, pungente, por causa de algo
aparentemente tão sem importância quanto um velho cão fedido.
As pessoas escreveram e telefonaram também por outro motivo.
Queriam questionar o argumento central de minha coluna, a parte em
que insisti em dizer que Marley era o animal mais mal-educado do
mundo. “Desculpe”, dizia a maioria das respostas, “mas seu cão não
pode ter sido o pior do mundo, porque o meu era”. Para provar o que
diziam, me forneciam relatos detalhados das coisas deploráveis que
seus animais de estimação faziam. Li sobre cortinas rasgadas, lingerie
roubada, bolos de aniversário devorados, interiores de carros
destruídos, fugas grandiosas, e até um anel de noivado engolido, o que
fez o gosto de Marley por correntes de ouro parecer coisa pequena.
Minha caixa de mensagens parecia um programa de televisão, Cães
Malvados e Pessoas que gostam deles, com vítimas dispostas a fazer fila
para se vangloriar, não porque seus cães fossem maravilhosos, mas
porque eram terríveis. O mais estranho é que a maioria das histórias de
atrocidades envolvia grandes labradores malucos como o meu. Não
estávamos sozinhos, no final das contas.
Uma mulher chamada Elyssa descreveu como seu labrador Mo
sempre escapava de dentro de casa quando o deixavam sozinho,
normalmente, quebrando a tela das janelas. Elyssa e seu marido
achavam que iriam segurar Mo fechando e trancando todas as janelas do
andar térreo. Eles não se lembraram de fechar também as janelas do
andar de cima. “Um dia, meu marido chegou em casa e viu a tela da
janela do andar de cima pendurada. Ele ficou morrendo de medo de
procurar nosso cachorro”, ela escreveu. Quando seu marido já estava
esperando pelo pior, “Mo surgiu, de repente, de trás da casa, com a
cabeça baixa. Ele sabia que estava encrencado, mas ficamos
impressionados pelo fato de ele não ter se machucado. Ele tinha saído
pela janela e caído sobre um arbusto, que amortizou sua queda”.
Larry, o labrador, engoliu o sutiã de sua dona e depois de dez dias
colocou-o inteiro para fora com um arroto. Gypsy, outro labrador de
gostos ousados, devorou a veneziana de uma janela. Jason, uma mistura
de setter irlandês com labrador, destruiu um tubo de um metro e meio
de um aspirador de pó, “com todo o revestimento interno”, contou seu
dono, Mike. “Jason também comeu um pedaço de uma parede de gesso
abrindo um buraco de mais de um metro de diâmetro e abriu outro de
igual tamanho no tapete, a partir de seu lugar favorito ao lado da
janela”, escreveu Mike, acrescentando: “mas eu adorava aquele animal”.
Phoebe, uma labrador não puro-sangue, foi expulsa de dois
canis e impedida de voltar, escreveu sua dona, Aimee. “Parecia que ela
era a líder da gangue, abrindo não apenas sua gaiola, mas fazendo esse
favor a dois outros cães. Eles, então, se serviam de todos os tipos de
petiscos durante a noite”. Hayden, um labrador de aproximadamente
46 quilos, comia praticamente tudo o que suas garras pudessem
alcançar, contou sua dona Carolyn, incluindo uma caixa inteira de
comida para peixe, um par de chinelos de camurça, e um tubo de
cola, “não tudo ao mesmo tempo”. Ela acrescentou: “Mas seu melhor
momento foi quando ele arrancou o batente da porta da garagem,
porque eu, ingenuamente, prendera sua guia ali para que ele tomasse
sol.”
Tim informou que seu labrador amarelo, Ralph, gostava de roubar
comida tanto quanto Marley, só que era mais esperto. Um dia, antes de
sair, Tim colocou um grande pedaço de chocolate em cima da geladeira,
onde ficaria fora do alcance de Ralph. O cão, contou seu dono, abriu as
gavetas do armário da cozinha e usou-as como escada para subir no
balcão, onde conseguiu se apoiar nas patas traseiras e alcançar o
chocolate, que desaparecera sem deixar vestígios quando seu dono voltou
para casa. Apesar da overdose de chocolate, Ralph não passou mal. “Em
outra ocasião”, Tim escreveu, “Ralph abriu a geladeira e consumiu tudo o
que havia dentro, que estava nos potes, inclusive”.
Nancy separou minha coluna para guardá-la, porque Marley
lembrava demais sua labradora Gracie. “Deixei o artigo sobre a mesa
da cozinha e me virei para pegar a tesoura”, escreveu Nancy. “Quando
me virei de volta, Gracie tinha engolido a coluna”.
Uau, eu me sentia melhor a cada minuto! Marley não parecia
mais tão terrível. Pelo menos, o que não iria lhe faltar era companhia no
Clube dos Cães Malvados. Eu trouxe várias das mensagens para casa
para compartilhar com Jenny, que ria pela primeira vez desde a morte
de Marley. Meus novos amigos da Irmandade Secreta dos Donos de
Cachorros Desajustados nos ajudaram mais do que eles poderiam
imaginar.
Os dias se transformaram em semanas e o inverno derreteu na
primavera. Narcisos começaram a brotar e a florescer em torno do
túmulo de Marley, e delicadas flores brancas de cerejeira flutuavam sobre
eles. Aos poucos, a vida sem nosso cachorro se tomou mais tranqüila.
Havia dias que se passavam em que nem me lembrava dele, mas então
um detalhe — um pêlo sobre meu suéter, o barulho da guia quando abria
a gaveta de meias — subitamente trazia-o de volta. Com o passar do
tempo, as lembranças passaram a ser mais agradáveis do que dolorosas.
Momentos que eu esquecera fazia muito tempo, de repente, surgiam em
minha mente com clareza cristalina, como se fossem clipes de velhos
vídeos caseiros: o modo como Lisa, a vítima do ataque, havia se inclinado
e beijado Marley no focinho depois que saiu do hospital. Como a equipe
do filme o adulava. Como a mulher dos correios o enganava todos os dias
na porta da frente. Como ele segurava as mangas com as patas para
descascá-las. Como ele tentava abocanhar as fraldas dos bebês com
aquele olhar de contentamento, como se estivesse drogado, e como
implorava por seus calmantes como se fossem salgadinhos. Pequenos
momentos que provavelmente nem valeriam a pena serem lembrados,
mas ali estavam eles, surgindo aleatoriamente em minha tela de cinema
mental nas horas e nos lugares mais improváveis. A maior parte deles me
fazia sorrir; alguns deles me faziam morder os lábios e pensar.
Eu estava em uma reunião com a equipe de redação quando me
sobreveio esta: estávamos em West Palm Beach, quando Marley ainda
era filhote e Jenny e eu, recém-casados, ainda sonhávamos acordados.
Estávamos caminhando ao longo da Intracoastal Waterway em uma
manhã fria de inverno, de mãos dadas, e Marley seguia na frente, nos
puxando. Deixei que ele brincasse no quebra-mar, que tinha uns
cinqüenta centímetros de largura e ficava a cerca de um metro de altura
da superfície da água.
— John! — Jenny reclamou. — Ele pode cair.
Olhei para ela, descrente.
— Você acha que ele é bobo? — perguntei. — O que você acha
que ele vai fazer? Andar até a beira e se lançar no ar?
Dez segundos depois foi exatamente o que ele fez, caindo na
água e fazendo muito barulho, o que exigiu que nos empenhássemos
em uma complicada operação de resgate para puxá-lo de volta à terra
firme.
Alguns dias depois, eu estava dirigindo para uma entrevista,
quando, do nada, me veio outra cena do início do nosso casamento:
uma romântica escapada de fim de semana para um chalé na praia na
Ilha Sanibel, antes da chegada das crianças. O noivo, a noiva — e
Marley. Eu tinha esquecido completamente daquele fim de semana, e
ali estava ele de novo, sendo reprisado em cores vivas: atravessamos o
Estado de carro com Marley enfiado entre nós, o nariz batendo de vez
em quando na alavanca do câmbio e desengatando a marcha. Demos
banho nele na banheira do quarto que alugamos depois de passar um
dia na praia, com espuma, água e areia voando para todo o lado. E,
mais tarde, Jenny e eu fazendo amor sob os lençóis de algodão frescos,
com uma brisa do oceano soprando sobre nós, e o rabo comprido de
Marley batendo no colchão.
Ele foi o personagem central de alguns dos capítulos mais felizes de
nossas vidas. Capítulos de amor jovem e novos começos, princípios de
carreiras e bebês de colo. De estrondosos sucessos e frustrações
arrasadoras; de descobertas, liberdade e auto-realização. Ele entrou em
nossas vidas quando estávamos tentando imaginar como seria. Ele se
juntou a nós quando estávamos administrando o que todo casal acaba
tendo de enfrentar mais cedo ou mais tarde, o processo por vezes doloroso
de forjar um futuro partilhado a partir de duas histórias com passados
distintos. Ele se tomou parte desse tecido unificado, de textura fina
constituída por fios inseparáveis nesta trama que nos formava. Assim como
o ajudamos a se transformar no cão de família que acabou se tornando,
ele ajudou a nos transformar em um casal, em pais, em pessoas que
adoram animais, em adultos. Apesar de tudo, de todas as frustrações e
expectativas não realizadas, Marley nos deu um presente gratuito, porém
de valor inestimável. Ele nos ensinou a arte do amor incondicional. Como
oferecê-lo e como aceitá-lo. Quando isso existe, a maior parte das outras
peças acaba por se encaixar.
No verão depois de sua morte, instalamos uma piscina, e não pude
deixar de pensar no quanto Marley, nosso incansável cão aquático, teria
adorado, adorado mais do que qualquer um de nós, mesmo arranhando a
borda com suas patas e entupindo o filtro com seu pêlo. Jenny estava
maravilhada com a facilidade que era manter a casa limpa sem um
cachorro soltando pêlo, salivando e sujando tudo dentro. Tive de admitir
que era muito agradável andar descalço pela grama sem ter de tomar
cuidado onde pisar. Definitivamente, o jardim estava mais bonito sem
um caçador de coelhos pesadão correndo por toda parte. Não havia
dúvida, a vida sem um cachorro era muito mais fácil e imensamente
mais simples. Podíamos sair no fim de semana sem ter de nos preocupar
em conseguir acomodações para ele. Podíamos sair para jantar sem ficar
preocupados com os bens de família correrem perigo. As crianças podiam
comer sem ter de vigiar seus pratos. O cesto do lixo não precisava mais
ficar no balcão da cozinha quando saíamos. Podíamos sentar e apreciar
em paz o maravilhoso espetáculo de uma boa tempestade de raios de
novo. Eu gostava principalmente da liberdade de andar pela casa sem ter
um gigante amarelo grudado nos meus calcanhares.
Mesmo assim, como família, faltava algo.
Uma manhã no final do verão, quando desci para tomar café da
manhã, Jenny me deu um pedaço do jornal dobrado em uma seção para
que eu visse o que estava escrito.
— Você não vai acreditar nisso — ela disse.
Uma vez por semana, o jornal local mostrava um dos cachorros
recolhidos pelo abrigo e que precisava de um lar. A nota sempre
mostrava uma foto do cachorro, seu nome, e fazia uma breve
descrição, como se o próprio cachorro estivesse falando, defendendo a
sua causa. Era uma brincadeira que o pessoal do abrigo fazia para que
os animais parecessem charmosos e adoráveis. Sempre nos divertíamos
com os currículos dos cachorros, senão por outro motivo, pelo menos
devido ao esforço que eles faziam para mostrar o melhor de animais
indesejados que já haviam sido abandonados ao menos uma vez.
Nesse dia, olhando para mim naquela página de jornal estava uma
cara que reconheci instantaneamente. Nosso Marley. Ou pelo menos
um cachorro que poderia ser seu gêmeo idêntico. Era um grande
labrador amarelo com uma cabeça quadrada, sobrancelhas vincadas e
orelhas de abano jogadas para trás em um ângulo engraçado. Ele estava
olhando diretamente para a lente da câmera com uma intensidade tão
vibrante que dava para ver que, assim que tiraram a foto, ele derrubou o
fotógrafo no chão e tentou engolir a câmera. Sob a foto estava o nome:
Lucky. Li o anúncio em voz alta. Era isto o que Lucky tinha a dizer sobre
si mesmo: “Cheio de vigor! Eu me daria bem em um lar tranqüilo,
enquanto aprendo a controlar meu nível de energia. Não tive uma vida
fácil, por isso, minha nova família terá de ser paciente comigo e
continuar a me ensinar boas maneiras”.
—Meu Deus! — exclamei. — É ele! Ele retornou dos mortos!
—Reencarnação — completou Jenny.
Era estranho como Lucky se parecia fisicamente com Marley, e
também na descrição. Cheio de vigor? Problemas para controlar a
energia? Trabalhar as boas maneiras? Ser paciente? Estávamos bastante
familiarizados com esses eufemismos, pois já tínhamos usado todos eles.
Nosso cão mentalmente desequilibrado havia voltado, jovem e forte
novamente, e mais descontrolado do que nunca. Ficamos ali, ambos de
pé, olhando para o jornal, sem dizer uma palavra.
— Acho que podíamos ir até lá dar uma olhada nele — eu disse,
finalmente.
—Só por diversão — Jenny acrescentou.
—Certo. Só para satisfazer nossa curiosidade.
—Que mal há em olhar?
—Nenhum — respondi.
—Então, por que não?
—O que temos a perder?

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