6. Meus biscoitos saem queimados

Eu não recomendo viajar pelas sombras se você tem medo de:
a) Escuro.
b) Arrepios gelados por sua espinha.
c) Barulhos estranhos.
d)
Ir tão rápido ao ponto de parecer que seu rosto vai desgrudar.
Em outras palavras, achei incrível. Num minuto, eu não conseguia ver
nada. Só conseguia sentir o pelo da Senhora O’Leary e meus dedos
entrelaçados nos fios de bronze de sua coleira de cachorro.
No minuto seguinte, as sombras transformaram-se em uma nova cena.
Estávamos em um penhasco nos bosques de Connecticut. Ao menos, parecia
Connecticut pelas últimas vezes que estive lá: muitas árvores, muros baixos
de pedras, casas enormes. Sob um dos lados do penhasco, uma estrada surgia
por entre um desfiladeiro. Sob outro lado tinha o jardim de alguém. A
propriedade era grande – mais mato do que grama. Era uma casa branca de
dois andares colonial. Mesmo a propriedade sendo do outro lado da colina da
estrada, era como se a casa estivesse no meio do nada. Eu conseguia ver a luz
brilhando pela janela da cozinha. Um velho balanço pendia abaixo de uma
macieira.
Eu não conseguia imaginar viver numa casa assim, com jardim e tudo.
Eu tinha vivido em um apartamento minúsculo ou em um dormitório de
escola por toda minha vida. Se essa era a casa de Luke, eu me perguntava por
que ele algum dia quis fugir.
Senhora O’Leary cambaleou. Eu me lembrava do que Nico havia dito
sobre as viagens pelas sombras cansá-la, então eu desci de suas costas. Ela
bocejou, mostrando grandes dentes que botariam medo até em um T.rex,
depois rodou em um círculo e deitou tão forte que o chão tremeu.
Nico apareceu bem ao meu lado, como se as sombras tivessem
escurecido e criado ele. Ele cambaleou, mas eu o segurei pelo braço.
“Estou bem,” ele virou-se, fixando seus olhos.
“Como você fez isso?”
“Prática. Umas poucas corridas pelas paredes. Poucas viagens
acidentais para a China”
Senhora O’Leary começou a ressonar. Se não fosse pelo barulho do
tráfego atrás de nós, tenho certeza que ela teria acordado toda vizinhança.
“Você vai tirar um cochilo também?” eu perguntei a Nico.
Ele balançou sua cabeça. “A primeira vez em que viajei pelas sombras,
eu dormi por uma semana. Agora ela só me deixa um pouco sonolento, mas
eu não consigo viajar por mais de duas vezes em uma noite. Senhora O’Leary
não vai a lugar algum por enquanto.”
“Então conseguimos um bom tempo em Connecticut.” Eu olhei para a
casa branca colonial. “E agora?”
“Tocamos a campainha,” Nico disse.
Se eu fosse a mãe de Luke, não teria aberto a porta no meio da noite
para duas crianças estranhas. Mas eu não tinha nada a ver com a mãe de
Luke.
Eu soube disso antes mesmo de nós chegarmos à porta. A calçada era
rodeada por aqueles bichinhos de pelúcia que você vê em lojas de presente.
Havia miniaturas de leões, porcos, dragões, hidras, até mesmo um pequeno
Minotauro, enrolado em uma fralda de Minotauro. Em razão das condições
em que ele estava, a criaturazinha devia de estar sentada ali já há um longo
tempo – desde que a neve derreteu com a chegada da primavera, pelo menos.
Uma das hidras tinha uma arvorezinha nascendo por entre seu pescoço.
A frente da varanda era cheia de mensageiros dos ventos. Pedaços de vidros
brilhantes e metal tilintavam com a brisa. Fios de cobre tilintavam igual a água, o
que me lembrou que eu precisava usar o banheiro. Não sei como a Senhora
Castellan conseguia suportar esse barulho todo.
A porta da frente era pintada de turquesa. O nome CASTELLAN estava
escrito em inglês, e abaixo em Grego: Δτοικήτής φρούρίον.
Nico olhou para mim. “Preparado?”
Ele mal tocou na porta quando ela escancarou-se.
“Luke!” a senhora choramingou feliz.
Ela parecia com alguém que gostava de ficar metendo o dedo em tomadas.
Seu cabelo branco estava em tufos em pé por sua cabeça. Seu avental rosa tinha
marcas de queimado e manchas de cinzas. Quando ela sorria, seu rosto parecia ser
esticado de um jeito não natural, e a luz forte em seus olhos me fez perguntar se ela
era cega.
“Oh, meu menininho!” Ela abraçou Nico. Eu estava tentando entender por
que ela pensava que Nico era Luke (eles não tinham nada a ver), foi quando ela
sorriu para mim e disse, “Luke!”
Ela esqueceu totalmente de Nico e me deu um abraço. Ela cheirava a
biscoitos queimados. Ela era tão magra quanto um espantalho, mas isso não a
impediu de quase me esmagar.
“Entre!” ela insistiu. “Seu almoço já está pronto!”
Ela nos empurrou pra dentro. A sala era mais estranha do que o jardim.
Espelhos e velas ocupavam cada lugar vazio. Eu não podia olhar pra lugar algum
sem ver meu reflexo. Acima da lareira, um pequeno Hermes pendia do segundo
ponteiro de um relógio. Eu tentei imaginar o deus mensageiro se apaixonando por
essa senhora, mas a idéia era muito bizarra.
Então eu notei uma porta retrato na lareira, e congelei. Era idêntico ao
desenho de Rachel – Luke por volta de uns nove anos, com cabelo loiro e um grande
sorriso sem dois dentes. A falta da cicatriz em seu rosto o fez parecer como uma
pessoa diferente – descontraído e feliz. Como Rachel podia saber dessa foto?
“Por aqui, querido!” Senhora Castellan me levou para os fundos da casa. “Oh,
eu disse pra eles que você viria. Eu sabia!”
Ela nos sentou na mesa da cozinha. Empilhado no balcão, havia centenas – eu
digo centenas mesmo – de vasilhas com sanduíches de pasta de amendoim e geléia.
Os do fundo eram verdes e embolorados como se eles tivessem lá há muito tempo.
O cheiro me lembrava do meu armário da sexta série – e isso não era muito bom.
Em cima do fogão havia formas de biscoitos. Cada uma tinha dúzias de
biscoitos queimados. Na pia tinha montanhas de garrafas de Kool-Aid. Um bichinho
da Medusa estava sobre a torneira como se ela estivesse protegendo a bagunça.
Senhora Castellan estava cantarolando enquanto pegava a pasta de amendoim
e geléia, começando a fazer novos sanduíches. Algo estava queimando no forno.
Tive a sensação de que mais biscoitos estavam a caminho.
Sobre a pia, colocados ao redor da janela, havia dúzias de recortes de figuras
de revistas e matérias de jornais – fotos de Hermes dos logos da FTD Flores e
Lavadores à Jato, fotos de caduceus de anúncios médicos.
Meu coração apertou. Eu queria sair daquele lugar, mas a Senhora Castellan
continuava sorrindo para mim enquanto ela fazia os sanduíches, como se ela
estivesse certificando-se de que eu não fugiria.
Nico tossiu. “Hum, Senhora Castellan?”
“Sim?”
“Precisamos perguntar sobre seu filho.”
“Ah, sim! Eles me disseram que ele não voltaria. Mas eu não acreditei.” Ela
apertou minha bochecha com carinho, me dando listras de pasta de amendoim.
“Qual foi a última vez que você viu ele?” Nico perguntou.
Seus olhos perderam o foco.
“Ele era muito novo quando se foi,” ela disse melancolicamente. “Terceira
série. É muito jovem para fugir! Ele disse que voltaria para o almoço. E eu esperei.
Ele gostava de sanduíches de pasta de amendoim, biscoitos e Kool-Aid. Ele voltará
para o almoço logo...” Então ela olhou para mim e sorriu. “Por que, Luke, aí está
você! Você está lindo. Você tem os olhos de seu pai.”
Ela virou para as fotos de Hermes sobre a pia. “Agora, esse é um bom
homem. Sim, ele é. Ele vem me visitar, você sabe.”
O relógio tiquetaqueava na sala. Eu limpei a pasta de amendoim de meu rosto
e olhei para Nico suplicantemente, tipo, Podemos sair daqui?
“Senhora,” Nico disse. “O que, uh...o que aconteceu com seus olhos?”
Seu olhar parecia desfocado – como se ela estivesse tentando focar ele por
um caleidoscópio. “Por que, Luke, você sabe da história. Foi bem antes de você
nascer, não foi? Eu sempre fui especial, capaz de ver pela...o-que-todos-chamam.
“A Névoa?” Eu disse.
“Sim, querido.” Ela concordou animadamente. “E eles me ofereceram um
emprego importante. Pelo quão especial eu era!”
Eu olhei para o Nico, mas ele parecia tão confuso quanto eu.
“Que tipo de trabalho?” Eu perguntei. “O que aconteceu?”
A Senhora Castellan franziu a testa. Sua faca pairou sobre o sanduíche. “Meu
querido, não funcionou, não é? Seu pai me avisou para não tentar. Ele disse que era
muito perigoso. Mas eu tinha que tentar. Era meu destino! E agora...eu ainda não
consigo tirar as imagens da minha cabeça. Elas fazem as coisas parecerem tão
estranhas. Você gostaria de alguns biscoitos?”
Ela tirou a forma do forno e despejou um monte de biscoitos de lascas de
chocolate carbonizados.
“Luke era tão carinhoso,” Senhora Catellan murmurou. “Você sabe que ele
foi embora para me proteger. Ele disse que se ele partisse, os monstros parariam de
me ameaçar. Mas eu disse a ele que os monstros não eram problema! Eles sentavam
na calçada o dia todo, e eles nunca entravam.” Ela pegou a Medusa de pelúcia do
parapeito da janela. “Eles entravam, Dona Medusa? Não, sem problema algum.” Ela
olhou para mim alegremente. “Estou tão feliz que você tenha voltado para casa.
Sabia que você não iria me decepcionar!”
Eu afundei em minha cadeira. Eu me imaginei como Luke, sentado nessa
mesa, oito ou nove anos, e começando a perceber que minha mãe não estava
realmente ali.
“Senhora Castellan,” eu disse.
“Mãe,” ela corrigiu.
“Hum, sim. Você já viu o Luke desde que ele saiu de casa?”
“Mas é claro!”
Eu não sabia se ela estava imaginando isso ou não. De tudo o que eu sabia,
sempre que o carteiro batia na sua porta, ele era o Luke. Mas Nico se endireitou
esperançosamente.
“Quando?” ele perguntou. “Quando Luke visitou a senhora da última vez?”
“Bem, foi...Oh meu deus...” uma sombra passou por seu rosto. “Da última
vez, ele estava tão diferente. Uma cicatriz. Uma cicatriz horrível, e sua voz estava
cheia de dor...”
“Seus olhos,” eu disse. “Eles estavam dourados?”
“Dourado?” Ela piscou. “Não. Que bobagem. Luke tem olhos azuis. Lindos
olhos azuis!”
Então Luke tinha vindo aqui mesmo, e isso tinha acontecido antes do último
verão – antes dele se tornar Cronos.
“Senhora Catellan?” Nico pôs sua mão no velho ombro da mulher. “Isso é
muito importante. Ele te pediu algo?”
Ela se endireitou como se tentasse se lembrar. “Minha – minha benção. Não é
meigo?” Ela olhou para nós insegura. “Ele estava indo para o rio, e ele disse que
precisava da minha benção. Eu a dei para ele. É claro que dei.”
Nico olhou para mim triunfantemente. “Obrigado, senhora. Essa era a
informação que nós –”
Senhora Catellan ofegou. Ela se dobrou, e sua bandeja de biscoitos caiu no
chão. Nico e eu pulamos da mesa.
“AHHHH” ela endireitou-se. Eu me afastei e quase cai por cima da mesa, por
causa de seus olhos – eles estavam com um brilho verde.
“Minha criança,” ela falou com uma voz muito mais profunda. “Deve
protegê-lo! Hermes, ajude! Meu filho não! Não é o seu destino – não!”
Ela pegou Nico pelos ombros e começou a chacoalhá-lo como se fosse para
fazê-lo entender. “Não o seu destino!”
Nico deu um grito engasgado e a afastou. Ele pegou no punho de sua espada.
“Percy, precisamos sair –”
De repente a Senhora Castellan caiu. Eu deslizei para frente e a peguei antes
que ela pudesse bater no tampo da mesa. Eu consegui colocá-la numa cadeira.
“Senhora C.?” perguntei.
Ela murmurou algo incompreensível e sacudiu a cabeça. “Jesus. Eu...eu
deixei os biscoitos cair. Que descuido meu.”
Ela piscou, e seus olhos voltaram ao normal – ou pelo menos, o que eles eram
antes. O brilho verde tinha ido embora.
“Você está bem?” eu perguntei.
“Mas é claro, meu querido. Estou bem. Por que pergunta?”
Eu olhei para Nico, ele mexeu sua boca, falando a palavra Sair.
“Senhoria C., você estava nos contando algo,” eu disse. “Algo sobre seu
filho.”
“Estava?” ela disse sonhadoramente. “Sim, seus olhos azuis. Estávamos
falando de seus olhos azuis. Um belo rapaz!”
“Temos que ir,” Nico disse com urgência. “Diremos a Luke...uh, diremos a
ele que você mandou um oi.”
“Mas vocês não podem ir!” Senhora Castellan bateu os pés, e eu me afastei.
Era ridículo sentir medo de uma senhora, mas o modo como sua voz mudou, o modo
como ela chacoalhou Nico...
“Hermes chegará logo,” ela prometeu. “Ele vai querer ver seu garoto!”
“Talvez da próxima vez,” eu disse. “Obrigado por – ” Eu olhei para os
biscoitos queimados no chão. “Obrigado por tudo.”
Ela tentou nos parar, oferecer Kool-Aid, mas eu tinha que sair daquela casa.
Na varanda, ela agarrou minha cintura e eu quase pulei. “Luke, se cuide pelo menos.
Me prometa que você vai se cuidar.”
“Eu irei...mãe.
Aquilo a fez sorrir. Ela soltou minha cintura, e enquanto ela fechava a porta
da frente eu podia ouvir ela falando para as velas: “Você ouviram isso? Ele se
cuidará. Eu disse a vocês que ele iria!”
Enquanto a porta fechava, Nico e eu corremos. Os bichinhos de pelúcia da
varanda pareciam sorrir para nós enquanto passávamos.
De volta ao penhasco, Senhora O’Leary parecia ter encontrado uma amiga.
Uma agradável fogueira crepitava em um anel de rochas. Uma garota por
volta dos oito anos estava sentada com pernas cruzadas próxima a Senhora O’Leary,
acariciando as orelhas do cão infernal.
A garota tinha um cabelo castanho cinzento e vestia um vestido simples
marrom. Ela usava um lenço sobre sua cabeça, então ela parecia uma criança
pioneira – como o fantasma de Os Pioneiros ou algo assim. Ela mexeu no fogo com
um graveto, e ele pareceu brilhar um vermelho mais forte do que o fogo normal.
“Olá,” ela disse.
Meu primeiro pensamento foi: um monstro. Quando você é um semideus e
você encontra uma garotinha meiga sozinha na floresta – essa é uma ótima hora de
você pegar sua espada e atacar. Mas, o encontro com a Senhora Castellan havia me
abalado muito.
Mas Nico se curvou para a menina. “Olá de novo, Senhora.”
Ela me estudou com os olhos tão vermelhos quanto bolas de fogo. Eu decidi
que o mais seguro era me curvar.
“Sente-se, Percy Jackson,” ela disse. “Vocês gostariam de jantar?”
Depois de olhar sanduíches de pasta de amendoim mofados e biscoitos
queimados, eu não estava com muito apetite, mas a garota balançou sua mão e um
piquenique apareceu em cima do fogo. Havia pratos de roast beef, batatas fritas,
cenouras amanteigadas, pão fresco, e um monte de outras comidas que eu não via
fazia um tempo. Meu estômago começou a roncar. Esse era o tipo de comida caseira
que as pessoas supostamente deveriam ter, mas elas nunca tinham. A garota fez um
biscoito de um metro e meio aparecer para Senhora O’Leary, que começou a deixálo
em migalhas.
Sentei perto de Nico. Pegamos nossa comida, e eu estava prestes a comer
quando eu pensei melhor.
Tirei parte da minha comida para as chamas, do mesmo jeito que fazíamos no
acampamento. “Para os deuses,” eu disse.
A garotinha sorriu. “Obrigada. Na oferta da chama, eu tenho um pouco de
cada sacrifício, você sabe.”
“Eu te reconheço agora,” eu disse. “Quando eu cheguei ao acampamento pela
primeira vez, você estava sentada perto do fogo, no meio do pavilhão.”
“Você não parou para conversar,” a garota se lembrou melancolicamente.
“Alas, a maioria nunca o fazem. Nico falou comigo. Ele foi o primeiro em muitos
anos. Todos apressados. Sem tempo para visitar a família.”
“Você é Héstia,” eu disse. “A Deusa das Chamas.”
Ela concordou.
Ok...assim ela parecia ter oito anos. Eu não perguntei. Aprendi que deuses
assumem a forma do que quiserem.
“Minha senhora,” Nico perguntou, “por que você não está com os outros
Olimpianos, lutando contra Tifão?”
“Eu não sou muito de briga.” Seus olhos vermelhos faiscaram. Eu percebi que
eles só estavam refletindo as chamas. Eles eram ocupados por fogo – mas não como
os olhos de Ares. Os olhos dela eram cômodos e quentes.
“Além do mais,” ela disse, “alguém tem que manter as chamas caseiras
acesas, enquanto os deuses estão ausentes.”
“Então você está protegendo o Monte Olimpo?” eu perguntei.
“‘Proteger’ pode ser uma palavra muito forte. Mas se você precisar de algum
lugar quente e comida caseira, você é bem vindo. Agora coma.”
Meu prato estava cheio antes que eu percebesse. Nico começou rapidamente.
“Isso aqui está muito bom,” eu disse. “Obrigado, Héstia.”
Ela acenou com a cabeça. “Vocês fizeram uma boa visita a Senhora
Castellan?”
Por um momento eu havia me esquecido da velha senhora com seus olhos
brilhantes e seu sorriso maníaco, o modo como ela de repente pareceu estar
possuída.
“O que ela tem de errado, exatamente?” eu perguntei.
“Ela nasceu com um dom,” Héstia disse. “Ela pode ver através da Névoa.”
“Como minha mãe,” eu disse. E eu também pensei: Igual a Rachel. “Mas
aquela coisa brilhando em seus olhos –”
“Alguns lidam com a maldição da visão melhores que os outros,” a deusa
disse tristemente. “Por um tempo, a Senhora Castellan teve muitos talentos. Ela
atraiu a atenção de Hermes. Eles tiveram um lindo bebezinho. Durante um curto
tempo, ela foi feliz. E então ela foi longe demais.”
Lembrei do que a Senhora Castellan havia dito: Eles me ofereceram um
trabalho importante... Não funcionou. Perguntei-me que tipo de trabalho a deixou
assim.
“Em um minuto ela estava toda feliz,” eu disse. “E depois ela enlouqueceu
sobre o destino de seu filho, como se ela soubesse que ele tivesse virado Cronos. O
que aconteceu para... ela se dividir daquele jeito?”
O rosto da deusa escureceu. “Essa é uma história que eu não gosto de contar.
Mas a Senhora Castellan viu demais. Se você quer entender o Luke, primeiro você
tem que entender sua família.”
Eu pensei nas tristes fotos de Hermes coladas acima da pia da Senhora
Castellan. Perguntava-me se ela já era louca quando Luke era pequeno. Aqueles
olhos verdes poderiam assustar seriamente uma criança de nove anos. E se Hermes
nunca o tenha visitado, o deixado sozinho com sua mãe durante todos esses anos...
“Não me surpreendo por Luke ter fugido,” eu disse. “Digo, não foi certo
deixar sua mãe assim, mas ainda – ele era só uma criança. Hermes não devia tê-los
abandonado.”
Héstia acariciou atrás das orelhas de Senhora O’Leary. O cão infernal abanou
seu rabo e acidentalmente bateu em uma árvore.
“É fácil julgar os outros,” Héstia alertou. “Mas você seguiria os passos de
Luke? Procurar pelos mesmos poderes?
Nico abaixou seu prato. “Não temos escolha, minha senhora. É o único jeito
de Percy ter uma chance.”
“Hum.” Héstia abriu suas mãos e o fogo zuniu. Chamas atingiram dez metros
de altura no ar. O calor me atingiu no rosto. Depois o fogo voltou ao normal.
“Nem todos os poderes são incríveis.” Héstia olhou para mim. “Às vezes o
maior poder que tem é o poder de ceder. Você acredita em mim?”
“Aham,” eu disse. Qualquer coisa para ela manter as chamas como estavam.
A deusa sorriu. “Você é um bom herói, Percy Jackson. Não é muito
orgulhoso. Eu gosto disso. Mas você ainda tem muito que aprender. Quando
Dionísio se tornou um deus, eu dei meu trono para ele. Era o único jeito de evitar
uma guerra interna entre os deuses.”
“Isso desequilibrou o Conselho,” eu lembrei. “De repente havia sete caras e
cinco garotas.”
Héstia deu de ombros. “Essa era a melhor solução, não a perfeita. Agora eu
controlo o fogo. Eu desapareço vagarosamente nos fundos. Ninguém jamais
escreverá poemas épicos sobre os feitos de Héstia. A maioria dos semideuses nem
param para falar comigo. Mas isso não importa. Eu mantenho a paz. Eu cedo quando
é necessário. Você é capaz de fazer isso?”
“Eu não entendo o que você quer dizer.”
Ela me estudou. “Talvez ainda não. Mas em breve entenderá. Você
continuará com sua missão?”
“É por isso que você está aqui – para me alertar sobre o caminho?”
Héstia balançou sua cabeça. “Estou aqui porque quando tudo falha, quando
todos os outros deuses tiverem ido para a guerra, serei a única restante. Casa. Fogo.
Eu sou a última Olimpiana. Você deve se lembrar de mim quando você encarar a sua
última decisão.”
Eu não gostei do modo como ela falou última.
Olhei para Nico, e depois de volta aos olhos acolhedores de Héstia. “Eu tenho
que continuar minha senhora. Eu tenho que parar Luke... digo Cronos.”
Héstia acenou. “Muito bem. Eu não posso ser de muita ajuda, além do que eu
já te disse. Mas desde que você se sacrifique por mim, eu posso retornar para seu
próprio fogo. Te verei de novo, Percy, no Olimpo.”
Seu tom era agourento, talvez nosso próximo encontro não fosse muito feliz.
A deusa balançou sua mão e tudo desapareceu.
De repente eu estava em casa. Nico e eu estávamos sentados no sofá do
apartamento de minha mãe no Upper East Side. Essas eram as boas notícias. As más
notícias eram que o resto da sala estava ocupada por Senhora O’Leary.
Eu ouvi um grito abafado do quarto. A voz de Paul disse, “Quem pôs essa
parede de pelo no caminho da porta?”
“Percy?” minha mãe chamou. “Você está aqui? Está tudo bem?”
“Estou aqui!” eu gritei.
“WOOF!” Senhora O’Leary tentou virar para achar minha mãe, derrubando
todos os quadros das paredes. Ela só havia encontrado minha mãe uma vez (longa
história), mas ela a ama.
Demorou um tempo, mas finalmente conseguimos que as coisas dessem
certo. Depois de destruir a maioria dos móveis da sala e provavelmente ter deixado
nossos vizinhos muito irritados, conseguimos tirar meus pais do quarto para cozinha,
onde sentamos à mesa. Senhora O’Leary ainda ocupando toda a sala, mas ela estava
com a cabeça na porta da cozinha, então ela podia nos ver, o que a deixou feliz.
Minha mãe jogou para ela um bife tamanho família pelo chão, que desapareceu na
sua boca. Paul serviu limonada para o resto de nós enquanto eu contava sobre nossa
visita à Connecticut.
“Então é verdade.” Paul me olhava como se ele nunca tivesse me visto antes.
Ele estava vestindo seu roupão branco, agora coberto por pelo de cão infernal, e seu
cabelo grisalho estava bagunçado em várias direções. “Todo o negócio de monstros,
e ser um semideus... então é mesmo verdade.”
Eu concordei. Eu tinha contado a Paul no último outono, quem eu era. Minha
mãe tinha me dado uma força. Mas até esse momento, eu não achei que ele
realmente tivesse acreditado em nós.
“Desculpe sobre Senhora O’Leary,” eu disse “por ter destruído a sala e tudo
mais.”
Paul gargalhou como se ele estivesse contentíssimo. “Você está brincando?
Isso é incrível! Digo, quando eu vi as pegadas no Prius, eu pensei que talvez fosse
verdade. Mas isso!”
Ele acariciou o focinho de Senhora O’Leary. A sala chacoalhava – BOOM,
BOOM, BOOM – que poderia ser o batalhão da SWAT arrombando a porta ou a
Senhora O’Leary abanando seu rabo.
Eu não pude conter o sorriso. Paul era um cara muito legal, mesmo ele sendo
meu professor de Inglês assim como meu padrasto.
“Obrigado por não pirar,” eu disse.
“Ah, mas eu estou pirando,” ele garantiu, com seus olhos bem abertos. “Eu só
acho isso incrível!”
“É, bem,” eu disse, “talvez você não fique tão animado quando ouvir o que
vai acontecer.”
Eu contei a Paul e minha mãe sobre Tifão, e os deuses, e a batalha que estava
prestes a acontecer. Depois eu disse a eles o plano de Nico.
Minha mãe apertou seus dedos em volta do copo de limonada. Ela estava
vestindo seu roupão de flanela azul, e seu cabelo estava amarrado para trás. Ela tinha
começado a escrever um romance, como ela sempre quis fazer há anos, e eu poderia
dizer que ela estava escrevendo até tarde da noite, porque os círculos embaixo de
seus olhos estavam mais escuros do que o de costume.
Atrás dela, na janela da cozinha, a renda lunar brilhava com um tom prateado
no vaso de flores. Eu trouxe a planta mágica da Ilha de Calypso no verão passado, e
ela florescia muito sobre os cuidados de minha mãe. O cheiro sempre me acalmava,
mas também me deixava triste, porque me fazia lembrar de amigos perdidos.
Minha mãe respirou fundo, como se ela estivesse pensando em como me
dizer não.
“Percy, é muito perigoso,” ela disse. “Até mesmo para você.”
“Mãe, eu sei. Eu poderia morrer. Nico me explicou isso. Mas se nós não
tentarmos –”
“Todos morreremos,” Nico disse. Ele não tinha tocado em sua limonada.
“Senhora Jackson, não teremos chance contra uma invasão. E haverá uma invasão.”
“Uma invasão em Nova Iorque?” Paul disse. “Isso é possível? Como não
poderemos ver...os monstros?”
Ele disse a palavra como se ainda não acreditasse que ela fosse real.
“Eu não sei,” eu admiti. “Eu não vejo como Cronos conseguirá marchar por
Manhattan, mas a Névoa é forte. Tifão está atravessando o país agora mesmo, e os
mortais pensam que ele é um conjunto de tempestades.”
“Senhora Jackson,” Nico disse, “Percy precisa de sua benção. O processo tem
que começar desse jeito. Eu não tinha certeza antes de conhecer a mãe de Luke, mas
agora estou certo. Isso já foi feito com sucesso duas vezes. Ambas as vezes, a mãe
teve que dar a sua benção. Ela tem que estar disposta a deixar seu filho se arriscar.”
“Você quer que eu abençoe isso?” Ela balançou sua cabeça. “É loucura.
Percy, por favor –”
“Mãe, eu não consigo fazer isso sem você.”
“E se você sobreviver esse... esse processo?”
“Então eu irei para guerra,” eu disse. “Eu contra Cronos. E só um de nós
sobreviverá.”
Eu não disse a profecia completa – sobre a minha alma ser cortada ao meio e
ser o fim de meus dias. Ela não precisava saber que eu estava provavelmente
amaldiçoado. Eu só podia esperar que eu fosse capaz de parar Cronos e salvar o
resto do mundo antes de eu morrer.
“Você é o meu filho,” ela disse melancolicamente. “Eu não posso só...”
Eu teria que insistir para fazê-la concordar se eu queria ela de acordo. Mas eu
também não queria. Eu me lembrava da pobre Senhora Castellan em sua cozinha,
esperando seu filho voltar para casa. E eu percebi o quão sortudo eu era. Minha mãe
sempre esteve comigo, sempre tentando fazer as coisas o mais normal possível, até
com deuses e monstros e essas coisas. Ela tolerava eu sair em aventuras, mas agora
eu estava pedindo sua benção para algo que provavelmente me mataria.
Eu olhei para os olhos de Paul, e algum tipo de compreendimento passou
entre nós.
“Sally.” Ele pôs suas mão nas mãos de minha mãe. “Eu não posso afirmar
saber tudo o que você e Percy passaram todos esses anos. Mas parece que... que
Percy está fazendo algo nobre. Eu gostaria de ter essa coragem.”
Senti um bolo em minha garganta. Eu não recebia tantos elogios assim.
Minha mãe olhou para sua limonada. Ela parecia estar tentando não chorar.
Eu pensei no que Héstia havia dito, sobre o quão difícil era ceder, e eu percebi que
talvez minha mãe estivesse descobrindo isso agora.
“Percy,” ela disse, “eu te dou minha benção.”
Eu não senti nada de diferente. Nenhum brilho mágico encheu a cozinha, nem
nada disso.
Eu olhei para Nico.
Ele parecia mais ansioso do que nunca, mas ele acenou com a cabeça. “Está
na hora.”
“Percy,” minha mãe disse. “Uma última coisa. Se você...se você sobreviver a
essa luta com Cronos, me mande um sinal.” Ela revirou sua bolsa e me deu seu
celular.
“Mãe,” eu disse, “você sabe que semideuses e celulares –”
“Eu sei,” ela disse. “Mas só por precaução. Se você não tiver em condições
de ligar...talvez só um sinal que eu pudesse ver em qualquer lugar de Manhattan. Pra
eu saber que você está bem.”
“Como Teseo,” Paul sugeriu. “Ele deveria ter acendido velas brancas quando
ele chegou em casa em Atenas.”
“Tirando que ele esqueceu,” Nico disse. “E seu pai pulou do telhado do
palácio em desespero. Mas fora isso, é uma ótima ideia.”
“Que tal uma bandeira ou um lume?” minha mãe disse. “Do Olimpo – O
Empire State.”
“Algo azul,” eu disse.
Tivemos piadas durante anos sobre comida azul. Era minha cor favorita, e
minha mãe se desvirava por causa do meu senso de humor. Todo ano, meu bolo de
aniversario, meu ovo da Páscoa, minhas bengalas de açúcar de Natal, tudo tinha que
ser azul.
“Sim,” minha mãe concordou. “Eu estarei de olho em um sinal azul. E eu
tentarei evitar pular de telhados de palácios.”
Ela me deu um último abraço, e eu tentei não me sentir como se fosse uma
despedida. Eu dei as mãos ao Paul. Depois Nico e eu caminhos pela porta da
cozinha e olhamos para Senhora O’Leary.
“Desculpe, garota,” eu disse. “Hora da viagem pelas sombras de novo.”
Ela gemeu e cruzou suas patas em cima de seu focinho.
“Pra onde agora?” perguntei a Nico. “Los Angeles?”
“Não precisa,” ele disse. “Existe uma entrada mais perto pra o Mundo
Inferior.”

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