8. Uma batalha de Wills

Quando Marley não tinha ainda seis meses de idade, nós o
inscrevemos em aulas de adestramento. Deus sabia quanto ele
precisava delas. Apesar de todo o esforço bem-sucedido em devolver a
vareta aquele dia na praia, ele estava se tornando um aluno rebelde,
obtuso, selvagem e constantemente distraído, vítima de sua
incomensurável energia nervosa. Estávamos começando a imaginar que ele
não seria como os outros cachorros, como meu pai observou quando Marley
tentou trepar com seu joelho:
— Este cachorro tem um parafuso solto.
Definitivamente, nós precisávamos de ajuda profissional.
Nosso veterinário recomendou-nos um clube de treinamento de
cães na cidade que oferecia aulas de adestramento básicas às terças-feiras
à noite, no estacionamento por trás da loja de armamentos. Os
professores eram voluntários do clube, dedicados amadores que muito
provavelmente já haviam aprimorado ao máximo o comportamento de
seus próprios cães. O curso era de oito aulas e custava cinqüenta dólares,
que achamos ser de graça, especial-mente considerando que Marley
destruía um sapato de cinqüenta dólares em trinta segundos. E o clube
também garantia que, após a graduação, estaríamos levando uma perfeita
Lassie de volta para casa. Na matrícula, conhecemos; mulher que iria
ministrar as aulas a Marley. Era uma treinadora severa, que não admitia
bobagens, e que defendia a teoria de que não há cães incorrigíveis, apenas
donos sem sorte ou força de vontade suficiente.
A primeira aula pareceu provar o seu ponto de vista. Antes de
sairmos do carro, Marley viu os outros cães reunidos com seus donos do
outro lado da pista de automóveis. Uma festa! Ele saltou para fora do carro
a jato por cima de nós, arrastando a guia atrás dele. Ele foi de cão em cão,
cheirando-os, soltando pipi, babando para todos os lados. Para Marley, era
um festival de cheiros — tantos cachorros para cheirar num espaço tão
curto de tempo — e ele estava curtindo aquele momento, tomando
cuidado para se manter à minha frente enquanto eu corria atrás dele.
Toda vez que eu estava a ponto de pegá-lo, ele se adiantava mais alguns
metros. Finalmente, eu o cerquei e dei um salto à frente, aterrissando
com os dois pés sobre a guia dele. Isso fez com que ele parasse tão de
repente que, por um momento, pensei que tivesse quebrado o seu pescoço.
Ele caiu de costas, virou-se de lado e olhou para cima para mim com uma
expressão serena de quem tinha conseguido fazer o que queria.
Enquanto isso, a instrutora nos encarava com ar de desaprovação
como se eu tivesse resolvido dançar pelado na frente de todo mundo.
— Tome seu lugar, por favor — ela disse, seca.
Quando viu Jenny e eu puxando Marley até a sua posição, ela
acrescentou:
— Vocês vão ter de decidir qual de vocês dois irá treiná-lo.
Comecei a explicar que ambos queriam participar para que
cada um pudesse trabalhar com ele em casa, mas ela me cortou,
dizendo:
— Um cão — ela disse, de forma contundente — só pode
obedecer a um mestre.
Dei início a um protesto, mas ela me calou com o olhar —
suponho que o mesmo que usava para intimidar seus cães —, e passei
para o lado com o rabo entre as pernas, deixando Mestre Jenny no
comando.
Provavelmente, isso foi um erro. Marley já era bem mais forte do
que Jenny e ele sabia disso. A Sra. Dominatrix havia acabado de
iniciar sua introdução sobre a importância de estabelecer o domínio
sobre nossos animais de estimação, quando Marley decidiu que uma
poodle do outro lado da quadra merecia ser olhada mais de perto. Ele
arrancou arrastando Jenny atrás dele.
Todos os outros cachorros estavam sentados placidamente ao
lado de seus donos com a distância de três metros entre eles,
aguardando as instruções. Jenny estava lutando valentemente para
fincar os pés no chão e fazer Marley parar, mas ele seguiu em frente,
arrastando-a para o outro lado do estacionamento atrás do traseiro
daquela poodle. Minha mulher parecia uma esquiadora aquática
puxada por uma lancha de 24 pés. Todo mundo arregalou os olhos.
Alguns se afastaram, dando passagem. Eu cobri os meus.
Marley dispensava apresentações formais. Ele aterrissou na
poodle e imediatamente enfiou o nariz entre suas patas traseiras.
Imaginei que seria a forma masculina canina de perguntar:
— Você vem sempre aqui?
Depois que Marley examinou inteiramente a poodle, Jenny pôde
puxá-lo de volta para o seu lugar.
A Sra. Dominatrix anunciou, calmamente:
— Isto, turma, é um exemplo de cachorro a quem foi permitido
imaginar que ele era o macho mais importante de sua ninhada. Neste
momento, é ele quem comanda.
Como se quisesse provar o ponto da instrutora, Marley começou a
perseguir o seu próprio rabo, girando como um doido, as mandíbulas
estalando no ar, enrolando a guia em volta das pernas de Jenny até
imobilizá-la completamente. Tive pena dela, mas agradeci não estar em
seu lugar.
A instrutora continuou a aula, passando a ensinar os comandos
para sentar e deitar. Jenny ordenava:
— Sente!
E Marley pulava em cima dela e colocava as patas sobre seus
ombros. Ela empurrava seu traseiro para baixo e ele se virava para
receber um carinho na barriga. Ela tentava arrastá-lo de volta para o
lugar dele e ele agarrava a guia entre seus dentes, balançando sua
cabeça de um lado para outro como se estivesse duelando com uma
sucuri. Era horrível ficar olhando. Em determinado momento, abri os
olhos e vi Jenny deitada, de cara no asfalto e Marley por cima dela,
resfolegando alegremente. Mais tarde, ela me contou que estava
tentando mostrar a ele o comando para deitar.
No final da aula, quando Jenny e Marley vieram até onde eu
estava, a Sra. Dominatrix nos interceptou:
— Vocês realmente precisam controlar este animal — ela disse,
suspirando.
Bem, obrigado por este valioso conselho. E em pensar que
tínhamos nos matriculado apenas para contribuir com o lado cômico
da aula. Nenhum de nós disse nenhuma palavra. Apenas retornamos ao
carro nos sentindo humilhados, e dirigimos para casa em silêncio,
apenas com Marley arfando alto enquanto baixava a adrenalina da
experiência de sua primeira aula de adestramento.
Finalmente, eu disse:
— Uma coisa não se pode negar: ele adora escola.
Na semana seguinte, Marley e eu voltamos, desta vez sem Jenny.
Quando sugeri a ela que eu seria o elemento mais próximo de um cão
macho em casa, ela alegremente abriu mão de seu breve título de
mestre e comandante, e jurou que nunca mais iria dar as caras em
público novamente. Antes de sair de casa, virei Marley de costas no
chão e falei baixo no tom de voz mais sério possível:
— Sou eu quem manda! Não é você quem manda! Eu sou o
chefe! Entendeu, Cão-alfa?
Ele bateu o rabo no chão e tentou morder meus pulsos.
A aula daquela noite ensinava a andar junto, uma das minhas
especialidades. Eu estava cansado de lutar com Marley a cada passo.
Ele já havia derrubado Jenny uma vez, quando disparou atrás de um
gato, machucando seus joelhos. Já era hora de ele aprender a caminhar
tranqüila-mente ao nosso lado. Forcei-o até chegar ao nosso lugar na
pista, evitando que saltasse sobre cada um dos cachorros pelos quais ele
passava. A Sra. Dominatrix entregou-nos uma corrente com um aro de
aço fundido em cada ponta. Ela nos disse que eram enforcadores e que
seriam nossa arma secreta para ensinar aos nossos cães a ficar ao nosso
lado sem esforço. O enforcador tinha um formato simples e bem
projetado. Quando o cão se comportava e andava ao lado do dono como
deveria, o enforcador ficava solto à volta do pescoço. Mas se o cão
avançava, a corrente apertava corno um laço, sufocando o cachorro,
fazendo com que não disparasse à frente. Não demorava muito, garantia
nossa instrutora, e os cães aprendiam a se submeter, senão morreriam
sufocados. Isso é deliciosamente sádico, pensei.
Comecei a passar o enforcador pelo focinho de Marley, mas ele
me viu colocá-lo e agarrou-o entre os dentes. Forcei sua mandíbula para
retirá-lo mais de uma vez. Ele o agarrou novamente. Todos os outros
cães estavam com seus enforcadores. Todos esperando. Agarrei seu
focinho com uma das mãos e a outra tentei passar a corrente. Ele
recuou, tentando abrir a boca para atacar a misteriosa cobra de prata
novamente. Enfim, forcei o enforcador sobre sua cabeça e ele caiu no
chão, agitando-se e dando dentadas, movendo as patas no ar, girando a
cabeça de um lado para o outro, até agarrar corrente com os dentes de
novo. Olhei para a instrutora e disse:
— Ele gostou dela.
Como instruído, fiz Marley se levantar e retirei o enforcador de
sua boca. Depois, de acordo com as instruções, pressionei seu traseiro
para que se sentasse e fiquei de pé ao lado dele, com minha perna
esquerda encostada no seu ombro direito. Depois de contar até três, eu
deveria dizer:
— Marley, junto!
E dar um passo com a perna esquerda — nunca a direita. Se ele se
afastasse, evidente, uma série de pequenas correções — alguns leves
puxões na guia — o trariam de volta à linha.
— Turma, quando eu contar três — exclamou a Sra. Dominatrix.
Marley se contorcia de emoção. O objeto estranho e brilhante em
torno do seu pescoço tinha tomado sua atenção.
—Um... Dois... Três!
—Marley, junto! — ordenei.
Assim que dei o primeiro passo, ele disparou como um jato de
carreira. Puxei a guia com força e ele tossiu alto assim que o enforcador
apertou sua garganta. Ele recuou por um momento, mas assim que a
corrente afrouxou, ele se esqueceu do momento de sufocação, anulando
a lição que fora ensinada. Ele avançou novamente. Puxei a guia de novo
e mais uma vez ele sufocou. Continuamos assim por toda a extensão do
estacionamento. Marley arremetendo à frente, eu puxando-o para trás,
cada vez com mais força. Ele tossia e arfava; eu gemia e suava.
— Controle seu cachorro! — a Sra. Dominatrix gritava.
Eu tentava, com todas as minhas forças, mas ele não estava
aprendendo a lição, e eu temi que Marley acabaria sendo estrangulado antes
de perceber o que deveria fazer. Enquanto isso, os outros cães caminhavam
ao lado de seus donos, atendendo a correções menores como a Sra.
Dominatrix disse que eles fariam.
— Pelo amor de Deus, Marley — eu sussurrei. — O orgulho de
nossa família está em jogo aqui!
A instrutora fez a turma formar mais uma fila e tentar outra vez.
Nova-mente, Marley atravessou a pista arremetendo como um maníaco,
olhos esbugalhados, estrangulando-se ao longo do caminho. Na outra
ponta, a Sra. Dominatrix apresentou-nos para a turma como um
exemplo de como não se deveria fazer um cão ficar junto.
— Aqui — ela disse, sem paciência, estendendo a mão. — Deixeme
mostrar a você.
Eu lhe passei a guia e ela, de modo ultra-eficaz, conduziu Marley à
posição correta, puxando o enforcador ao lhe dar a ordem para se sentar.
Ele se sentou nas patas traseiras, olhando para ela, ansioso. Maldito.
Com uma puxada rápida da guia, a Sra. Dominatrix saiu andando
com ele. Mas quase instantaneamente ele disparou à frente, como se
estivesse puxando o trenó de Papai Noel. A instrutora corrigiu-o com
firmeza, tirando seu equilíbrio. Ele tropeçou, engasgou, e lançou-se à
frente de novo. Parecia que iria arrancar o braço dela fora. Eu
deveria estar envergonhado, mas senti uma estranha sensação de
prazer que vem junto com a vingança. Ela não estava fazendo melhor
do que eu. Meus colegas tentavam segurar o riso, e eu me refestelava,
um pouco orgulhoso: Vêem? Meu cachorro é ruim com qualquer
pessoa, não somente comigo!
Agora que eu não era mais o único que tinha sido feito de bobo,
eu precisava admitir, a cena era um bocado hilária. Ao chegar ao fim
do estacionamento, eles viraram e retornaram claudicando em nossa
direção; a Sra. Dominatrix com a cara fechada de raiva, e Marley mais
feliz impossível. Ela puxou a guia com fúria e Marley, babando até não
poder mais, puxava de volta com ainda mais força, visivelmente
adorando esse novo e excelente cabo-de-guerra que a professora
resolveu jogar. Quando me viu, pisou fundo. Com um novo impulso de
adrenalina quase que sobrenatural, avançou em minha direção,
forçando-a a correr para não ser arrastada o resto do caminho. Marley só
parou ao se jogar em cima de mim com sua costumeira alegria
esfuziante. A Sra. Dominatrix me fulminou com o olhar como se eu
tivesse cruzado uma linha invisível sem retorno. Marley debochara de
tudo que ela ensinara sobre cachorros e disciplina: ele a havia
humilhado publicamente. Ela me devolveu a guia e virou-se para a
turma como se o pequeno e infeliz incidente não tivesse acontecido, e
disse:
— Muito bem, turma, quando eu contar três...
Quando a aula terminou, ela me perguntou se eu poderia ficar um
pouco mais. Esperei com Marley, enquanto ela respondia pacientemente
às perguntas dos outros alunos da turma. Depois que o ultimo saiu, ela
se virou para mim e, num tom de voz conciliatório totalmente inédito
para mim, disse:
— Acho que seu cachorro ainda está muito novo para ser
adestrado.
— Ele é um problema, não é? — repliquei, sentindo um pouco de
solidariedade da parte dela, já que havíamos passado pela mesma
experiência vexatória.
— Ele simplesmente ainda não está preparado para ter as aulas —
ela respondeu. — Ainda precisa crescer mais um pouco. Comecei a
perceber o que ela queria dizer com aquilo.
—Você está tentando me dizer...
—Ele distrai os outros cachorros.
— ...que você está...
— Ele é agitado demais.
—...nos expulsando da turma?
—Você poderá trazê-lo de volta daqui a seis ou oito meses.
—Então, você está nos expulsando da turma?
—Eu lhe devolverei o valor integral da matrícula, sem problema.
—Você está nos expulsando.
—Sim — ela concordou, finalmente —, estou expulsando vocês
da turma.
Marley, como se reagisse em coro, levantou sua pata traseira e
soltou um forte jato de urina a poucos centímetros do pé de sua amada
adestradora.
As vezes, um homem precisa se zangar para se tornar sério. A Sra.
Dominatrix me deixou zangado. Eu tinha um lindo labrador puro sangue,
um orgulhoso membro desta raça famosa por sua capacidade de guiar
cegos, salvar vítimas de desastres, ajudar caçadores, e pescar peixes nas
ondas agitadas do mar, com calma e inteligência. Como ela ousava
dispensá-lo apenas com duas aulas? Sabíamos que tinha um lado
espirituoso, mas era muito bem-intencionado. Eu iria provar àquela
sujeita que Grogan’s Majestic Marley of Churchill não iria desistir tão
fácil. Nós nos veríamos em Westminster.
A primeira coisa que fiz na manhã seguinte foi levar Marley
para o quintal nos fundos da casa.
— Ninguém expulsa os garotos Grogan de uma escola de
adestramento — eu disse a ele. — Não-adestrável? Bem, vamos ver
quem é não-adestrável, certo?
Ele pulou assim que eu disse isso.
—Nós vamos conseguir, Marley?
Ele se sacudiu todo.
—Não consigo ouvir você. Nós vamos conseguir?
Ele latiu.
—Assim está melhor. Agora vamos começar a trabalhar.
Começamos com o comando de sentar que eu vinha treinando
com ele desde que era filhote e que ele sabia atender bem. Franzi bem a
testa e, numa voz firme, mas doce, mandei-o sentar. Ele sentou. Eu o
elogiei. Repetimos o exercício diversas vezes. Em seguida, partimos para
o comando de deitar, outro que eu vinha treinando com ele. Ele me
olhou nos olhos, com o pescoço esticado, antecipando meu comando.
Elevei lentamente minha mão no ar e mantive-a lá enquanto ele
esperava o comando. Com um movimento rápido, estalei os dedos,
apontei para o chão e disse:
— Abaixe-se!
Marley atirou-se no chão com um estrondo. Ele se atirou com
tanta vontade como se um morteiro tivesse acabado de explodir atrás dele.
Jenny, que estava sentada na varanda tomando seu café, também viu
isso e gritou:
— Bingo!
Depois de várias repetições de comandos para deitar no chão, decidi
partir para o desafio seguinte: vir sob comando. Este era difícil para Marley.
Vir não era o problema — ficar parado esperando o comando para vir é
que ele não conseguia entender. Nosso cão com deficiência de atenção
sentia tanta ansiedade para estar junto de nós que não conseguia ficar
quieto ao nos afastarmos dele.
Coloquei-o sentado à minha frente e fixei meus olhos nos dele.
Enquanto nos encarávamos, levantei minha mão, segurando-a à frente
como um guarda de trânsito:
— Fique — eu disse e dei um passo para trás.
Ele congelou, olhando-me ansiosamente, esperando o menor sinal
de que poderia vir até a mim. Quando dei o quarto passo atrás, ele não se
agüentou e correu até onde eu estava, me atropelando. Passei-lhe um
carão e tentei novamente. E mais algumas outras tantas vezes. Cada vez
ele me deixava ir um pouquinho mais longe antes de avançar em cima de
mim. No fim, eu estava a quinze metros de distância dele no quintal, com a
palma da mão erguida para ele. Eu esperei. Ele continuou sentado, firme na
mesma posição, seu corpo todo chacoalhando de ansiedade. Eu podia
perceber a energia nervosa crescendo dentro dele, como um vulcão
prestes a explodir. Mas ele se segurou. Contei até dez. Ele não se mexeu.
Seus olhos estavam fixos em mim; seus músculos se arquearam. O.k., já o
torturei o suficiente, pensei. Baixei a mão e gritei:
— Marley, venha!
Ao se catapultar à frente, eu me abaixei e bati as palmas para
encorajá-lo. Pensei que ele fosse correr a esmo pelo quintal, mas veio até
a mim em linha reta. Perfeito!, pensei.
— Vamos, rapaz! — urgi. — Vamos!
E ele veio. Disparado até a mim.
— Devagar, rapaz! — eu disse, mas ele continuou avançando. —
Devagar!
Seu olhar estava extasiado e, um instante antes do impacto, me
dei conta de que o piloto sumira. Era um cão correndo fora de controle.
Tive tempo de dar um último comando.
— Pare! — gritei.
Blam! Ele mergulhou em cima de mim sem frear e eu caí para trás,
me estabacando no chão. Quando abri os olhos, segundos depois, ele
estava com as quatro patas em cima do meu peito, lambendo
desesperado o meu rosto. E aí, chefe, como foi que eu me saí?
Tecnicamente falando, ele seguiu exatamente o comando. Afinal, eu
não tinha mencionado nada a respeito de parar quando chegasse em
mim.
— Missão cumprida! — eu disse, suspirando.
Jenny olhou pela janela da cozinha onde estávamos e gritou:
— Vou sair para trabalhar! Quando terminarem o que estão
fazendo, não se esqueçam de fechar as janelas. Deve chover à tarde.
Eu dei a Marley algo para comer, depois tomei uma ducha e parti
para o trabalho.
Quando eu cheguei à noite, Jenny estava à minha espera na
porta de casa, e pude ver por sua feição que estava aborrecida. — Vá
olhar na garagem — ela disse.
Abri a porta da garagem e a primeira coisa que vi foi Marley,
deitado em seu tapete, com expressão abatida. Naquela fração de
segundo, constatei que seu focinho e patas dianteiras não estavam
bem. Estavam escurecidas, num tom marrom escuro, e não o
costumeiro amarelo-claro, por causa do sangue coagulado. Então, olhei
em volta e meu queixo caiu A garagem — nosso indestrutível
esconderijo — estava destroçada. As passadeiras estavam rasgadas, as
paredes de concreto todas arranhadas, e a tábua de passar roupa virada
no chão, com a cobertura esgarçada. Pior de tudo: a porta por onde
passei parecia que tinha sido atacada por uma talhadeira. Lascas de
madeira estavam espalhadas em um semicírculo em volta da porta de
entrada até três metros de distância. Um metro de altura da parte de
baixo do batente dos dois lados da porta havia sido esmigalhado. As
paredes estavam cobertas de sangue escorrido onde Marley havia
machucado as patas e o focinho.
— Nossa! — eu disse mais espantado do que com raiva.
Lembrei-me da pobre Sra. Nedermier e seu assassinato com serra
elétrica do outro lado da rua. Senti-me no meio de uma cena de crime.
Jenny falou por trás de mim;
— Quando voltei para almoçar em casa, estava tudo bem — ela
disse. — Mas vi que estava ameaçando chover.
Depois que ela voltou para o trabalho, começou uma tempestade
com raios e trovões tão fortes que faziam o corpo vibrar.
Quando retornou duas horas mais tarde, Marley estava babando
de pavor, em meio aos destroços de sua desesperada tentativa de fuga.
Parecia tão desolado que ela nem conseguiu gritar com ele. Além do
mais, tudo já havia acontecido; ele nem entenderia por que ela estaria
zangada com ele. Mesmo assim, ficou tão aborrecida com a destruição
em nossa nova casa, sendo que trabalhamos tanto para tê-la, que não
quis lidar com ele ou com o estrago.
— Espere seu pai chegar em casa! — ela ameaçou, e fechou a
porta atrás de si.
Durante o jantar, tentamos pensar no que passamos a chamar de
“a loucura”. Tudo que conseguimos imaginar foi que, sozinho e
apavorado durante a tempestade em casa, Marley decidiu que sua
única chance de sobrevivência seria tentar atravessar a porta. Ele
estava provavelmente cedendo a um instinto primitivo de seu ancestral,
o lobo. E ele tentou alcançar esse objetivo com extrema eficiência que
eu nunca imaginaria ser possível sem a ajuda de artilharia pesada.
Quando terminamos de comer, Jenny e eu fomos até a garagem
onde Marley, de volta ao seu estado normal, agarrou um brinquedo de
morder e ficou andando à nossa volta, querendo brincar de cabo-deguerra.
Eu o segurei firme, enquanto Jenny limpava o sangue de seu
pêlo. Então, ele observou, balançando o rabo, enquanto limpávamos a
sujeira que havia feito. Jogamos fora os tapetes e a coberta da tábua de
passar, recolhemos as lascas de madeira da nossa porta, limpamos o
sangue das paredes, e fizemos uma lista de material que iríamos
precisar da loja de ferramentas rara consertar os danos provocados por
ele — o primeiro dos inúmeros consertos que tive de fazer. Marley
parecia entusiasmado de nos ver ali, colaborando com seus esforços em
reformar a garagem.
— Você não precisa demonstrar sua enorme felicidade — eu
bronqueei, puxando-o para dentro de casa para passar a noite conosco.

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