Capítulo 18 > (Querido, John)

Naquela noite, dormi na cama do meu pai, a única vez que fiz isso na vida. A tempestade passou, e a
temperatura subiu a níveis absurdos. Abrir as janelas não foi suficiente para refrescar, e rolei na
cama durante horas. Quando me arrastei para fora da cama na manha seguinte, encontrei as chaves
do carro do meu pai penduradas em um gancho na cozinha. Joguei minhas malas na traseira e
peguei algumas coisas da casa que queria guardar. Pouca coisa alem da fotografia. Depois liguei
para o advogado e aceitei a oferta de encontrar alguém que desse um fim no resto das coisas e
também de vender a casa. Joguei a chave na caixa do correio.
Na garagem o motor levou alguns segundos para pegar. Tirei o carro e tranquei a porta da garagem.
Do quintal, olhei a casa, pensando em meu pai e sabendo que nunca mais veria aquele lugar.

***

Dirigi até a clínica, peguei os pertences de meu pai e então saí de Wilmington pela interestadual em
direção ao oeste, no piloto automático. Havia anos que eu não passava naquele trecho da estrada, e
tinha apenas vaga idéia do trânsito, mas a sensação de familiaridade voltou em ondas. Passei pelas
cidades de minha juventude e atravessei Raleigh em direção a Chapel Hill. Onde as memórias
voltaram com dolorosa intensidade. Pisei no acelerador, tentando deixá-las para trás.
Atravessei Burlington, Greensboro e Winston-Salem. Fiz uma única parada para abastecer no inicio
do dia, quando comprei uma garrafa de água. Segui direto, só bebericando água, sem estomago para
pensar em comer. Deixei a nossa fotografia no assento do carona, e vez ou outra tentava evocar o
menino da foto. Por fim, fiz a conversão para o norte, seguindo pela estradinha que corta as
montanhas de picos azuis ao sul e ao norte, suaves ondulações na crosta terrestre.
Já era fim de tarde quando estacionei o carro e me registrei em um velho motel de beira de estrada.
Meu corpo estava rígido e, após alongar alguns minutos, tomei banho e fiz a barba. Coloquei jeans
limpos e uma camiseta. Cogitei pegar algo para comer, porem ainda estava sem fome. Com o sol
baixo, o ar não tinha o mormaço úmido do litoral, e senti o cheiro das coníferas descendo das
montanhas. Foi ali que Savannah nasceu, e de algum modo eu sabia que ela ainda estava lá.
Embora pudesse ter ido à casa dos pais dela perguntar, descartei a idéia, sem saber como eles
reagiram à minha presença. Decidi dirigir pelas ruas de Lenoir, passando pelo distrito comercial
onde havia uma variada coleção de restaurantes fast-food, mas só desacelerei quando cheguei à
parte menos genérica da cidade. Nessa área Lenoir parecia não ter mudado nada-turistas e recémchegados
eram bem vindos em visita, mas nunca seriam considerados gente do lugar. Estacionei em
um velho salão de bilhar que me fez lembrar os lugares que freqüentava na juventude. Luminosos
de neon faziam publicidade da cerveja nas janelas, e o estacionamento estava cheio. Era em um
local como aquele que encontraria a resposta de que precisava.
Entrei, Hank Willians tocava na jukebox, e rolos de fumaça de cigarro pairavam no ar. Quatro
mesas de sinuca estavam agrupadas: todos os jogadores usavam bonés de baseball, e dois
evidentemente tinham tabaco de mascar acumulado nas bochechas. Peixes gigantes empalhados
decoravam as paredes, ao lado de memorabilia da NASCAR. Havia fotos tiradas em Talladega,
Martinsville, North Wilkesboro e Rockinghan. Embora a minha opinião sobre o esporte não tivesse
mudado, tal visão me deixou estranhamente avontade. No canto do bar, abaixo do rosto sorridente
do falecido Dale Earnhardt, havia uma jarra cheia de dinheiro, pedindo doações para ajudar uma
vítima local do câncer. Sentindo um inesperado arroubo de simpatia, contribuí com alguns dólares.
Sentei no bar e puxei conversa com o barman. Ele tinha mais ou menos minha idade e seu sotaque
da montanha me lembrou Savannah. Depois de vinte minutos de conversa fiada, tirei a foto da
Savannah da carteira e expliquei que era amigo da família. Citei os nomes dos pais dela e fiz
perguntas demonstrando que eu estivera lá antes.
Ele foi cauteloso, e com razão. Cidades pequenas protegem os seus. Mas acontece que ele passara
alguns anos na marinha, e isso ajudou. Após um tempo, ele concordou em falar.
“Sim, eu conheço ela”, disse. “Ela mora em Old Mill Road, perto da casa dos pais.”
Já passava das oito horas, e o céu estava escurecendo com a chegada da noite. Dez
minutos depois, deixei uma gorjeta gorda no balcão e tomei o rumo da saída.

***

Curiosamente, não passava nada na minha cabeça enquanto dirigia até a região dos cavalos. Pelo
menos, era assim que eu me lembrava da área na ultima vez que estive ali. Peguei uma estrada de
constante subida, e comecei a reconhecer os pontos de referência da região; sabia que em poucos
minutos passaria pela casa dos pais de Savannah. Quando o fiz, inclinei-me, sobre o volante,
procurando pela próxima abertura na cerca até virar uma longa estrada de cascalho. Assim que fiz a
conversão, notei uma placa pintada a mão indicando um lugar chamado “Hope and Horses”.
O crepitar dos pneus sobre o cascalho era estranhamente reconfortante, e estacionei debaixo de um
salgueiro, ao lado de uma pequena caminhonete velha. Observei a casa. Quadrada, de telhado
pontudo, pintada de branco a e com uma chaminé que subia em direção ao céu, a casa parecia
erguer-se da terra como uma imagem fantasmagórica de centenas de anos. Uma única lâmpada
brilhava em cima da antiga porta de entrada, e um pequeno vaso de planta estava pendurado perto
da bandeira americana, ambos balançando suavemente com a brisa. Do lado da casa havia um velho
celeiro e um pequeno curral; para além uma pastagem verde esmeralda delimitada por uma cerca
branca, que se estendia até uma fileira de maciços carvalhos. Havia outra construção semelhante a
uma cabana perto do celeiro, e nas sombras eu avistava os contornos de equipamentos agrícolas.
Questionei novamente o que estava fazendo aqui.
Não era tarde de mais para ir embora, mas não conseguia me obrigar a manobrar o carro. O céu
ardia em vermelho e amarelo antes de o sol mergulhar para além do horizonte, lançando as
montanhas na escuridão total. Saí do carro e comecei a me aproximar da casa. O orvalho na grama
umedeceu as pontas dos meus sapatos, e senti o cheiro das coníferas mais uma vez. Ouvi o chilreio
dos grilos e o canto constante de um rouxinol. Os sons davam-me força enquanto eu me aproximava
do alpendre. Tentei descobrir o que diria se ela atendesse a porta. Ou o que eu diria se ele atendesse.
Enquanto tentava decidir o que fazer, um retriever abanando a cauda se aproximou de mim.
Estendi a mão, e ele me deu uma lambida amigável antes de fazer a volta e descer as escadas. Sua
calda continuava abanando enquanto ele rodeava a casa. Ouvindo o mesmo chamado que me
trouxera para Lenoir, deixei o alpendre e o segui. Ele mergulhou, arrastando a barriga no chão e
rastejando por debaixo do último obstáculo da cerca, e então entrou no celeiro.
Assim que o cão desapareceu, vi Savannah surgir do celeiro carregando retângulos de feno sob os
braços. Os cavalos do pasto começaram a galopar naquela direção, enquanto ela distribuía o feno
em vários comedouros. Eu continuava a avançar. Ela estava sacudindo o feno da roupa e se
preparando para voltar ao celeiro quando, inadvertidamente, olhou na minha direção. Ela deu um
passo, olhou novamente e congelou no lugar.
Por um longo momento, nenhum de nós se moveu. Com seu olhar fixo no meu, percebi que fora um
erro ter vindo, ter aparecido assim sem avisar. Sabia que deveria dizer algo, qualquer coisa, mas
nada me veio à mente. Só conseguia olhar para ela.
As memórias voltaram como uma avalanche, todas elas, e notei quão pouco ela mudara desde a
última vez que nos vimos. Como eu, ela vestia jeans e uma camiseta manchada de terra, e suas
botas de cowboy estavam desgastadas e arranhadas. De algum modo, aquele visual campestre lhe
dava um charme rústico. Seu cabelo estava mais comprido, mas ela ainda tinha a pequena fenda
entre os dentes da frente que eu sempre adorara.
“Savannah”, eu disse finalmente.
Só depois de falar, percebi que ela ficara tão enfeitiçada quanto eu. De repente, ela abriu um sorriso
largo e cheio de um prazer inocente.
“John” ela gritou.
“É bom ver você de novo.”
Ela balançou a cabeça, como tentando aclarar a mente, então apertou os olhos novamente. Quando
finalmente se convenceu que eu não era uma miragem, partiu em minha direção e atravessou a
porteira. Momentos depois, senti os braços dela em volta de mim, seu corpo quente e acolhedor. Por
u segundo, era como se nada tivesse mudado entre nós. Quis que aquele abraço não terminasse
nunca. Mas quando ela se afastou, quebrou a ilusão e nos tornamos estranhos outra vez. O rosto
dela fazia a pergunta que eu tinha sido incapaz de responder durante a longa viagem até ali.
“O que você esta fazendo aqui?”
Desviei o olhar. “Não sei”, disse. “Só precisava vir.”
Embora ela não tenha perguntado mais nada, havia uma mistura de curiosidade e hesitação em sua
expressão, como se ela não tivesse certeza de que queria uma explicação. Dei um pequeno passo
para trás, abrindo espaço para ela. Identifiquei os contornos sombrios dos cavalos na escuridão e
senti que os acontecimentos dos últimos dias aos poucos voltavam para mim.
“Meu pai morreu”, sussurrei, as palavras surgiram do nada. “Acabo de vir do funeral.”
Ela ficou quieta. Sua expressão adquiriu a compaixão espontânea que tanto me atraiu no passado.
“Oh, John... Sinto muito”, murmurou.
Ela se aproximou novamente, e desta vez havia urgência em seu abraço. Quando se afastou, metade
do seu rosto ficou na sombra.
“Como aconteceu?”, ela perguntou, ainda segurando a minha mão.
Percebi uma tristeza genuína em sua voz, e fiz uma pausa incapaz de resumir os últimos dois anos
em uma única frase. “É uma longa história”, disse. Sob as luzes do celeiro, julguei detectar em seu
olhar traços das memórias que ela queria manter enterradas, de uma vida muito antiga. Quando ela
soltou minha mão, vi a aliança brilhando no dedo esquerdo. Essa visão foi como uma ducha de água
fria, um choque de realidade.
Ela compreendeu minha expressão. “Sim”, ela disse, “estou casada.”
“Desculpe”, disse, balançando a cabeça. “Não deveria ter vindo.”
Surpreendendo-me, ela gesticulou ligeiramente. “Tudo bem”, disse, inclinando a cabeça. “Como
você me encontrou?”
“É uma cidade pequena.” Dei de ombros. “Perguntei pra alguém.”
“E simplesmente... te contaram?”
“Fui convincente.”
Foi esquisito, e nenhum de nós sabia o que dizer. Parte de mim esperava continuar ali, enquanto
conversávamos como velhos amigos sobre tudo o que havia acontecido conosco desde nosso último
encontro. Outra parte de mim esperava que o marido dela aparecesse do nada a qualquer momento
e, ou me estendesse a mão ou me desafiasse para uma briga. Em meio ao silêncio, um cavalo
relinchou. Atrás dela havia quatro cavalos com as cabeças enfiadas no comedouro, metade nas
sombras, metade iluminados pela luz do celeiro. Três outros cavalos, incluindo Midas, olhavam
para Savannah como que perguntando se ela havia se esquecido deles. Savannah por fim fez um
sinal por cima do ombro.
“Tenho de cuidar deles também”, disse ela. “É a hora da comida, e eles estão ficando impacientes.”
Quando assenti, Savannah deu um passo para trás e virou-se. Assim que chegou ao portão, ela
acenou. ”Você quer me dar uma mão?”
Hesitei, olhando em direção a casa. Ela seguiu meu olhar.
“Não se preocupe” disse. “Ele não está, e sua ajuda seria muito bem vinda.” A voz dela estava
surpreendentemente tranqüila.
Embora não soubesse como interpretar aquela resposta, concordei. “Fico feliz em ajudar.”
Resmunguei: “vou tentar.”
No celeiro, ela separou um pedaço de feno e, em seguida, mais dois e entregou-os a mim.
“Basta jogar nos comedouros perto dos outros. Eu estou indo pegar a aveia.”
Fiz o que ela mandou, e os cavalos se aproximaram. Savannah saiu carregando dois baldes.
“É melhor você dar um pouco de espaço para eles, Eles podem derrubar você por acidente.”
Eu me afastei, e Savannah pendurou os baldes na cerca. O primeiro grupo de cavalos trotando em
direção a eles. Savannah os observou com evidente orgulho.
“Quantas vezes você tem que alimentá-los?”
“Duas vezes por dia, todos os dias. Mas há mais além da alimentação. Você ficaria surpreso em
como eles são estabanados às vezes. O telefone do veterinário está na discagem rápida.”
Eu sorri. “Parece muito trabalho.”
“É mesmo. Dizem que ser dono de um cavalo é como viver como uma âncora. A menos que você
tenha alguém para ajudar, é difícil ficar longe, mesmo por um fim de semana.”
“Seus pais ajudam?”
“Às vezes. Quando realmente preciso deles. Eles moram atrás do morro, do outro lado da cerca.
Mas o meu pai está ficando velho, e há uma grande diferença entre cuidar de um cavalo e cuidar de
sete.
“Vou acreditar na sua palavra.”
No doce abraço da noite, ouvindo o zumbido constante das cigarras, eu respirava a paz daquele
refugio, tentando aquietar meus pensamentos acelerados.
“Este é exatamente o tipo de lugar que imaginei como sua casa”, finalmente disse.
“Eu também”, ela afirmou. “Mas é muito mais difícil do que eu imaginava. Há sempre algo para
consertar. Você não imagina quantos vazamentos havia no celeiro, e um bom pedaço da cerca
desabou no último inverno. Foi nisso que trabalhamos durante toda a primavera.”
Embora tenha ouvido ela usar “nós” e assumindo que se tratava de seu marido, eu ainda não estava
pronto para falar sobre ele. Nem ela, ao que parece.
“Mas é bonito aqui, mesmo com tanto trabalho. Em noites como esta, gosto de sentar no alpendre e
apenas ouvir o mundo. Raramente se ouve barulho de carros e isso é tão... pacífico. Ajuda a clarear
a mente, especialmente depois de um longo dia.”
Enquanto ela falava, observei como media as palavras, percebi seu desejo de manter a conversa em
território seguro.
“Aposto que sim.”
“Preciso limpar alguns cascos”, ela anunciou. “Você quer ajudar?”
“Não sei o que fazer”, admiti.
“É fácil, disse. “Vou te mostrar.” Desapareceu no celeiro e saiu carregando o que parecia ser um par
de pequenos pregos curvados. Ela me entregou um. Enquanto os cavalos comiam, ela se aproximou
de um deles.
“Você só tem agarrar perto do casco e levantar, enquanto segura a parte de trás da pata dele aqui”,
disse, demonstrando. Ocupado com o feno, o cavalo levantou a pata obediente. Ela apoiou o casco
entre as pernas. “Então, basta tirar a terra do casco. É só isso.
Fui até o cavalo ao lado dela e tentei replicar suas ações, mas nada aconteceu. O cavalo era
excessivamente grande e teimoso. Eu puxei a pata e segurei no lugar certo. Depois puxei e segurei
mais um pouco. O cavalo continuou a comer, ignorando meus esforços.
“Ele não vai levantar a pata”, reclamei. Ela terminou o casco que estava limpando, então se inclinou
para o lado do meu cavalo. Um puxão e um apertão mais tarde, o casco estava no lugar, entre as
pernas dela. “Claro que vai. Só que ele sabe que você não tem idéia do que esta fazendo e esta
desconfortável perto dele. Você tem que ser confiante.” Ela deixou cair o casco e tomei o seu lugar
para tentar novamente. O cavalo ignorou-me mais uma vez.
“Veja como eu faço”, disse ela com cuidado.
“Eu estava observando”, protestei.
Ela repetiu o procedimento, o cavalo levantou a pata. Um momento depois imitei o passo a passo e
o cavalo me ignorou. Embora eu não possa alegar que consiga ler a mente de um cavalo, tive a
estranha sensação de que ele se divertia com o meu sofrimento. Frustrado, bati e puxei
incansavelmente até que, finalmente, como por magia, o cavalo levantou a pata. Apesar da
precariedade do meu desempenho, senti uma onda de orgulho. Pela primeira vez desde que cheguei,
Savannah riu.
“Bom trabalho. Agora é só raspar fora a lama e partir para o próximo casco.”
Savannah tinha limpado os outros seis cavalos quando terminei meu primeiro. Quando terminamos,
ela abriu a porteira e os cavalos trotaram para a pastagem escura. Eu não sabia o que esperar, mas
Savannah foi para o galpão. Ela trazia duas pás nas mãos.
“Agora é hora de limpar”, disse ela, entregando-me uma pá.
“Limpar?”
“O chorume”, disse. “Caso contrário pode ficar muito espesso aqui.”
Peguei a pá. “Você faz isso todo dia?”
“A vida é doce, não é?”, ela provocou. Ela saiu novamente e voltou com um carrinho de mão.
Quando começamos a cavar o estrume, um pedaço de uma lua surgiu sobre as copas das arvores.
Trabalhamos em silêncio, o tilintar das pás em ritmo constante enchia o ar. Quando acabamos,
inclinei-me sobre minha pá e a observei. No escuro do celeiro ela parecia linda e fugaz como uma
aparição. Ela não disse nada, mas pude sentir que me analisava.
“Você esta bem?”, finamente perguntei.
“Por que você veio, John?”
“Você já me perguntou isso.”
“Sei que já perguntei”, ela disse. “Mas você ainda não respondeu.”
Estudei-a. Não, eu não tinha respondido. Não tinha certeza se podia me explicar, e transferi o peso
de um pé para o outro. “Não sabia para onde mais poderia ir.”
Surpreendendo-me, ela concordou. “Uh-huh”, admitiu.
Foi a aceitação sem reservas em sua voz que me fez continuar.
“estou falando sério”, disse. “De certo modo, você foi a melhor amiga que já tive.”
Notei a expressão dela amolecer. “Tudo bem”, ela disse. Essa resposta lembrou-me do meu pai e,
depois de falar, talvez ela tenha percebido isso. Obriguei-me a examinar a propriedade.
“Esta é a fazenda que você sonhava construir, não é?” perguntei. “Hope and Horses é para crianças
altistas, não?”
Ela passou a mão pelos cabelos, colocando uma mecha atrás da orelha. Parecia feliz de eu ter
lembrado. “Sim”, disse ela. “É.”
“É tudo o que você pensou que seria?”
Ela riu e ergueu as mãos. “Às vezes”, disse. “Mas é muito mais difícil do que eu imaginava, e não
pense que rende o suficiente para pagar as contas. Nós dois trabalhamos em outros empregos, e
todos os dias percebo que não aprendi tanto na faculdade quanto imaginava.”
“Não?”
Ela balançou a cabeça. “Algumas das crianças que aparecem aqui, ou no centro, são muito difíceis
de tratar.” Ela hesitou, tentando encontrar as palavras certas. Finalmente, balançou a cabeça. “Acho
que pensei que todas seriam como Alan, sabe?” Ela olhou para cima. “Você se lembra quando falei
dele?”
Assenti com a cabeça e ela prosseguiu. “Acontece que a situação de Alan era especial. Não sei,
talvez por ele ter crescido em um rancho, mas ele se adaptou muito mais facilmente do que a
maioria das crianças.”
Ela parou de falar, e olhei-a de modo inquisitivo. “Lembro que não foi assim que você me contou a
história. Pelo que me lembro, Alan ficou apavorado no início.”
“Sim, eu sei, mas enfim... ele se acostumou. E esse é o ponto. Não sei quantas crianças temos aqui
que não se adaptaram em nada, não importa quanto tempo trabalhamos com elas. Isto não é só uma
coisa de final semana, algumas crianças freqüentaram regularmente por mais de um ano.
Trabalhamos em um centro de avaliação do desenvolvimento, portanto passamos muito tempo com
a maioria das crianças. Quando criamos o rancho, insisti em abri-lo para todas as crianças,
independentemente da gravidade do transtorno. Sentimos que seria algo importante, mas com
algumas crianças... Eu só queria saber como me comunicar com elas. Às vezes parece que estamos
apenas andando em círculos.”
Percebi que Savannah repassava suas lembranças. “Não quero dizer que estamos perdendo nosso
tempo”, ela prosseguiu. “Algumas crianças realmente se beneficiaram com o que estamos fazendo.
Elas vêm aqui, passam alguns fins de semana e é como... um botão de flor lentamente
desabrochando em algo belo. Assim como foi com Alan. É como se você pudesse sentir a mente
deles se abrindo para novas idéias e possibilidades. E quando estão cavalgando com um grande
sorriso nos rostos, nada mais importa no mundo. É um sentimento inebriante, e você quer que
aconteça mais e mais, com cada criança que chega. Eu costumava achar que era questão de
persistência, que podíamos ajudar a todos, mas não podemos. Algumas das crianças não querem
nem mesmo chegar perto do cavalo, quanto mais, montar.”
“Você sabe que não é sua culpa. Eu também não ficava muito entusiasmado com a idéia de montar,
lembra?”
Ela riu, parecendo extremamente feminina. “Sim, eu lembro. Na primeira vez que você subiu em
um cavalo, estava mais assustado do que boa parte das crianças.”
“Não, não estava”, protestei. “E, alem disso, Pepper era arisco”, insisti.
“Falou como um verdadeiro novato”, ela provocou. “Mas mesmo que você esteja errado, fico
tocada por ainda se lembrar.”
Sua jovialidade evocou uma onda de lembranças.
“Claro que lembro”, disse. “Aquele foram os melhores dias da minha vida. Nunca vou esquecê-los.”
Atrás dela, avistei o cão errante no pasto. “Talvez por isso eu ainda não esteja casado.”
Ao ouvir essas palavras, o olhar dela vacilou. “Eu também me lembro.”
“Você?”
“Claro”, ela disse. “Você pode não acreditar, mas é verdade.”
O peso das palavras dela encheu o ar.
“Você é feliz Savannah?”, finalmente perguntei.
Ela abriu um sorriso irônico. “A maior parte do tempo. Você não?”
“Não sei”, disse, e ela riu novamente.
“Essa é a sua resposta padrão, sabia? Quando é convidado a olhar para dentro de si e responder. É
como um reflexo seu. Sempre foi. Por que você não pergunta o que realmente quer perguntar?”
“O que eu realmente quero perguntar?”
“Se amo o meu marido. Não é isso que você quer saber?”
Por um estante fiquei mudo, mas percebi que os instintos dela estavam corretos. Esse era o motivo
real que me levara até ali.
“Sim”, ela disse afinal, novamente lendo minha mente. “Eu o amo.”
A sinceridade inquestionável em sua voz me feriu, mas antes que eu pudesse refletir, ela se virou
para mim novamente. A ansiedade cintilava em seu rosto, como se ela lembrasse algo doloroso. Mas
logo passou.
“Você já comeu?”, ela perguntou.
Eu ainda estava tentando entender o que acabar de acontecer. “Não”, eu disse. “Na verdade, não
tomei café da manha, nem almocei.”
Ela balançou a cabeça. “Tenho umas sobras de cozido de carne em casa. Você tem tempo para
jantar?”
Apesar de pensar mais uma vez no marido dela, assenti. “Quero sim”, disse.
Partimos em direção a casa e paramos no alpendre onde se enfileiravam velhas botas de caubói
cobertas de lama. Savannah segurou em meu braço de modo extraordinariamente fácil e natural,
apoiando-se em mim para tirar as botas Talvez tenha sido esse toque que me deu coragem para olhar
verdadeiramente para ela. Apesar do ar de mistério e maturidade que sempre me atraiu, também
notei uma ponta de tristeza e hesitação. Para meu coração dolorido, essa combinação a tornava
ainda mais bonita.

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