Era uma vez um garoto chamado Eustáquio Clarêncio Mísero, e na verdade bem merecia esse nome. Os pais diziam Eustáquio Clarêncio, e os professores, apenas Mísero. Não posso dizer como era chamado pelos amigos, pois não tinha amigos. Não tratava o pai e a mãe por papai e mamãe, mas por Arnaldo e Alberta. Os pais eram ente moderna, de idéias abertas. Vegetarianos, não fumavam nem bebiam, e usavam roupa de
baixo de fabricação especial. Havia muito pouca mobília em sua casa, pouquíssima roupa de cama e mantinham sempre as janelas escancaradas.
Eustáquio gostava de animais, especialmente de besouros quando estavam mortos e espetados num cartão. Também gostava de livros instrutivos, com gravuras em que se podiam ver armazéns para guardar cereais ou
robustas crianças estrangeiras fazendo ginástica em escolas-modelo.
Eustáquio não gostava nada mesmo era dos primos, os quatro Pevensie: Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia. Mas ficou contentíssimo quando soube que Edmundo e Lúcia vinham passar uns tempos com ele, pois lá no fundo adorava bancar o mandão e chatear os outros.
Apesar de ser um molengão, que na hora da briga não conseguia nem enfrentar Lúcia, e muito menos Edmundo, sabia que há muitas maneiras de aborrecer os outros, quando a casa é da gente e eles são nossos hóspedes.
Edmundo e Lúcia também não sentiam a menor vontade de ir para a casa do tio Arnaldo e da tia Alberta, mas não tinham outro remédio.
Naquele verão, o pai arranjara uma vaga como professor nos Estados Unidos, durante quatro meses, e a mãe resolvera ir com ele.
Pedro, que tinha de preparar-se com todo o afinco para o exame, passaria as férias recebendo aulas do velho professor Kirke, em cuja casa as quatro crianças tinham tido aventuras maravilhosas, já havia muitos anos, na época da guerra. Se o professor ainda morasse na mesma casa, os garotos teriam ido para lá; mas, depois daquela época, ele perdera tudo o que tinha e vivia agora num chalé, com apenas um quarto
vago.
Como ficaria muito caro levar os filhos todos para os Estados Unidos, somente Susana tinha partido com os pais. A gente grande achava Susana a mais bonita da família. Como era bem desenvolvida para a sua idade e não tinha grande queda para os estudos, a mãe dissera que “ela aproveitaria mais a viagem do que os outros mais novos”. Edmundo e Lúcia fizeram o impossível para não sentir inveja de Susana, mas era de fato
horrível ter de passar as férias na casa da tia.
– Para mim ainda é muito pior – dizia Edmundo –, porque você terá um quarto separado, enquanto eu terei de dividir o meu com aquele nojento do Eustáquio.
A nossa história começa numa tarde em que Edmundo e Lúcia aproveitavam juntos alguns minutos preciosos. Como é óbvio, falavam de Nárnia, nome do país secreto deles. Acho que quase todos nós temos um país secreto, que, para a maioria, é apenas um país imaginário. Edmundo e Lúcia eram bem mais felizes: o país secreto deles era verdadeiro. Já tinham até visitado Nárnia duas vezes, de verdade, não sonhando, nem
brincando. É claro que tinham conseguido chegar lá por Magia, que é a única maneira de atingir Nárnia. E tinham prometido que lá voltariam algum dia. Assim, você pode imaginar como eles falavam de Nárnia, sempre que podiam.
Naquela tarde, estavam sentados na beira da cama no quarto de Lúcia, olhando para um quadro pendurado na parede – o único quadro de que gostavam em toda a casa. Tia Alberta detestava o quadro, mas não podia jogá-lo fora, pois fora presente de casamento de uma pessoa a quem não queria ofender. Representava um barco navegando em nossa direção. A proa era dourada e tinha o formato de uma cabeça de dragão de boca escancarada. Tinha apenas um mastro e uma grande vela quadrada de um vivo tom de púrpura.
As laterais do barco, só visíveis onde terminavam as asas do dragão, eram verdes. Estava exatamente na crista de uma grande onda azul, e o côncavo da vaga mais próxima, franjada de espumas e salpicos, parecia vir para cima da gente. Via-se que corria ligeiro, impelido por um vento forte, inclinando-se um pouco para
bombordo. (A propósito, se você está mesmo resolvido a ler esta história, acho melhor ter em mente que a esquerda de um barco, quando se olha de frente, é bombordo, e a direita é estibordo.) A luz do sol incidia sobre o lado inclinado do barco e a água estava cheia de tons verdes e roxos. Do outro lado, o mar era azulescuro, devido à sombra do barco.
– Ficar olhando para um navio de Nárnia sem poder chegar lá é pior ainda! – disse Edmundo.
– Olhar é sempre melhor do que nada – respondeu Lúcia. – E esse aí é um verdadeiro navio de Nárnia.
– Ainda brincam como antes? – perguntou Eustáquio, que andara escutando atrás da porta e agora arreganhava os dentes.
No ano anterior, quando estivera em casa dos Pevensie, conseguira flagrar os primos conversando sobre Nárnia e adorava aborrecê-los por causa disso. Achava que eles estavam imaginando aquilo tudo e, como era bestalhão demais para imaginar seja lá o que fosse, não via a menor graça.
– Ora, vá andando, não queremos você aqui – disse Edmundo secamente.
– Estou vendo se me recordo de uns versinhos – disse Eustáquio –, qualquer coisa mais ou menos assim:
Uns meninos que brincavam de Nárnia Foram ficando cada vez mais birutas...
– Pra começo de conversa, Nárnia e birutas não rimam – disse Lúcia.
– É uma rima toante – disse Eustáquio.
– Não pergunte para ele o que é isso! Está doido para que você pergunte! Não fale nada, talvez assim ele se mande.
Com uma recepção dessas, qualquer garoto teria ido embora, mas Eustáquio era diferente.
Continuou a rondar de um lado para outro, arreganhando os dentes, e de repente voltou a falar:
– Você gosta deste quadro?
– Pelo amor de Deus, não deixe ele começar a falar de arte e outras coisas – interrompeu Edmundo depressa. Mas Lúcia, que era de muito boa-fé, já havia dito:
– Adoro!
– É uma porcaria de pintura – disse Eustáquio.
– Caia fora daqui, que você não vê mais a porcaria – respondeu Edmundo.
– Por que você gosta dele? – perguntou Eustáquio a Lúcia.
– Por um motivo especial – respondeu Lúcia. – Porque o navio parece que está andando, a água parece mesmo molhada, e as ondas sobem e descem.
Eustáquio podia dar-lhe meia dúzia de respostas, mas dessa vez nada disse. Naquele mesmo instante, ao olhar para as ondas, viu que realmente elas pareciam em movimento. Só havia andado de barco uma vez (uma pequena distância), mas tinha enjoado pra valer. Ao ver as ondas do quadro, ficou de novo enjoado. Já estava quase verde, mas tentou olhar mais uma vez. E aí as três crianças ficaram estupefatas e boquiabertas.
O que viram naquele momento é difícil de acreditar, mesmo nos livros; mas é muito mais difícil de acreditar quando acontece na vida real.
Tudo no quadro estava em movimento. Não era como no cinema, não: as cores eram muito mais reais e vivas, como ao ar livre. A proa do navio afundava e tornava a subir nas ondas com uma grande franja de espuma. Quando uma onda ergueu o navio atrás, viu-se pela primeira vez a popa e o convés, que desapareceram logo no bojo da onda seguinte. Nesse mesmo instante, um caderno, que estava caído sobre a cama de Edmundo, começou a virar as folhas e foi levado pelo ar, batendo na parede; o cabelo de Lúcia
enrolou-se em torno do rosto, como num dia de vento. Era um dia de vento, mas o vento soprava do quadro. De súbito, com o vento, vieram os barulhos... o marulhar das ondas, o bater da água de encontro ao costado do navio e, mais alto que tudo, o estrépito do vento e da água. Foi o cheiro (agreste, salgado) que convenceu Lúcia de que ela não estava sonhando.
– Acabem logo com isso! – disse Eustáquio, com uma voz rouca de medo e raiva. –
Que brincadeira mais estúpida vocês arranjaram!
Acabem com isso! Vou falar com Alberta... Oh!
Os outros dois já estavam bastante acostumados com essas aventuras, mas, no exato momento em que Eustáquio disse oh, também eles disseram oh. Pois uma grande rajada de água fria e salgada saltara do quadro, deixando-os sem respiração e completamente encharcados.
– Vou arrebentar essa porcaria de quadro! –
gritou Eustáquio. Mas foi logo acontecendo uma porção de coisas.
Eustáquio correu para o quadro. Edmundo, que sabia alguma coisa de magia, saltou atrás, dizendo que ele não fizesse uma besteira. Lúcia quis agarrá-lo, mas foi arrastada para a frente. E, nesse mesmo instante, ou os garotos diminuíram de tamanho ou o quadro ficou maior.
Eustáquio deu um pulo para ver se retirava o quadro da parede, mas ficou encravado na moldura; na sua frente não havia vidro, mas um mar verdadeiro, com ventos e ondas batendo no caixilho, como se fosse de encontro a uma rocha.
Perdeu a cabeça e se agarrou aos outros dois que já tinham pulado para perto dele. Houve um instante de confusão e gritaria; quando achavam que tinham recuperado o equilíbrio, surgiu uma grande onda azul que os fez rodopiar, atirando-os ao mar.
O grito desesperado de Eustáquio apagou-se quando a água lhe entrou pela boca. Lúcia havia praticado muita natação nas férias, o que foi a sua sorte. Talvez até se agüentasse melhor se desse braçadas mais lentas e se a água não estivesse muito mais fria do que parecia no quadro. Mas não perdeu a serenidade, chegando a tirar os sapatos – coisa que a gente sempre deve fazer quando cai vestida dentro de água funda.
Fechou bem a boca e conservou os olhos abertos.
Estavam muito perto do navio e a menina via o costado verde, erguendo-se lá no alto, e várias pessoas olhando do convés.
Então, como era de esperar, Eustáquio agarrou-se a ela, cheio de pavor, e os dois foram para o fundo. Quando voltaram à superfície, a menina viu uma figura vestida de branco mergulhando do costado do navio. Edmundo estava agora junto dela, bracejando e segurando os braços de Eustáquio, que não parava de gritar.
De repente alguém cujo rosto lhe era vagamente familiar passou-lhe o braço por debaixo do corpo.
Do navio gritavam o tempo todo; na amurada apinhavam-se cabeças e de bordo lançavam cordas. Lúcia sentiu que Edmundo e o desconhecido lhe atavam cordas ao corpo.
Seguiu-se o que lhe pareceu uma longa espera, durante a qual ficara com o rosto arroxeado e batendo queixo. Mas na verdade a espera não foi de fato grande; só estavam aguardando pelo momento em que poderiam içá-la para bordo, sem ir de encontro ao costado do navio. Mesmo com todas essas precauções,
quando finalmente alcançou o convés, toda encharcada e tremendo de frio, tinha um joelho machucado. Puxaram depois Edmundo e o infeliz Eustáquio. Por fim, subiu o desconhecido – um rapaz de cabelos dourados, alguns anos mais velho do que a menina.
– Ca... Ca... Caspian – gaguejou Lúcia, logo que tomou fôlego. Porque era mesmo Caspian, o jovem rei de Nárnia, a quem haviam ajudado a subir ao trono quando visitaram aquele país pela última vez.
Edmundo também o reconheceu.
Cumprimentaram-se os três, dando tapinhas nas costas uns dos outros, com grande alegria.
– Quem é o amigo de vocês? – perguntou logo Caspian, voltando-se para Eustáquio, com semblante risonho e acolhedor.
Mas Eustáquio, que chorava de maneira inacreditável para um rapaz da sua idade que não sofrerá mais do que uma simples molhadela, apenas gritou:
– Quero ir embora! Não gosto disto!
– Embora para onde? – perguntou Caspian.
Eustáquio correu para a amurada do navio como se esperasse ver a moldura do quadro sobre o mar e, quem sabe, até mesmo um pedacinho do quarto de Lúcia. Mas só viu ondas azuis e o céu, de um azul mais claro, estendendose até a linha do horizonte. É compreensível que tenha ficado em pânico, e logo começou a enjoar.
– Chegue aqui, Rinelfo – disse Caspian para um dos marinheiros. – Busque vinho aromático para Suas Majestades. Precisam de calor depois desse mergulho.
Tratava Edmundo e Lúcia por majestades, porque estes, como Pedro e Susana, haviam sido, muito tempo atrás, reis e rainhas em Nárnia. O tempo em Nárnia não corre como em nosso mundo. Mesmo que passemos cem anos em Nárnia, voltamos ao nosso mundo exatamente no mesmo dia e na mesma hora em que partimos.
Mas, se quisermos voltar a Nárnia depois de termos passado uma semana aqui, podem já ter se passado mil anos em Nárnia, ou um dia só, ou até não ter passado tempo algum. Só quando se chega lá é que se sabe quanto tempo se passou. Assim, quando os Pevensie haviam estado em Nárnia pela última vez, na segunda visita, era para os habitantes de Nárnia como se o rei Artur tivesse voltado à Grã-Bretanha, como se diz que há de voltar. E eu digo que o quanto antes melhor!
Rinelfo apareceu com o vinho aromático, fumegando num jarro, e quatro taças de prata. Era justamente disso que precisavam. À medida que Lúcia e Edmundo iam bebendo, sentiam o calor percorrer-lhes todo o corpo. Eustáquio é que começou a fazer caretas e engasgar-se, lançando tudo fora e ficando ainda mais enjoado.
Recomeçou a chorar e a pedir que lhe dessem um chá feito com água potável. Ou que o desembarcassem no porto mais próximo.
– Que companheiro de viagem mais gozado você nos trouxe! – murmurou Caspian para Edmundo, rindo-se disfarçadamente.
Porém, Eustáquio irrompeu de novo:
– Opa, Hã... Que troço é aquele? Tirem daqui essa coisa horrorosa!
Aí ele tinha certa razão de mostrar espanto:
da cabine da popa saíra um ser muito curioso, que se aproximava deles devagar. Podia-se dizer que
era um rato, e era realmente. Mas um rato com cerca de sessenta centímetros de altura, caminhando apoiado nas patas traseiras. Atada à cabeça, por baixo de uma orelha e por cima de outra, exibia uma fina fita dourada na qual se prendia uma pena vermelha. Como a pele do rato era muito escura, quase negra, o efeito era impressionante. Apoiava a pata esquerda no punho de uma espada quase tão comprida quanto
sua cauda. Seu equilíbrio, ao caminhar solenemente ao longo do convés que balançava, era perfeito, e seus modos revelavam que estava habituado à corte. Lúcia e Edmundo viram logo quem era. Era Ripchip, o mais valente de todos os animais falantes de Nárnia, o rato-chefe, que ganhara glória imorredoura na segunda batalha de Beruna. Lúcia sentiu uma vontade enorme, como sempre lhe acontecia, de pegar Ripchip no colo e acariciá-lo. Mas sabia muito bem que nunca poderia satisfazer essa vontade, pois ele ficaria profundamente ofendido. Em vez disso, ajoelhouse para conversar com ele.
Ripchip avançou a perna esquerda, afastou para trás a direita, fez uma reverência, beijou-lhe a mão, endireitou-se, torceu os bigodes e disse na sua voz aguda e chiante:
– Sou vosso humilde servo, assim como do rei Edmundo. (Fez outra reverência.) A esta maravilhosa aventura faltava apenas a presença de Vossas Majestades.
– Ai, ai, ai! Tirem-me daqui! – gemeu Eustáquio. – Tenho horror a rato. Não agüento ver bicho fazendo palhaçada. São uns idiotas que gostam de bancar os espertalhões.
– Devo compreender – disse Ripchip a Lúcia, de pois de olhar demoradamente para Eustáquio – que essa criatura singularmente descortês está sob a proteção de Vossa Majestade.
Porque se não for assim...
Lúcia e Edmundo espirraram ao mesmo tempo.
– Mas onde estou com a cabeça! Deixei vocês aqui com a roupa molhada! – exclamou Caspian. – Vamos descer para mudar de roupa.
Como é natural, Lúcia, cedo-lhe o meu camarote, mas o que não tenho é vestimenta feminina de acordo. Ripchip, mostre-lhes o caminho como um bom sujeito.
– Para servir a uma senhora, mesmo uma questão de honra pode esperar, pelo menos por agora... – e Ripchip olhou severamente para Eustáquio.
Mas Caspian os empurrou e logo Lúcia entrou por uma portinha para a cabine da popa.
Ficou encantada. Na salinha abriam-se três janelas quadradas para o mar revolto; bancos baixos e almo-fadados cercavam os três lados da mesa; uma lâmpada de prata balançava sobre suas cabeças (viu logo que era trabalho de anões, pela delicada perfeição) e, na parede em frente, a efígie de ouro de Aslam, o Leão, pendurada acima da porta. Viu tudo isso num relance, pois Caspian imediatamente abriu uma porta a bombordo e disse:
– Este agora vai ser o seu quarto, Lúcia. Só vou tirar daqui umas peças de roupa para mim – e enquanto falava remexia as gavetas – e depois deixo você à vontade. Ponha sua roupa lá fora; mandarei que a levem para secar.
Lúcia sentia-se tão à vontade no camarote como se o ocupasse havia semanas. O movimento do navio não a incomodava nem um pouco, pois nos velhos tempos em que fora rainha em Nárnia tinha viajado muito. O camarote era pequeno, mas muito alegre, com painéis pintados (aves, outros bichos, dragões vermelhos e trepadeiras), e estava imaculadamente limpo. As roupas de Caspian eram demasiado grandes, mas ela conseguiu dar um jeito. Os sapatos, as sandálias e as galochas é que eram impossíveis de calçar, por causa do tamanho, mas Lúcia não se importava de andar descalça a bordo. Quando acabou de se vestir,
olhou pela janela a água que ia ficando para trás, em torvelinho, e suspirou profundamente. Tinha a certeza de que passaria uma temporada maravilhosa.
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