15. O desaparecimento de Jill

Os outros apenas podiam ouvir, mas não viam o esforço feito por Jill para subir aos ombros do paulama:
– Tire o dedo do meu olho... Olhe o pé na minha boca... Aí... Agora seguro suas pernas... Firme-se com as mãos na terra...
A sombra de Jill desenhava-se contra a luz.
– Como é? – gritaram todos ansiosos.
– É um buraco – gritou Jill. – Espere um pouco, Brejeiro: é melhor eu ficar em pé nos seus ombros, em vez de sentada.
A figura recortou-se mais contra a luz, pondo-se de pé.
– Parece... – começou a dizer Jill, mas de repente ouviu-se um grito, não um grito agudo,mas como se sua boca estivesse sendo abafada.
Depois ela começou a gritar alto, mas nãoconseguiam entender o que dizia. O foco de luz por um segundo sumiu; ouviram ao mesmo tempo um ruído de coisa arrastada e a voz do paulama:
– Depressa! Agarrem as pernas dela!
Alguém está puxando Jill para cima! Já! Não, aqui! É tarde demais!
A abertura ficou novamente clara. Jill sumira.
– Jill! Jill! – berraram sem resposta.
– Que droga! Por que você não agarrou os pés dela? – perguntou Eustáquio.
– Não sei – gemeu Brejeiro. – Já nasci fracassado. É o destino. Estava escrito que eu seria a causa da morte de Jill, como estava escrito que eu tinha de comer carne de Cervo Falante. Minha culpa, minha culpa!
– Não poderia ter acontecido nada mais triste e vergonhoso – disse o príncipe. – Entregamos uma valente senhorita às mãos do inimigo, e aqui ficamos nós em segurança.
– Será que eu consigo passar por aquele buraco? – perguntou Eustáquio.
Havia sucedido a Jill o seguinte: assim que pôs a cabeça para fora, percebeu que estava olhando como se fosse do alto de uma janela, e não como se fosse de um alçapão no teto.
Permanecera tanto tempo no escuro que seus olhos não puderam distinguir logo o que viam, a não ser que não estava diante do mundo ensolarado que esperava. O ar parecia mortalmente gelado e a luz era azul e pálida.
Havia ainda muito barulho e uma porção de objetos brancos voando. Foi nesse momento que ela pediu para subir aos ombros de Brejeiro Feito isso, pôde ver e ouvir muito mais.
Havia dois tipos de ruído: a batida rítmica de vários pés e a música de quatro rabecas, três flautas e um tantã. Percebeu também qual era a sua posição. Olhava de um buraco para um terreno em declive. Tudo era muito branco, e muitas pessoas se agitavam de um lado para outro.
Aí começou a arquejar. As pessoas eram elegantes faunos e dríades com os cabelos coroados de folhas a flutuar. Agitavam-se. Não, dançavam – uma dança de figuras e passos tão complicados que era preciso algum tempo para entendê-la.
Súbito ocorreu-lhe que a pálida luz azulada vinha do luar, e que a matéria branca no chão era neve.
E, naturalmente, as estrelas luziam no céu escuro.
As coisas altas e escuras, além dos dançarinos, eram árvores. Não tinham chegado a um lugar qualquer no Mundo de Cima, mas ao coração de Nárnia. Jill achou que ia desmaiar de prazer. E a música – uma música agreste e muito suave, mas também meio fantástica e impregnada de magia como o repenicado da feiticeira – aumentava o deslumbramento.
Leva-se tempo para contar, mas curto foi o tempo de ver tudo isso. Virou-se logo para transmitir aos outros a mensagem, gritando: “Parece que está tudo ótimo. Estamos em casa.”
Não passou do “parece”, e o motivo é o seguinte: rodeando sem parar os dançarinos, havia um bando de anões, todos festivamente vestidos, quase todos de escarlate, com capuzes debruados de peles, borlas douradas e grandes botas peludas.
Enquanto giravam iam atirando bolas de neve (eram as coisas brancas que Jill tinha visto a voar). Não as atiravam nos dançarinos. Atiravamnas nos espaços vazios, com uma precisão perfeita. Era a chamada Grande Dança da Neve, que se realizava em Nárnia na primeira noite de neve com luar. Era ao mesmo tempo uma dança e uma brincadeira, pois o dançarino que errasse um pouquinho recebia uma bolada de neve na cara, e todos davam risadas. Nas noites mais bonitas, com o luar, o pio das corujas, o tantan do tambor, a festa costumava prolongar-se até o raiar do dia.
Jill calou-se depois do “parece” porque uma bola de neve acertara-lhe em cheio na boca. Não deu a mínima importância; só que não podia falar, por mais feliz que se sentisse. Depois de recuperar a fala, chegou a esquecer-se de que os outrosainda não sabiam sobre aquelas grandes novidades: simplesmente inclinou-se para fora do buraco e gritou para os dançarinos:
– Socorro! Socorro! Estamos enterrados na colina!
Os narnianos, que ainda não tinham notado o buraco, olharam em várias direções, muito surpresos. Logo que deram com a figura de Jill vieram correndo e umas dez mãos se estenderam para ela. Jill pulou para fora e deu uns passos, para depois dizer:
– Há mais três lá dentro; e um deles é o príncipe Rilian; cavem, por favor.
Já estava cercada pela multidão quando disse isso, pois outras criaturas que assistiam à dança chegaram correndo. Esquilos choveram das árvores, e também corujas. Ouriços apareceram correndo, tão depressa quanto lhes permitiam as curtas perninhas. Uma grande pantera, remexendo a cauda com inquietação, foi a última a juntar-se ao grupo.
Logo que entenderam o que Jill estava dizendo, entraram em atividade.
– Picaretas e pás, pessoal, pás e picaretas! – disseram os anões, disparando para os bosques.
– Acordem as toupeiras. São ótimas para cavar, tão boas quanto os anões – disse uma voz.
– Que foi que ela disse sobre o príncipe Rilian? – perguntou outra voz.
– Calma! – comandou a pantera. – A pobre criança está enlouquecida, depois de tanto tempo perdida dentro da colina. Não sabe o que diz, é claro.
– Isso mesmo – falou um velho urso. – Disse que o príncipe Rilian era um cavalo!
– Disse coisa nenhuma! – protestou um esquilo atrevido.
– Disse sim! – falou outro esquilo, ainda mais atrevido.
– É v-v-verdade! Não b-b-banque o b-bbobo!
– disse Jill, falando desse jeito porque seu queixo batia de frio.
Uma das dríades enrolou-lhe um manto de pele que um anão deixara cair ao passar correndo em busca de ferramentas. Um fauno obsequioso foi até uma gruta no bosque buscar-lhe uma bebida quentinha. Antes que ele voltasse, os anões reapareceram com as ferramentas e atacaram a colina. Então Jill ouviu-os gritar: “Ei, o que você está fazendo?” – “Abaixe essa espada, rapaz!” – “Nada disso, menino!” Eustáquio era um pouco
mais pesado e bem mais desajeitado que Jill e assim, quando olhou para fora, bateu a cabeça contra o lado da abertura, causando uma pequena avalancha de neve que caiu na sua cabeça, tapando-lhe os olhos. Por isso, quando conseguiu se safar da neve e viu dezenas de pessoas correndo rapidamente para o seu lado, tentou se defender.
Jill correu para o local e não sabia se chorava ou se ria ao dar com a cara de Eustáquio, muito pálida e suja; com a mão direita, ele brandia a espada, ameaçando quem tentasse aproximar-se.
E claro: ele experimentara nos últimos minutos sensações bem diferentes. Ouvira o grito que antecedeu o desaparecimento da menina.
Pensou, com o príncipe e Brejeiro, que ela só podia ter sido agarrada por inimigos. Lá embaixo não podia saber que a pálida luz azulada era o luar. Achou que o buraco dava passagem a uma outra gruta, iluminada por uma fosforescência fantasmagórica e repleta sabe-se lá de que criaturas maléficas do Submundo.
Assim, quando colocou a cabeça de fora, ajudado por Brejeiro, e brandiu a espada, estava cometendo um ato de bravura. Os outros também o teriam feito, caso coubessem na abertura.
– Pare com isso, Eustáquio – gritou Jill. – São amigos, não está vendo? Estamos em Nárnia. Tudo bem!
Só então ele percebeu o que se passava e pediu desculpas aos anões.
– Não há de quê! – responderam os anões, estendendo as mãozinhas cabeludas para ajudá-lo.
Então Jill enfiou a cabeça na pequena abertura e gritou as boas-novas para os prisioneiros. Quando retirava a cabeça, ouviu Brejeiro resmungar:
– Coitada da Jill! Foi demais para ela: está começando a ver coisas.
Jill e Eustáquio deram-se as mãos, as duas, e respiraram profundamente o ar livre da meianoite. Um manto foi colocado sobre Eustáquio e bebidas quentes foram trazidas. Os anões quase já haviam retirado a neve e o capim que rodeavam o buraco: picaretas e pás dançavam agora no chão como os pés de faunos e dríades. Dez minutos apenas! Mas para Jill e Eustáquio já era como se os perigos passados nas trevas do labirinto fossem um sonho. Lá fora, no frio, com a lua e as estrelas no alto (as estrelas de Nárnia, mais próximas do
que as estrelas em nosso mundo, parecem maiores), e rodeados de tantas carinhas alegres, era difícil acreditar no Submundo.
Antes que tivessem acabado de beber, umas dez toupeiras, recém-acordadas e não muito satisfeitas, vinham chegando. Logo que souberam do que se tratava, mudaram de disposição. Até os faunos ajudaram, carregando a terra em carrinhos.
Os esquilos pulavam e dançavam com grande animação. Ursos e corujas limitavam-se a dar conselhos e a perguntar se as crianças não gostariam de comer alguma coisa no calor da gruta. Mas os dois faziam questão de esperar os amigos.
Não há quem faça esse tipo de trabalho melhor do que anões e toupeiras. Para estes aquilo nem é trabalho, pois adoram cavar. Não demoraram, portanto, a abrir na colina uma grande brecha. O primeiro a emergir do escuro para a luz da lua foi o paulama; depois, puxando os cavalos, Rilian, o príncipe em pessoa.
Quando saiu Brejeiro, brados surgiram de todos os lados:
– Ei, um paulama... Não é o velho Brejeiro?
Aquele Brejeiro da outra banda... Que aconteceu, Brejeiro?... Estão buscando você por toda a parte... Trumpkin espalhou por aí avisos, prometendo uma recompensa...
Mas ficou tudo em absoluto silêncio de repente – como acontece no dormitório do colégio quando o chefe de disciplina abre a porta. Pois tinham visto o príncipe.
Não duvidaram de quem era ele nem por um momento.
Muitos bichos, muitas dríades e muitos faunos ainda se lembravam dele nos velhos tempos. Os mais velhos até se recordavam de que seu pai, o rei Caspian, quando jovem, era a cara do filho.
Apesar de pálido, depois do longo cativeiro nas Terras Profundas, vestido de preto, empoeirado e cansado, havia no seu rosto alguma coisa que não enganaria ninguém. Essa coisa existia no rosto de todos os verdadeiros reis de Nárnia, que governam em nome de Aslam, coroados em Cair Paravel, no mesmo trono de Pedro, o Grande Rei.
Todas as cabeças se descobriram, todos os joelhos se curvaram. Logo depois, vieram os vivas, e os gritos, e pulos de alegria, e apertos de mão, e abraços, e beijos. Lágrimas emocionadas correram dos olhos de Jill. A peregrinação, apesar de suas durezas e perigos, valera a pena.
– Por favor, Alteza, há uma ceia preparada naquela caverna para depois da dança...
– Com muito prazer – disse o príncipe; e na verdade os quatro amigos tinham um apetite imbatível naquela noite.
A multidão começou a caminhar para a caverna sob as árvores. Jill conseguiu ouvir Brejeiro dizer para os que o rodeavam:
– Não, não, a minha história pode esperar.
Não há o menor interesse no que aconteceu comigo. Eu, sim, quero saber de notícias. E de uma vez! O navio do rei naufragou? Há guerra com os calormanos? Apareceram os dragões? – Todos caíram na risada, comentando:
– É ainda o mesmo Brejeiro! Não mudou nem um pouco!
As crianças estavam caindo de fome e cansaço, mas reviveram com o calor da gruta, com a beleza do clarão da lareira, que iluminava as paredes, o guarda-louças, as xícaras, os pires, os pratos e o chão de pedra lisa.
Mesmo assim, caíram no sono enquanto a ceia estava sendo preparada. Enquanto dormiam, o príncipe Rilian contou a aventura para os bichos e anões mais velhos e sábios. Souberam então que uma feiticeira perversa (sem dúvida uma do mesmo tipo da feiticeira Branca, que trouxera para Nárnia há muitos anos um inverno sem fim) havia matado a mãe do príncipe e encantado o próprio Rilian. Souberam também que ela invadira Nárnia pelo caminho subterrâneo, planejando subjugar o país por intermédio do próprio Rilian – que jamais sonhou que o país onde seria rei (rei só no nome, mas na verdade escravo da feiticeira) era seu próprio país.
Souberam também que a feiticeira era aliada dos perigosos gigantes de Harfang.
– A lição de tudo, Alteza – concluiu o anão mais velho –, é que essas feiticeiras do Norte sempre miram o mesmo objetivo: em cada época da História, mudam apenas de tática.

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