Postigos fechados - repetiu o padre Dominic. - As janelas estavam com os postigos fechados? - Bem, não todas. - Eu estava sentada na cadeira diante da mesa dele, cutucando minha erupção de Sumagre venenoso. A hidrocortisona estava secando a erupção. Agora, em vez de soltar líquido, ela estava apenas escamosa. - Só as do escritório dele, ou sei lá o que era aquilo. Ele disse que era sensível à luz.
E você disse que ele ficava olhando o seu pescoço?
O meu cordão. Foi o secretário dele que ficou olhando meu pescoço como se esperasse ver um dispositivo gigantesco ali, ou sei lá o quê. Mas o senhor não está entendendo, padre Dom.
Eu tinha decidido abrir o jogo com o bom padre. Bem, pelo menos com relação à defunta que vinha me acordando no meio da noite ultimamente. Ainda não estava preparada para contar sobre Jesse - especialmente considerando o que tinha acontecido quando Tad me deixou na noite anterior - mas achei que, se Thaddeus Beaumont, pai, era realmente o assassino assustador que eu não podia deixar de suspeitar de que fosse, eu precisaria da ajuda do padre Dom para levá-lo à justiça.
- O ponto - falei - é que ele ficou surpreso pelo motivo errado. Ficou surpreso porque a mulher disse que ele não tinha matado. O que implica - pelo menos para mim – que ele realmente matou. Matou a mulher, quero dizer.
Quando eu tinha entrado, o padre Dominic estava enfiando um arame de cabide desamassado debaixo do gesso. Aparentemente estava com coceira. Tinha parado de coçar, mas não conseguia largar o pedaço de arame. Ficava mexendo nele pensativamente. Mas pelo menos ainda não havia tirado os cigarros do maço.
Sensível à luz - ficou murmurando. - Olhando para o seu pescoço.
O ponto - falei de novo - é que parece que ele realmente matou a tal dona. Quero dizer, ele praticamente admitiu. O problema é: como nós podemos provar? Nós nem sabemos o nome dela, quanto mais onde ela foi enterrada, se é que alguém se incomodou em enterrar. Nós nem temos um cadáver para apontar. Mesmo que nós fôssemos procurar a polícia, o que iríamos dizer?
Mas o padre Dom estava profundamente absorvido em seus pensamentos, revirando o arame nas mãos. Achei que, se ele ia entrar num devaneio, bem, então eu também iria.
Recostei-me na cadeira, coçando a erupção e pensando no que tinha acontecido depois de Tad e eu termos parado de rir da erupção horrorosa um do outro - a única parte da noite que eu não tinha descrito ao padre Dom.
Tad tinha ido trocar de roupa. Eu esperei perto da piscina, enquanto o vapor que subia dela esquentava minhas pernas com a meia calça. Ninguém me incomodou e até foi relaxante ficar ouvindo a cascata. Depois de um tempo Tad apareceu de novo, com o cabelo ainda molhado, mas vestindo um jeans e, infelizmente, outra camisa de seda preta. Até estava usando um cordão de ouro, se bem que duvido de que ele o tenha ganhado escrevendo uma bela redação sobre James Madison.
Eu tive de me esforçar para não dizer que o ouro provavelmente estava irritando sua erupção, e que a seda preta com jeans num homem é tremendamente cafona.
Mas consegui me conter, e Tad me levou para dentro, onde Yoshi reapareceu como magia com o meu casaco. Depois fomos até o carro de Tad, que, para meu horror completo, era uma coisa preta e esguia que, juro por Deus, David Hasselhoff dirigia naquele seriado que ele fez antes de SOS Malibu . Tinha bancos de couro fundos e o tipo de aparelhagem de som pela qual Soneca seria capaz de matar e, quando pus o cinto de segurança, rezei para que Tad fosse bom motorista, já que eu morreria de vergonha se alguém tivesse de usar um daqueles alicates gigantescos para me arrancar de um carro assim.
Mas Tad parecia achar o carro maneiro e também que ficava maneiro dentro dele. E tenho certeza de que na Polônia, ou sei lá onde, é considerado maneiro andar de Porsche, usar cordão de ouro e camisa de seda preta, mas pelo menos lá no Brooklyn, se você fizesse essas coisas, ou era traficante de drogas ou morava em Nova Jersey.
Mas aparentemente Tad não sabia disso. Engrenou o carro e um instante depois estávamos na Drive, pegando as curvas fechadas ao longo do litoral com tanta facilidade quanto se estivéssemos num tapete mágico. Enquanto dirigia, Tad perguntou se eu queria ir a algum lugar, talvez tomar um café. Acho que agora que tínhamos a ligação comum do sumagre venenoso, ele queria ficar um tempo comigo.
Falei que sim, claro, mesmo odiando café, e ele me deixou usar o celular para ligar para mamãe e dizer que ia chegar tarde. Mamãe ficou tão empolgada em saber que eu estava indo a algum lugar com um garoto que nem fez as coisas que geralmente as mães fazem quando suas filhas saem com um cara que elas não conhecem, tipo exigir o nome da mãe dele e o número do telefone de sua casa.
Desliguei e nós fomos ao Coffee Clutch, um lugar onde a garotada da Academia da Missão adora ir. Acabou que Cee Cee e Adam estavam lá, mas quando me viram entrando com um garoto tiveram o tato de fingir que não me conheciam. Pelo menos Cee Cee fez isso. Adam ficou me olhando e fazendo caretas sempre que as costas de Tad estavam viradas para ele. Não sei se as caretas se deviam ao fato de a erupção de Tad estar claramente visível mesmo à luz fraca do Coffee Clutch ou se Adam estava apenas expressando seu sentimento com relação a Tad Beaumont em geral.
De qualquer modo, depois de dois capucinos - para ele - e duas cidras quentes para mim, nós saímos, e Tad me levou para casa. Descobri que ele não era um cara particularmente brilhante. Falava um bocado sobre basquete. Quando não estava falando de basquete, falava de velejar e quando não estava falando de velejar falava de jet-ski.
E basta dizer que eu não sei nada de basquete, vela ou jet-ski.
Mas ele parecia um cara bem decente. E, diferentemente do pai, sem dúvida não era pirado, sempre positivo. E, claro, era devastadoramente bonito, de modo que, no total, eu teria dado nota sete ou oito para a noite, numa escala de um a dez, um sendo abominável, dez sendo sublime.
E então, quando eu estava tirando o cinto de segurança depois de nos despedirmos, de repente Tad se inclinou para frente, pegou meu queixo, virou meu rosto para ele e me beijou.
Meu primeiro beijo. Primeiríssimo.
Sei que é difícil acreditar. Eu sou tão vibrante, expansiva e coisa e tal, que você pensaria que os garotos me cercam como abelhas em volta do mel durante toda a minha vida.
Só digamos que não foi exatamente isso que aconteceu. Eu gosto de pôr a culpa no fato de que sou uma aberração biológica - capaz de me comunicar com os mortos e essas coisas - para nunca ter saído com um cara, mas sei que não é realmente isso. Só não sou o tipo de garota que os caras pensam em convidar para sair. Bem, talvez pensem, mas sempre parecem conseguir se convencer do contrário. Não sei se é porque acham que eu posso mandar o punho na garganta deles se tentarem alguma coisa, ou se só ficam intimidados por minha inteligência superior e minha aparência fantástica (ha ha). No fim das contas, eles simplesmente não se interessam.
Isto é, até Tad. Tad ficou interessado. Tad ficou muito interessado.
Tad estava exprimindo seu interesse aprofundando nosso beijo, saindo de um beijinho de despedida para um de língua em pique total - que eu estava curtindo imensamente, a propósito, apesar do cordão e da camisa de seda -, quando por acaso notei - é, tudo bem. Vou admitir. Meus olhos estavam abertos. Ei, era o meu primeiro beijo, eu não queria perder nada, certo? - que havia alguém sentado no minúsculo banco de trás do Porsche.
Virei a cabeça para trás e soltei um gritinho.
Tad piscou para mim, confuso.
O que há de errado? - perguntou ele.
Ah, por favor - disse a pessoa no banco de trás, em tom agradável. - Não parem por minha causa.
Olhei para Tad.
- Eu tenho de ir - falei. - Desculpe.
E praticamente saí correndo do carro.
Estava disparando pela entrada de casa, com as bochechas pegando fogo, de tanta vergonha, quando Jesse me alcançou. Ele nem estava andando depressa. Só caminhando.
E ainda teve a cara de pau de me dizer:
A culpa é sua.
Como a culpa é minha? - perguntei irritada enquanto Tad, depois de hesitar um momento, começou a dar a marcha ré, saindo de nossa entrada de veículos.
Você não deveria ter deixado ele avançar tanto – disse Jesse.
- Avançar? O que você está falando? Avançar? O que isso significa?
- Você nem o conhece direito. E estava deixando...
Girei para encará-lo. Felizmente, nessa hora, Tad tinha sumido. Caso contrário teria me visto, sob a luz dos faróis, girando e gritando para a lua que finalmente havia atravessado as nuvens.
- Ah, não - falei em voz alta. - Nem vem com isso, Jesse.
Bem - ao luar dava para ver que a expressão de Jesse era de determinação teimosa. A teimosia não era mistério:
Jesse talvez fosse a pessoa mais teimosa que eu já conheci. Mas eu não podia deduzir o que ele estava tão decidido a fazer, a não ser, talvez, arruinar minha vida. – Vocês estavam.
A gente só estava se despedindo - sibilei para ele.
Eu posso estar morto há cento e cinqüenta anos, Suzannah, mas isso não significa que não saiba como as pessoas se despedem. E em geral quando as pessoas se despedem cada um fica com a língua na própria boca.
Ah, meu Deus. - Virei de costas para ele e comecei a voltar para a casa. - Ah, meu Deus. Ele não disse isso.
É, eu disse isso. - Jesse foi atrás de mim. - Eu sei o que vi, Suzannah.
Sabe o que você está parecendo? - perguntei virando-me embaixo da escada que dava na varanda, para encará-lo.
- Parece um namorado com ciúme.
Nombre de Dios. Não - disse Jesse com um riso. – Ciúme daquele...
Ah, é? Então de onde vem toda essa hostilidade? Tad nunca fez nada contra você.
-Tad é um...
E então ele disse uma palavra que eu não pude entender, porque era em espanhol. Encarei-o.
- Um o quê?
Ele repetiu a palavra.
Olha - disse eu. - Fale em inglês.
Não existe tradução em inglês para essa palavra.
Bem, então não precisa falar.
Ele não serve para você - disse Jesse, como se isso resolvesse o assunto.
Você nem o conhece.
Conheço o bastante. Sei que você não me ouviu nem ouviu o seu pai quando saiu esta noite sozinha para a casa daquele homem.
Certo. E vou admitir, a coisa foi muito, muito assustadora. Mas Tad me trouxe para casa. Tad não é o problema lá. O pai dele é que é maluco, e não o Tad.
- O problema aqui - disse Jesse, balançando a cabeça - é você, Suzannah. Você acha que não precisa de ninguém, que pode cuidar de tudo sozinha.
Eu odeio lhe dar a notícia, Jesse, mas eu posso cuidar de tudo sozinha. - Depois me lembrei de Heather, o fantasma da garota que quase tinha me matado há duas semanas.
- Bem, quase tudo - corrigi.
Ah. Está vendo? Você admite. Suzannah, esse caso...você precisa pedir ajuda ao padre.
Ótimo. Vou pedir.
Ótimo. É melhor pedir mesmo.
Estávamos tão furiosos um com o outro e tínhamos ficado ali gritando tanto que nossos rostos terminaram separados por centímetros. Por uma fração de segundo eu olhei para Jesse, e mesmo estando totalmente furiosa com ele, não estava pensando em como ele é um babaca metido a certinho.
Em vez disso estava pensando num filme que vi uma vez, em que o herói pegava a heroína beijando outro homem, por isso agarrou-a, olhou-a de modo passional e disse: "Se eram beijos que você estava querendo, sua tolinha, por que não veio me procurar?”
E então ele deu aquele riso maligno e começou a beijá-la.
Eu não consegui deixar de pensar que talvez Jesse fosse fazer isso, só que iria me chamar de hermosa, em espanhol, como faz algumas vezes quando não está totalmente furioso comigo por ter dado beijos de línguas em outros caras num carro.
Assim eu meio que fechei os olhos e deixei a boca ficar toda relaxada, você sabe, para o caso de ele decidir enfiar a língua ali.
Mas tudo que aconteceu foi que a porta de tela bateu, e quando abri os olhos Jesse tinha sumido.
Em vez disso Mestre estava parado na varanda, me olhando, comendo um sanduíche de sorvete.
- Ei - disse Mestre entre lambidas. - O que você está fazendo aqui fora? E com quem você estava gritando? Eu podia ouvir você lá de dentro. Estou tentando assistir a Nova, sabe?
Furiosa, mais comigo mesma do que com alguém, falei:
- Ninguém - e subi mal-humorada e entrei em casa.
Por isso no dia seguinte tinha vindo à sala do padre Dom logo cedo e contado tudo. De jeito nenhum Jesse ia ficar me acusando de que eu não precisava de ninguém. Eu preciso de um monte de gente.
E um namorado seria o número um dessa lista, muito obrigada.
Sensível à luz - disse o padre Dominic, saindo de seu devaneio. - O apelido dele é Red, mas ele não é ruivo. Ele estava olhando o seu pescoço. - O padre Dom abriu a gaveta de cima de sua mesa e pegou o maço de cigarros amassado, ainda sem abrir. - Você não vê, Suzannah?
Claro. Ele é pirado.
Não creio - disse o padre Dom. - Acho que ele é um vampiro.
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