Capítulo 16 > (Hora mais sombria)

Olhei horrorizada para a ponta da corda.
Engraçado. Sabe qual foi a primeira coisa que me passou pela cabeça?
- Mas o padre Dom disse que Maria e Felix eram bons católicos - gritei - Então o que estão fazendo lá embaixo naquela igreja?
Jesse teve um pouco mais de presença de espírito do que eu. Pegou meu pulso e o torceu para ver o mostrador do relógio do padre Dominic.
- Quanto tempo a mais você tem? - perguntou ele. - Quantos minutos?
Engoli em seco.
- Oito. Mas o motivo para o padre Dom ter abençoado minha casa foi para que eles não tentassem entrar, e então olha só o que eles fizeram. Entraram numa igreja...
Jesse olhou em volta.
- Vamos achar a saída - falou. - Não se preocupe, Suzannah. Tem de estar por aqui. Vamos achar.
Mas não íamos. Eu sabia. Não havia sentido sequer em olhar. Com a névoa cobrindo o chão tão densa, não havia chance de encontrarmos o buraco pelo qual eu tinha subido.
Não. Suzannah Simon, que fora tão dura de matar, de fato já estava morta.
Comecei a desamarrar a corda da cintura. Se ia encontrar meu criador, pelo menos queria estar com boa aparência.
- Deve estar por aqui - dizia Jesse enquanto balançava a mão na névoa, tentando afastá-la para ver por baixo. - Deve estar, Suzannah.
Pensei no padre Dominic. E em Jack. Pobre Jack. Se aquela corda tinha sido cortada, só podia ser porque alguma coisa catastrófica aconteceu lá embaixo naquela igreja. Maria de Silva, aquela católica praticante que o padre D. tivera tanta convicção de que jamais ousaria atacar um terreno consagrado, não se apavorava tanto com a possibilidade de ofender o Senhor quanto o padre Dominic havia presumido. Eu esperava que ele e Jack estivessem bem. O problema dela era comigo, e não com eles.
- Suzannah. - Jesse estava me espiando. - Suzannah, por que você não procura? Não pode desistir, Suzannah. Vamos encontrar. Sei que vamos encontrar.
Só olhei para ele. Nem o estava vendo, realmente. Estava pensando na minha mãe. Como é que o padre Dominic iria explicar? Quero dizer, se é que ele também já não estava morto. Mamãe iria suspeitar muito, muito mesmo, se meu corpo fosse encontrado na basílica. Quero dizer, eu nem freqüentava a igreja aos domingos. Por que estaria lá numa noite de sexta-feira?
- Suzannah! - Jesse me segurou pelos dois ombros. Agora me deu uma sacudida com força suficiente para fazer meu cabelo voar. - Suzannah, está ouvindo? Só temos mais cinco minutos. Precisamos achar uma saída. Chame-o.
Pisquei para ele, afastando confusa o cabelo dos olhos.
Isso pelo menos era uma coisa boa. Eu nunca teria de me preocupar em achar o tom perfeito para cobrir as grisalhos. Agora nunca ficaria grisalha.
- Chamar quem? - perguntei atordoada.
- O porteiro - respondeu Jesse com os dentes trincados. - Você disse que ele era seu amigo. Talvez nos mostre o caminho.
Olhei nos olhos de Jesse. Vi neles uma coisa que nunca havia notado. Percebi, num jorro, o que era essa coisa.
Medo. Jesse estava com medo.
E de repente fiquei com medo também. Antes estivera chocada. Agora estava apavorada. Porque, se Jesse estava com medo, bem, isso significava que uma coisa muito, muito ruim ia acontecer. Porque Jesse não se apavora com facilidade.
- Chame-o - insistiu ele.
Afastei meu olhar do dele e espiei ao redor. Em toda parte - toda parte para onde olhava - só via nevoa, céu noturno e mais névoa. Nada do porteiro. Nenhum buraco para voltar a igreja da Missão Junipero Serra. Nenhum corredor cheio de portas. Nada.
E então, de repente, havia uma coisa. Uma figura vindo na nossa direção. Fiquei cheia de alívio. O porteiro, finalmente. Ele me ajudaria. Eu sabia que sim...
Só que, quando chegou mais perto, vi que não era o porteiro. O cara não tinha nada na cabeça além de cabelos. Cabelos castanhos encaracolados. Exatamente como...
- Paul? - falei incrédula.
Não podia acreditar. Era o Paul. Paul Slater. Paul Slater estava vindo para nós. Mas como...
- Suze - disse ele em tom casual enquanto se aproximava.
Suas mãos estavam nos bolsos, com a camisa Brooks Brothers para fora da calça. Parecia que tinha acabado de chegar de um longo dia no campo de golfe.
Paul Slater. Paul Slater.
- O que você está fazendo aqui? - perguntei. - Você está... está morto?
- Eu ia lhe fazer a mesma pergunta. - Paul olhou para Jesse, que continuava segurando meus ombros. - Quem é o seu amigo? Presumo que seja amigo, não é?
- Eu... - Olhei de Jesse para Paul e de volta. - Vim aqui pegá-lo. Ele é meu amigo. Meu amigo Jesse. Jack o exorcizou por acidente e...
- Ah - disse Paul, balançando para trás e para a frente nos calcanhares. - É. Eu lhe disse que deveria ter deixado o Jack em paz. Ele nunca será um de nós, você sabe.
Só o encarei. Não podia deduzir o que estava acontecendo. Paul Slater, aqui? Não fazia nenhum sentido. A não ser que estivesse morto.
- Um de... de quê?
- Um de nós - repetiu Paul. - Eu lhe disse, Suze. Todo esse absurdo de fazer o bem, de ser mediador. Não acredito que você tenha caído nessa. - Ele balançou a cabeça, rindo um pouquinho. - Achei que era mais inteligente do que isso. Quero dizer, o velho, dá para entender. Ele é de um mundo totalmente diferente, de outra geração. E Jack, claro, é... bem, claramente inadequado para esse tipo de coisa. Mas você, Suze. Eu esperaria mais de você.
Jesse soltou meus ombros, mas ficou com uma das mãos firme num dos meus pulsos... o pulso que estava com o relógio do padre Dominic.
- Imagino que este não seja o porteiro - disse ele.
- Não - falei. - Este é o irmão de Jack, Paul. Paul? - Olhei-o. - Como chegou aqui? Você está morto?
Paul revirou os olhos.
- Não. Por favor. E você não precisa passar por toda aquela baboseira para vir aqui, também. Como eu, você pode vir e ir embora quando quiser, Suze. Simplesmente passou tanto tempo "ajudando" - ele fez as aspas no ar com os dedos - almas perdidas como esta - e balançou a cabeça na direção de Jesse - que não teve chance de se concentrar em descobrir seu verdadeiro potencial.
Encarei-o.
- Você disse... você me disse que não acreditava em fantasmas.
Ele sorriu como uma criança com a mão presa no vidro de biscoitos.
- Deveria ter sido mais específico. Não acredito é, deixá-los pegar no meu pé, como você claramente deixa. - Seu olhar foi até Jesse, cheio de desprezo.
Eu continuava com problemas para processar o que estava vendo... e ouvindo.
- Mas... mas não é isso que os mediadores devem fazer? - gaguejei. - Ajudar almas perdidas?
Paul conteve um tremor, como se a névoa girando ao nosso redor subitamente tivesse ficado mais fria.
- De jeito nenhum. Bem, talvez o velho. E o garoto. Mas eu, não. E você, certamente, não, Suzannah. E se tivesse se incomodado em me dar um tempo, em vez de ficar tão envolvida em resgatar esse aí - ele deu um riso de desprezo na direção de Jesse -, talvez eu pudesse lhe mostrar exatamente do que é capaz. Que é muito mais do que você pode começar a imaginar.
Um olhar para Jesse me mostrou que era melhor eu cortar essa conversinha se não quisesse mais derramamento de sangue. Pude ver um músculo, que nunca tinha notado antes, saltando no maxilar de Jesse.
- Paul - falei. - Quero que saiba que realmente significa muito para mim o fato de que você, aparentemente, tem todo o controle do mundo místico. Mas neste momento, se eu não voltar a Terra, vou acordar morta. Para não mencionar que, se não estou enganada, seu irmãozinho pode estar passando o maior perrengue lá embaixo com um cara chamado Diego e uma garota de saia-balão.
Paul assentiu.
- É. Graças a você e sua recusa em reconhecer seu verdadeiro talento, a vida de Jack está em perigo, bem como a do padre, por sinal.
Jesse fez um movimento súbito na direção de Paul, que eu interrompi segurando sua mão.
- Então que tal nos ajudar um pouquinho, hein, Paul, já que sabe tanto? - perguntei. Não era brincadeira conter o Jesse. Ele parecia pronto para arrancar a cabeça do cara. - Como podemos sair daqui?
Paul deu de ombros.
- Ah, é só isso que você quer saber? É fácil. Basta ir para a luz.
- Ir para a... - parei, furiosa. - Paul!
Ele deu um risinho.
- Desculpe. Só quis saber se você tinha visto o filme. Mas não estava rindo uma fração de segundo depois, quando Jesse de repente se lançou contra ele.
Sério. Foi que nem um documentário do mundo animal.
Num instante Paul estava ali parado, dando um risinho, e no outro o punho de Jesse estava afundando em seu rosto bronzeado e bonito.
Bem, eu tentei impedi-lo. Afinal de contas Paul provavelmente era minha única saída dali. Mas não posso dizer que realmente me importei ao ouvir o som de cartilagem nasal se rompendo.
Paul foi uma gracinha. Começou a xingar e dizer coisas como:
- Você quebrou meu nariz! Não acredito que você quebrou meu nariz!
- Vou quebrar mais do que o nariz - declarou Jesse, agarrando Paul pelo colarinho e balançando o punho sujo de sangue na frente dos olhos dele - se não disser como sair daqui agora.
Jamais descobri como Paul poderia ter respondido a esta interessante ameaça. Porque escutei uma voz docemente familiar chamando meu nome. Girei, e ali, correndo para mim através da névoa, estava Jack.
Em volta de sua cintura havia uma corda.
- Suze - gritou ele. - Venha depressa! Aquela fantasma ruim, contra quem você me avisou, cortou sua corda. E agora ela e aquele outro estão batendo no padre Dominic! - Então ele parou de correr, viu Jesse ainda segurando Paul ensangüentado e disse, curioso: - Paul? O que você está fazendo aqui?
Um instante se passou. Na verdade foi o tempo de uma batida de coração, se eu tivesse coração, coisa que, claro, não tinha. Ninguém se mexeu. Ninguém respirou. Ninguém piscou.
Então Paul olhou para Jesse.
- Você vai se arrepender disso - falou. - Entende? Vou fazer você lamentar.
Jesse apenas riu, sem o mínimo traço de humor. - Esteja à vontade para tentar.
Então empurrou Paul, como se ele fosse um lenço de papel usado, adiantou-se, segurou meu pulso e me arrastou até Jack.
- Então nos leve - disse ao menino.
E Jack, enfiando a mão na minha, fez isso sem olhar para o irmão. Nem mesmo uma vez.
O que me revelou praticamente tudo, percebi. Menos o que realmente queria saber.
Exatamente quem - ou, mais corretamente, o que - era Paul Slater.
Mas não tive tempo para ficar e descobrir. O relógio do padre Dominic me dava um minuto para voltar ao corpo ou ser posta na difícil situação de não ter um corpo... o que tornaria um verdadeiro problema começar o último ano do segundo grau.
Felizmente o buraco não ficava longe de onde estivemos.
Quando chegamos lá e olhei para baixo, não pude ver o padre Dominic em lugar nenhum. Mas podia ouvir os sons de uma luta - vidro se partindo, objetos pesados batendo no chão, madeira sendo lascada.
E pude ver meu corpo estendido abaixo, como se eu estivesse dormindo, e dormindo tão profundamente que não reagia ao som de toda aquela balburdia. Nem mesmo um tremor.
De algum modo a descida parecia muito mais longa do que tinha sido a subida.
Virei-me e olhei para Jack.
- Você deve ir primeiro. Vamos baixá-lo pela corda. Mas ele e Jesse gritaram ao mesmo tempo:
- Não!
E a próxima coisa que eu soube era que estava caindo.
Verdade. Despenquei e despenquei, e apesar de não poder ver grande coisa enquanto caía, pude ver onde iria bater. E, vou lhe contar, não estava achando legal esmagar meu próprio...
Mas não. Exatamente como nos sonhos de queda, abri os olhos no momento do impacto e me vi piscando para o rosto de Jesse e Jack, que me espiavam da borda do buraco que o padre Dom havia criado com seu cântico.
Estava dentro de mim mesma outra vez. E inteira. Dava para ver, quando estendi as mãos para verificar se as pernas continuavam no lugar. Continuavam. Tudo funcionava. Até o hematoma na testa doía de novo.
E quando, um segundo depois, uma estátua da Virgem Maria - a que, segundo Adam, chorava sangue - caiu sobre minha barriga, bem, isso também doeu de verdade.
- Aí está ela - gritou Maria de Silva. - Pegue-a!
Vou lhe contar, estou realmente ficando cansada de pessoas - principalmente pessoas mortas - tentando me matar. Paul está certo: eu sou boazinha. Não faço nada além de tentar ajudar as pessoas, e o que recebo em troca? Estátuas da Virgem Maria na barriga. Não é justo.
Para mostrar como achava tudo isso injusto, empurrei a estátua para o lado, fiquei de pé e agarrei Maria pela parte de trás da saia. Aparentemente, lembrando-se do último incidente comigo, ela decidiu fugir. Mas era tarde demais.
- Sabe, Maria - falei em tom ameno enquanto a puxava pelas fitas, como um pescador recolhendo uma truta realmente grande. - Garotas como você me irritam mesmo. Quero dizer, não só porque mandam os caras fazerem seu serviço sujo em vez de o fazerem sozinhas. É todo esse negócio de "sou muito melhor do que você porque sou uma de Silva" que me incomoda de verdade. Porque isso aqui são os Estados Unidos. - Estendi a mão e peguei um punhado de seus cabelos pretos brilhantes e encaracolados. – E nos Estados Unidos todos somos criados iguais, quer o sobrenome seja de Silva ou Simon.
- É? - gritou Maria, brandindo a faca. Aparentemente a havia conseguido de volta. - Bem, quer saber o que me irrita em você? Acha que só porque é uma mediadora é melhor do que eu.
Tenho de dizer que isso me deixou louca.
- Isso não é verdade - falei, inclinando-me enquanto ela girava a lâmina. - Não acho que sou melhor do que você porque sou mediadora, Maria. Acho que sou melhor do que você porque não ando por aí concordando em me casar com caras que não amo.
Num átimo prendi a mão dela as costas de novo. A faca tombou no chão com ruído.
- E mesmo que concordasse - continuei -, não mandaria assassiná-los para poder me casar com outro. Porque - segurando seu cabelo firme com a outra mão, guiei-a até a balaustrada do altar - acredito que a chave para um relacionamento bem-sucedido é a comunicação. Se você simplesmente tivesse se comunicado melhor com Jesse, nada disso estaria acontecendo agora. Quero dizer, este é o seu problema verdadeiro, Maria. A comunicação acontece nos dois sentidos. Alguém tem de falar. E alguém tem de ouvir.
Vendo o que eu ia fazer, Maria guinchou: - Diego!
Mas era tarde demais. Eu já havia batido seu rosto, com força, contra o corrimão do altar.
- O negócio - expliquei enquanto afastava sua cabeça do corrimão para examinar a extensão dos danos - é que você não ouve, não é? Quero dizer, eu lhe disse para não mexer comigo. E - inclinei-me para a frente e sussurrei em seu ouvido: - acho que eu especifiquei para você não mexer com meu namorado também. Mas você ouviu? Não... você... não... ouviu.
Acompanhei cada uma dessas quatro palavras com um golpe na cara de Maria. É cruel, sei, mas vamos encarar os fatos: ela merecia totalmente. A vaca tinha tentado me matar não uma vez, mas duas.
Não que eu esteja contando nem nada.
Esse é o negócio com as garotas que cresceram no século XIX: são furtivas. Isso eu admito. Tem muito bem resolvido todo o negócio de esfaquear pelas costas e atacar pessoas adormecidas.
Mas e quanto ao combate corpo a corpo? É, nisso não são muito boas. Quebrei seu pescoço facilmente, pisando em cima. Com sapatos Prada!
Uma pena que o pescoço não fosse permanecer quebrado por muito tempo.
Mas enquanto eu estava com ela muito bem dominada, olhei em volta para ver se Jack tinha descido em segurança.
E a coisa não era boa. Ah, Jack estava bem. Só que curvado sobre o padre Dominic, que não parecia nem um pouco bem. Estava caído embolado num dos lados do altar, com aparência péssima. Pulei por cima da balaustrada e fui até ele.
- Ah, Suze – gemeu Jack. - Não consigo acordar ele! Acho que...
Mas, enquanto ele falava, o padre Dom, com os óculos bifocais tortos no rosto, soltou um gemido.
- Padre D.? - Levantei sua cabeça e pousei-a gentilmente no colo. - Padre D., sou eu, Suze. Consegue me ouvir?
O padre D. só gemeu mais um pouco. Mas suas pálpebras tremularam, o que eu sabia que era bom sinal.
- Jack - falei - Corra até aquela caixa dourada atrás do crucifixo, está vendo? E pegue a garrafa de vinho que está lá dentro.
Jack correu para fazer o que eu tinha pedido. Pus o rosto perto do ouvido do padre Dominic e sussurrei:
- O senhor vai ficar bem. Fique firme, padre D. Agüente as pontas.
Um estalo muito alto me distraiu. Olhei para o resto da igreja com um súbito sentimento de frustração. Diego. Ele estava em algum lugar por ali. Tinha me esquecido dele...
Mas Jesse, não.
Não sei por que, mas eu havia simplesmente presumido que Jesse teria ficado naquela arrepiante terra de sombras. Não. Tinha voltado para este mundo - o mundo real - aparentemente sem pensar muito nas coisas das quais poderia estar abrindo mão.
Por outro lado, aqui embaixo ele podia dar um tremendo cacete no cara que o havia matado, de modo que talvez não estivesse abrindo mão de grande coisa. De fato, ele parecia bem disposto a devolver o favor - você sabe, matando o sujeito que o havia matado -, só que, claro, não podia fazer isso, porque Diego já estava morto.
Mesmo assim eu nunca tinha visto ninguém partir para cima de alguém com um objetivo tão claro. Fiquei convencida de que Jesse não iria se satisfazer meramente quebrando o pescoço de Felix Diego. Não, acho que ele queria arrancar a coluna vertebral do sujeito.
E estava se saindo muito bem. Diego era maior do que Jesse, mas também era mais velho, e não tinha pés tão rápidos. Além disso acho que Jesse simplesmente queria mais. Quero dizer, ver seu oponente decapitado. Pelo menos se a energia com que ele estava brandindo um pedaço de banco de igreja contra a cabeça de Felix Diego servisse como alguma indicação.
- Aqui - disse Jack ofegante quando trouxe o vinho na garrafa de cristal.
- Born - falei. Não era uísque (não é isso que a gente deveria dar as pessoas inconscientes, para acordá-las?), mas tinha álcool. - Padre D. - falei, erguendo sua cabeça e encostando a garrafa em seus lábios. - Beba um pouco disso.
Só que não deu certo. O vinho simplesmente escorreu pelo queixo e pingou no peito.
Enquanto isso Maria tinha começado a gemer. O pescoço quebrado já estava começando a se encaixar de volta.
Esse é o problema dos fantasmas. Eles voltam. E rápido demais.
Jack a olhou arregalado enquanto ela tentava se levantar.
- Uma pena a gente não poder exorcizar ela - disse ele. Encarei-o.
- Por que não?
Jack levantou as sobrancelhas.
- Não sei. Não temos mais sangue de galinha.
- Não precisamos de sangue de galinha. Temos isso. - Assenti para o círculo de velas. Milagrosamente, apesar de toda a luta, elas haviam permanecido de pé.
- Mas não temos um retrato dela. Não precisamos de um retrato dela?
- Não, porque não precisamos invocá-la - falei, colocando gentilmente a cabeça do padre D. de volta no chão. - Ela está aqui mesmo. Venha me ajudar a arrastá-la.
Jack pegou os pés. Eu segurei o tronco. Ela gemeu e lutou o tempo todo, mas quando a colocamos sobre os mantos do coro Maria deve ter sentido - como eu senti - que aquilo era confortável de montão, porque parou de lutar e só ficou ali deitada. O círculo aberto pelo padre Dom acima de sua cabeça continuava lá, com a fumaça - ou névoa, como eu agora sabia - descendo das bordas em redemoinhos turvos.
- Como vamos fazer o buraco sugar ela? - perguntou Jack.
- Não sei. - Olhei para Jesse e Diego. Ainda estavam envolvidos no que parecia um combate mortal. Se eu tivesse achado que Jesse não estava em vantagem, teria ido ajudar, mas aparentemente ele ia se dando bem.
Alem disso, o cara o havia matado. Achei que era hora de cobrar a dívida, e para isso Jesse não precisava de minha ajuda.
- O livro! - falei me animando. - O padre Dom leu um livro. Olhe em volta. Está vendo?
Jack achou o pequeno volume encadernado em couro preto embaixo do primeiro banco. Mas quando folheou as páginas ficou arrasado.
- Suze - disse ele. - Isso nem é em inglês.
- Tudo bem - falei. Em seguida peguei o livro e abri na ágina marcada pelo padre Dominic. - Aqui está.
E comecei a ler.
Não vou fingir que sei latim. Não sei. Não tinha a menor idéia do que estava lendo.
Mas acho que a pronuncia não conta quando a gente esta invocando as forças das trevas, já que, enquanto eu falava, aqueles redemoinhos nevoentos começaram a ficar cada vez mais compridos, até que finalmente se derramaram no chão e começaram a se enrolar em volta dos membros de Maria.
Ela nem pareceu se importar. Era como se estivesse gostando da sensação deles em volta dos pulsos e dos tornozelos.
Bem, a garota parecia meio chegada a um sadomasoquismo, se é que você me entende.
Nem lutou quando, enquanto eu continuava lendo, os redemoinhos se apertaram e começaram a erguê-la devagar.
- Ei - disse Jack em voz indignada. - Por que eles não fizeram isso com você? Por que você teve de subir até o buraco?
Mas fiquei com medo de responder. Quem sabia o que poderia acontecer se interrompesse a leitura?
Por isso continuei. E Maria foi subindo cada vez mais, até que ...
Com um grito estrangulado, Diego se separou de Jesse e veio correndo para nós.
- Sua vaca! - gritou ele para mim, olhando horrorizado o corpo de sua mulher pendurado no ar, acima de nós. Traga-a de volta!
Ofegando, com a camisa rasgada no meio e um pequeno fiapo de sangue escorrendo pelo lado do rosto, de um corte na testa, Jesse veio por trás de Diego e falou:
- Se quer tanto sua mulher, por que não vai até ela?
E empurrou Felix Diego para o centro do círculo de velas. Um segundo depois, redemoinhos de fumaça partiram para se enrolar nele também.
Diego não recebeu o exorcismo com tanta facilidade quanto a mulher. Não parecia estar se divertindo nem um pouco. Chutava, gritava e disse um bocado de coisas em espanhol que eu não entendi, mas que sem duvida Jesse entendeu.
Mesmo assim, a expressão de Jesse não mudou nenhuma vez. De vez em quando eu erguia o olhar do que estava lendo e verificava. Ele ficou observando os dois amantes - o que o havia matado e a que tinha ordenado sua morte - desaparecerem no mesmo buraco de onde havíamos descido.
Até que, finalmente, quando pronunciei o ultimo “amém", eles desapareceram.
Quando o último eco dos gritos vingativos de Diego morreu, o silêncio preencheu a igreja. Era um silêncio tão penetrante que chegava a ser um pouco esmagador. Eu mesma estava relutante em rompê-lo. Mas achei que era preciso.
- Jesse - falei em voz baixa.
Mas não o suficiente. Meu sussurro, no silêncio da igreja depois de toda aquela violência, pareceu um grito.
Jesse afastou o olhar do buraco por onde Maria e Diego tinham desaparecido e me olhou de modo interrogativo.
Assenti para o buraco.
- Se quer voltar - falei, ainda que cada palavra, eu tinha certeza, tivesse um gosto parecido com aqueles besouros que Dunga acidentalmente havia derramado na boca -, a hora é agora, antes que ele se feche outra vez.
Jesse olhou para o buraco, depois para mim, em seguida de novo para o buraco.
E de novo para mim.
- Não, obrigado, mi hermosa - disse em tom casual. - Acho que quero ficar e ver como tudo isso termina.

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