Capítulo 15 > (Hora mais sombria)

“O padre Dominic está esquisito", pensei. "Por que ele está tão esquisito?"
Percebi quando me sentei. Isso porque apenas parte de mim se sentou. O resto ficou onde estava, deitado nas mantas do coro, de olhos fechados.
Você sabe, em Sabrina, a feiticeira, quando ela se divide em duas pessoas, de modo que uma pode ir a uma festa com Harvey e a outra pode ir a convenção das bruxas com sua tia? Foi o que me aconteceu. Agora eu era duas pessoas.

Só que apenas uma delas estava consciente. A outra metade só ficou ali deitada, de olhos fechados. E sabe de uma coisa? Aquele hematoma na testa era realmente nojento. Não era de espantar que todo mundo que a visse recuasse horrorizado.
- Suzannah - disse o padre Dominic. - Você está bem? Afastei o olhar de meu eu inconsciente.
- Ótima. - Olhei para o meu eu espiritual, que parecia exatamente idêntico à pessoa embaixo de mim, a não ser que luzia um pouco. Um excelente acessório de moda, por sinal, se você conseguir usar. Você sabe, aquele brilho espectral no corpo inteiro pode fazer coisas maravilhosas à pele de uma garota.
Além de outra coisa. Sabe o hematoma na testa? É, não doía mais.
- Você não tem muito tempo - disse o padre Dominic. - Só meia hora.
Pisquei para ele.
- Como é que eu vou saber que a meia hora acabou? Não tenho relógio. - Não uso relógio porque, de algum modo, eles sempre acabam sendo esmagados por algum espírito recalcitrante. Além disso, quem quer saber que horas são? A resposta é quase sempre frustrante.
- Use o meu - disse o padre Dom. Em seguida pegou seu enorme relógio de homem, com pulseira de mão, e me deu.
Era o primeiro objeto que eu pegava em meu novo estado fantasmagórico. Parecia absurdamente pesado. Mesmo assim consegui prender no pulso, onde ficou balançando frouxo, como um bracelete. Ou uma algema de prisão.
- Certo - falei, olhando para aquele buraco acima de mim.
- Vamos lá.
Eu precisava subir, claro. Não me pergunte por que havia pensado nisso. Quero dizer, tinha de estender a mão e segurar as bordas daquele buraco no tempo e no espaço e me puxar para cima. E com um vestidinho justo, imagina só.
Tudo bem. Estava na metade do caminho quando escutei uma voz familiar guinchando meu nome.
O padre Dominic girou. Inclinei-me do buraco – através do qual só podia enxergar névoa, uma névoa cinzenta que umedecia meu rosto - e vi Jack, imagina só, correndo pela igreja em nossa direção, o rosto branco de medo e com alguma coisa se arrastando atrás.
O padre Dominic estendeu a mão e o agarrou logo antes de ele se jogar sobre minha forma inconsciente. Obviamente não viu minhas pernas balançando do enorme rasgo no teto da igreja.
- O que você está fazendo aqui? - perguntou o padre Dominic, com o rosto quase tão branco quanto o do garoto. - Faz idéia de que horas são? Seus pais sabem que você está aqui? Eles devem estar morrendo de preocupação...
- Eles... eles estão dormindo - ofegou Jack. - Por favor, Suze esqueceu... ela esqueceu a corda. - Jack estendeu o comprido objeto branco que se arrastava atrás dele enquanto corria entre os bancos. Era minha corda, da primeira tentativa de me exorcizar. - Como ela vai encontrar o caminho de volta sem a corda?
O padre Dominic pegou a corda com Jack, sem agradecer.
- Foi muito errado vir aqui, Jack - falou desaprovando. - O que você pensou? Eu lhe disse que ia ser muito perigoso.
- Mas... - Jack continuou olhando para minha metade inconsciente. - A corda. Ela esqueceu a corda.
- Aqui - gritei do meu buraco celestial. - Joga aqui. Jack me olhou, e a ansiedade abandonou seu rosto.
- Suze! - gritou deliciado. - Você é um fantasma!
- Shh! - o padre Dominic pareceu sentir dor. – Olhe, rapazinho, você deve falar baixo.
- Oi, Jack - respondi do meu buraco. - Obrigado por trazer a corda. Mas como chegou aqui?
- No ônibus do hotel - disse Jack com orgulho. - Me escondi dentro. Ele vinha pegar um bocado de gente bêbada. Quando parou perto da Missão, eu saí.
Eu não poderia ter sentido mais orgulho se ele dissesse que era meu filho.
- Bem pensado – falei.
- Está é a última coisa de que precisamos agora - gemeu o padre Dominic. - Aqui, Suzannah, pegue a corda e, pelo amor de Deus, vá depressa.
Inclinei-me para baixo e peguei a ponta da corda, depois amarrei firme na cintura.
- Certo. Se eu não voltar em meia hora, comecem a puxar.
- Vinte e cinco minutos - corrigiu o padre Dominic. - Nós perdemos tempo, graças a interrupção deste jovem. Agora vá, Suzannah.
- Certo. Tudo bem. Já volto.
E então puxei as pernas para dentro do buraco. Quando olhei para baixo, pude ver o padre Dominic e Jack ali parados, me espiando. E também podia me ver, dormindo como Branca de Neve, num círculo de velas com as chamas dançando. Mas duvido de que Branca de Neve usasse Prada.
Levantei-me e olhei ao redor. Nadinha.
Sério. Não havia nada ali. Só aquele céu preto, através do qual algumas estrelas queimavam frias. E a névoa. Densa, sempre em movimento, fria. "Eu deveria ter posto um suéter", pensei com um tremor. A névoa parecia tornar pesado o ar que eu sugava para os pulmões. E também parecia servir como abafador. Não dava para ouvir nenhum som, nem mesmo meus passos.
Ah, bem. Vinte e cinco minutos não era muito tempo.
Enchi o peito com o ar úmido e gritei: - Jesse!
Foi um gesto altamente eficaz. Não que Jesse tenha aparecido. Ah, não. Mas um cara mais velho.
Vestido de gladiador, nada mais nada menos.
Não estou brincando. Parecia o cara do cartão American Express da minha mãe (que freqüentemente eu pego emprestado - com permissão dela, claro). Você sabe, com a vassoura se projetando do elmo, a minissaia de couro, a espada enorme. Não dava para ver os pés por causa da névoa, mas presumi que, se pudesse, ele estaria usando sandálias amarradas (que ficam péssimas em gente com joelhos gordos).
- Você não é daqui - disse ele em voz profunda e objetiva. Veja bem. Eu sabia que o vestidinho preto era um erro.
Mas quem iria imaginar que o purgatório tinha código de vestimenta?
- Sei disso - falei, dando meu melhor sorriso.
Talvez o padre D. estivesse certo. Talvez eu tenha mesmo uma tendência para usar minha sexualidade com o intuito de conseguir o que quero. Certamente eu estava dando uma de mulherzinha para o sujeito tipo Russell Crowe que estava diante de mim.
- O negócio - falei segurando a corda - é que estou procurando um amigo. Talvez você o conheça. Jesse de Silva. Ele veio para cá ontem à noite, acho. Tem uns vinte anos, um metro e oitenta e poucos, cabelo preto, olhos escuros...
Músculos abdominais de matar?
Russel Crowe não devia estar escutando direito, porque só falou de novo:
- Você não é daqui.
Certo, o vestidinho preto tinha sido definitivamente um erro. Porque, como é que eu ia chutar esse cara fora do caminho sem rasgar a saia?
- Olha, moço - falei, indo até ele e tentando não notar que seus peitorais eram tão pronunciados a ponto de tornar seus peitos maiores do que os meus. Muito maiores. - Eu já disse, estou procurando alguém. Agora: ou você me diz se o viu ou saia da minha frente, certo? Eu sou mediadora, entendeu? Tenho tanto direito de estar aqui quanto você.
Claro que eu não sabia se isso era verdade, mas ora, eu sou mediadora a vida inteira, e não ganhei xongas por isso. Para mim, alguém me devia, e muito.
O gladiador pareceu concordar. E falou num tom totalmente diferente:
- Mediadora? - E me olhou como se eu fosse um macaco que de repente tivesse começado a recitar o juramento a bandeira.
Mesmo assim devo ter feito alguma coisa certa, porque ele disse lentamente:
- Sei de quem você fala.
Então pareceu tomar uma decisão. Ficando de lado, disse em voz autoritária:
- Vá agora. Não abra nenhuma porta. Ele virá. Encarei-o. Uau.
- Você está... está falando sério?
Pela primeira vez o sujeito demonstrou alguma personalidade.
- Pareço estar brincando?
- Ah... não.
- Porque eu sou o porteiro. Não brinco. Vá agora. - E apontou. - Você não tem muito tempo.
À distância, na direção em que ele estava apontando, vi alguma coisa. Não sei o que era, mas não era névoa. Senti vontade de abraçar meu amigo gladiador, mas me contive. Ele não parecia do tipo que aprova demonstrações de afeto.
- Obrigada. Muito obrigada.
- Depressa - respondeu o porteiro. - E lembre-se, independentemente de qualquer coisa, não vá para a luz.
Eu tinha dado uma puxada na corda, para o padre D. afrouxá-la. Agora simplesmente fiquei ali parada, segurando-a, olhando o gladiador.
- Não vá para a luz? - ecoei. – Você não está falando sério. Juro que ele ficou indignado.
- Já lhe disse, eu não brinco. Por que acha que eu diria algo que não fosse a sério?
Queria dizer que o negócio de "não vá para a luz" estava meio batido. Quero dizer, Poltergeist um, dois e três tinham deixado essa fala bem explícita.
Mas quem sabia? Talvez o cara que escreveu aqueles filmes fosse mediador. Talvez ele e o porteiro fossem colegas, ou sei lá o que.
- Certo - falei passando por ele. - Saquei. Não ir para a luz.
- Nem abra nenhuma porta - lembrou o porteiro.
- Nenhuma porta - respondi apontando para ele e piscando. - Falou e disse.
Então me virei e a névoa sumiu.
Bem, não sumiu totalmente. Quero dizer, ela ainda estava ali, lambendo meus calcanhares. Mas a maior parte havia desaparecido, de modo que eu podia ver que estava num corredor repleto de portas. Não havia teto, só aquelas estrelas piscando frias e o céu totalmente preto. Mesmo assim, o longo corredor de portas fechadas parecia se estender para sempre, diante de mim.
E eu não deveria abrir nenhuma daquelas portas. Nem ir para a luz.
Bem, a segunda parte era fácil. Não vi nenhuma luz para onde ir. Mas por que eu não deveria abrir uma daquelas portas? Quero dizer, verdade. O que acontecia atrás delas? O que eu encontraria se abrisse uma, só uma fresta, e espiasse para dentro? Outro universo? O planeta Vulcano? Talvez um mundo onde Suze Simon era uma garota normal, e não uma mediadora? Talvez um mundo onde Suze Simon era rainha da festa de boas-vindas e a pessoa mais popular de toda a escola, e Jesse não era um fantasma e podia levá-la as festas, tinha seu próprio carro e não morava no quarto dela?
Então parei, imaginando o que haveria atrás de todas aquelas portas. Isso porque, vindo pelo corredor, na minha direção - como se tivesse acabado de se materializar ali, a partir do nada -, estava Jesse.
Pareceu bastante surpreso ao me ver. Não sei se era o fato de eu estar ali parada no que, imagino, era a sala de espera do céu, ou se era o belo pedaço de corda amarrado na minha cintura que, tenho de admitir, não combinava nada com o restante da roupa.
O que quer que fosse, ele ficou bem chocado.
- Ah - falei, levantando a mão para garantir que a franja cobrisse o hematoma feio. - Oi.
Jesse se imobilizou e só ficou me encarando. Era como se não pudesse acreditar no que via. Não estava diferente da última vez em que o vi. Quero dizer, na última vez em que vi seu fantasma. A última vez em que eu o vi, claro, foi um vislumbre de seu cadáver podre, e, claro, isso me fez por para fora o jantar.
Mas este Jesse era muito mais fácil de olhar.
Mesmo assim, se eu esperava algum tipo de encontro alegre - um abraço ou, que Deus não permita, um beijo-, ia me desapontar. Ele só ficou ali parado, me olhando como se houvesse brotado uma cabeça a mais no meu pescoço desde que nos vimos pela última vez.
- Suzannah - ofegou ele. - O que está fazendo aqui? Você está... você não está...
Captei o sentido imediatamente e falei com um riso nervoso:
- Morta? Eu? Não, não, não. Eu só, é... vim aqui porque queria... é... você sabe, ver se você estava bem...
Certo, será que dava para ser mais patética? Puxa, sério.
Eu tinha visualizado esse momento mil vezes desde que havia decidido que ia procurá-lo, e em todas as minhas fantasias nenhuma explicação era necessária. Jesse simplesmente me abraçava e começava a me beijar. Na boca.
Mas isso... Isso era incômodo de montão. Gostaria de ter preparado um discurso.
- É ... - falei. O que eu realmente queria era parar de dizer é. - Veja bem, o negócio é que eu precisava me certificar de que você estava aqui porque queria. Porque, se não quiser, bem, o padre Dom e eu achamos que talvez seria possível você voltar. Para... é... terminar o que, você sabe, estava segurando você lá embaixo. Quero dizer, no meu mundo. No nosso mundo - me corrigi depressa, lembrando-me do alerta do padre Dominic. - Quero dizer, no nosso mundo.
Jesse continuou só me encarando.
- Suzannah. - A voz dele estava estranha. Deduzi o motivo um segundo depois, quando ele perguntou: - Não foi você que me mandou para cá?
Encarei-o boquiaberta.
- O quê? O que você está falando?
Agora eu sabia o que havia de tão estranho em sua voz.
Estava cheia de mágoa.
- Você não me exorcizou? - perguntou ele.
- Eu? - Minha voz disparou subindo umas dez oitavas.
- Eu? Jesse, claro que não. Eu jamais faria isso. Quero dizer, você sabe que eu nunca faria algo assim. Aquele garoto, o Jack, é que fez. Sua namorada Maria mandou que ele fizesse. Ela estava tentando se livrar de você. Disse ao Jack que você estava me incomodando, e ele não sabia de nada, por isso exorcizou você, e então Felix Diego me jogou do telhado da varanda, e, Jesse, eles acharam o seu corpo, quero dizer, os seus ossos, e eu vi e vomitei na lateral da casa, e o Spike está sentindo muita falta sua e eu fiquei pensando, sabe, que se você quisesse voltar, poderia, porque é por isso que eu tenho esta corda, para a gente achar o caminho de volta.
Eu estava falando sem parar. Tenho tendência de fazer isso até mesmo quando não estou no purgatório. Mas não pude evitar. A coisa toda meio se derramava de mim. Bem, não toda. Quero dizer, de jeito nenhum eu iria dizer por que queria que ele voltasse. Não ia falar a palavra que começa com "a", nem nada. E também não era por causa do aviso do padre D.
- Isto é - continuei -, se você quiser voltar. Dá para ver por que você gostaria de ficar aqui. Quero dizer, depois de 150 anos e coisa e tal, provavelmente é um alívio. Imagino que vão transportar você logo, e você terá uma vida nova, ou vai para o céu, ou sei lá o que. Mas fiquei pensando, sabe, que não foi justo Maria ter feito o que fez com você.
Duas vezes. E que se você quiser voltar e deduzir o que estava fazendo lá embaixo na Terra durante tanto tempo, bem, eu daria uma mão, se pudesse.
Olhei o relógio do padre D. Era mais fácil do que olhar o rosto de Jesse e ver que ele ainda tinha aquela expressão inescrutável, como se não pudesse acreditar no que via. E ouvia.
- A única coisa - falei - é que só posso ficar fora do corpo por meia hora antes de me separar definitivamente, e nós só temos quinze minutos. De modo que você precisa decidir depressa. O que vai ser?
"Será que isso foi suficientemente não-feminino para o padre Dom?", pensei. Não estava nem um pouco forçando a barra. Ninguém poderia me acusar nem mesmo de sorrir. Eu era a própria imagem da mediadora profissional.
Só não sabia por quanto tempo conseguiria manter o tom profissional. Especialmente quando Jesse estendeu uma das mãos e a pousou no meu braço.
- Suzannah - disse ele, e sua voz não estava nem um pouco cheia de mágoa, mas sim de uma coisa que, se eu não me enganei, parecia muito com raiva. - Você está dizendo que morreu por mim?
- É... - falei, imaginando se contaria com o uso dos meus ardis femininos caso ele é que me tocasse. - Bem, não tecnicamente. Ainda. Mas se demorarmos aqui por muito mais tempo...
A mão no meu braço se apertou. - Vamos - disse ele.
Não sei se Jesse realmente entendeu a situação.
- Jesse. Eu posso achar o caminho de volta, certo? Eu sou assim com o porteiro. - E levantei os dedos cruzados. - Se você quer ir comigo porque quer voltar, tudo bem, mas se só quer me levar de volta ao buraco, acredite: posso chegar lá sozinha.
Jesse apenas falou:
- Suzannah, cale a boca.
E então, ainda com uma das mãos no meu braço, segurou a corda e começou a segui-la de volta na direção de onde eu tinha vindo.
Ah, pensei enquanto ele me empurrava. "Certo. Fantástico. Agora está com raiva de mim. Eu arrisco a vida - porque, vamos encarar os fatos, era isso que estava fazendo - e ele fica com raiva de mim por causa disso." Eu deveria ter pensado. Quer dizer, arriscar a vida por um cara é praticamente como usar a palavra que começa com "a". Pior até. Como é que eu ia sair dessa?
- Jesse, não fique lisonjeado porque fiz isso por você. Quero dizer, ter você como colega de quarto tem sido um tremendo pé no saco. Acha que eu gosto de ter de chegar da escola ou do trabalho e ter de explicar coisas como a baía dos Porcos? Acredite, a vida com você não é um piquenique.
Ele não disse nada. Só continuou me puxando.
- Ou o negócio do Tad? - falei, puxando um assunto que eu sabia que era incômodo. - Quero dizer, você acha que eu gosto de arrastá-lo para os meus encontros? Ter você fora da minha vida vai tornar as coisas muito mais simples, portanto, não pense, você sabe, que fiz isso por você. Só fiz porque aquele seu gato estúpido anda chorando feito maluco. E também porque qualquer coisa que eu possa fazer para enlouquecer sua namorada idiota, vou fazer.
- Nombre de Dios, Suzannah - murmurou Jesse. - Maria não é minha namorada.
- Bem, certamente já foi. E que negócio é esse, afinal? Aquela garota é uma tremenda vagabunda, Jesse. Não acredito que você tenha concordado em se casar com ela. Quero dizer, o que você estava pensando? Não dava para ver como ela era por baixo de toda aquela renda?
- Na época as coisas eram diferentes, Suzannah - disse Jesse com os dentes trincados.
- Ah, é? Tão diferentes que você não podia dizer que a garota com quem você ia se casar era uma grandessíssima...
- Eu mal a conhecia – respondeu Jesse fazendo-me parar e me encarando furioso. - Certo?
- Bela tentativa. Vocês eram primos. Outra coisa que, se você realmente quer saber, me deixa enojada...
- Sim, éramos primos - interrompeu Jesse, sacudindo meu braço. - Mas, como falei antes, na época as coisas eram diferentes, Suzannah. Se tivéssemos mais tempo eu lhe diria ...
- Ah, não, nem vem com essa. Nós ainda temos... - olhei o relógio do padre D. - ...doze minutos. Diga agora.
- Suzannah...
- Fale agora, Jesse, ou juro que não vou me mexer.
Ele gemeu de frustração e disse o que eu acho que devia ser uma palavra muito feia, só que não tive certeza, porque foi em espanhol. Na escola não ensinam palavrões em espanhol.
- Ótimo - respondeu ele, largando meu braço. - Quer saber? Quer saber como era na época? Era diferente, certo? A Califórnia era diferente. Completamente diferente. Não havia esta mistura dos sexos. Garotos e garotas não brincavam juntos, não se sentavam lado a lado na sala de aula. Eu só ficava na mesma sala com Maria durante as refeições, ou algumas vezes em bailes. E ficávamos rodeados de pessoas. Duvido que eu tenha ao menos ouvido Maria falar mais do que algumas palavras...
- Bem, evidentemente eram palavras bem impressionantes, porque você concordou em se casar com ela.
Jesse passou a mão pelo cabelo e exclamou outra vez em espanhol.
- Claro que concordei em me casar com ela. Meu pai queria, o pai dela queria. Como eu poderia dizer não? Não queria dizer não. Não sabia o que ela era, pelo menos na época. Só mais tarde, quando recebi as cartas, percebi...
- Que ela não sabe escrever?
Ele me ignorou.
- ... que nós dois não tínhamos nada em comum, e jamais teríamos. Mas mesmo assim não teria desgraçado minha família rompendo o compromisso com ela. Não por isso.
- Mas quando ouviu dizer que ela não era pura como a neve? - Cruzei os braços diante do peito e encarei furiosa aquele produto machista do século XIX. - Foi então que você decidiu que ela não servia para ser esposa?
- Quando ouvi boatos sobre Maria e Felix Diego fiquei infeliz - disse ele, impaciente. - Eu conhecia Diego. Ele não era um bom homem. Era cruel e... Bem, sempre procurava meios de ganhar dinheiro. E Maria tinha muito dinheiro. Dá para adivinhar por que ele queria se casar com ela. Por isso, quando descobri, decidi que seria melhor terminar, sim ...
- Mas Diego foi conhecer você primeiro - falei com a voz embargada.
- Suzannah. - Ele me encarou. - Eu tive um século e meio para me acostumar com a morte. Não me importa mais quem me matou, ou por quê. O importante agora é garantir que você não termine do mesmo modo. Agora vai se mexer ou terei de carregá-la?
- Certo - respondi permitindo que ele me puxasse de novo. - Mas só quero deixar uma coisa clara. Eu não fiz tudo isso... você sabe, ser exorcizada, vir aqui e coisa e tal, porque estou apaixonada por você nem nada disso.
- Eu não iria me sentir lisonjeado como você diz - respondeu ele, sério.
- Isso mesmo. - Imaginei se ainda estava sendo suficientemente não-feminina. Na verdade, estava começando a me achar um pouco não- feminina demais. Até mesmo hostil. - Porque não estou. Vim pelo gato. O gato sente muita falta de você.
- Você não deveria ter vindo por nada – respondeu Jesse baixinho. Mesmo assim ouvi. Não era como se houvesse mais um monte de ruídos aqui em cima. Vi que tínhamos saído do corredor, que havia desaparecido no minuto em que demos as costas para ele, e estávamos de volta na névoa, seguindo a corda que, felizmente, Jack havia se lembrado de trazer. - Não acredito que o padre Dominic permitiu isso.
- Ei, deixe o padre D. fora disso. É tudo nossa culpa, você sabe. Nada disso teria acontecido se você simplesmente fosse honesto e se aberto comigo desde o início, sobre como morreu. Então eu poderia pelo menos ter dito ao Andy para cavar em outro lugar. E estaria preparada para enfrentar Maria e seu marido imprestável. Não sei por que ficaram tão abalados com a idéia de as pessoas descobrirem que eles são dois assassinos, mas estão muito decididos a manter como um mistério o que aconteceu com você ...
- Isso é porque, para eles, não se passou tempo algum desde a morte. Eles estavam descansando até que se tornou evidente que meu corpo seria encontrado, o que inevitavelmente abriria especulações sobre a causa de meu desaparecimento. Eles não entendem que se passou mais de um século. Estão tentando preservar seu lugar na comunidade, como os cidadãos importantes que já foram.
- Nem diga! - falei, passando a mão no machucado. - Os dois acham que ainda é 1850 e têm medo de os vizinhos descobrirem que eles apagaram você. Bem, dentro de um ou dois dias a coisa vai estourar na cara deles. A verdade está sendo revelada, por cortesia do Pinhão de Carmel...
Jesse girou para me encarar. Estava mais furioso do que nunca.
- Suzannah. O que você está falando?
- Contei a história toda a Cee Cee - expliquei, incapaz de impedir que o tom de orgulho se esgueirasse na voz. - Ela está fazendo estágio no jornal. Disse que vão publicar a história, a história real do que aconteceu com você, no domingo.
Ao ver sua expressão ficando, no mínimo, mais sombria, acrescentei:
- Jesse, eu tinha de fazer isso. Maria matou o cara da sociedade histórica, de quem ela roubou sua pintura para fazer o exorcismo. Tenho certeza de que matou o avô dele também. Maria e o marido mataram todo mundo que já tentou contar a verdade sobre o que aconteceu com você naquela noite. Mas não vão poder mais fazer isso. A história vai chegar a trinta e cinco mil pessoas. Talvez mais, porque vão colocar no site do jornal. Maria não poderá matar todo mundo que ler.
Jesse balançou a cabeça.
- Não, Suzannah. Ela vai se contentar em matar você.
- Jesse, ela não pode me matar. Já tentou. Tenho uma novidade: eu sou realmente dura de matar.
- Talvez não.
Jesse estava segurando uma coisa, e eu olhei. Para minha surpresa, vi que era a corda que estivéramos seguindo.
Só que, em vez de ver a ponta desaparecendo no buraco por onde eu tinha subido, ela estava esgarçada na mão de Jesse. Como se tivesse sido cortada.
Com uma faca.

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