Capítulo 3 > (Hora mais sombria)

Nem sei realmente como isso aconteceu. Eu estava sendo bem cuidadosa, sabe? Quero dizer, cuidadosa para não me apaixonar por Jesse.
E vinha fazendo um trabalho muito bom. Puxa, eu estava saindo, conhecendo gente nova e fazendo coisas novas, como ensina a revista Cosmo. Certamente não estava sentada num canto pensando nele nem nada.
E, é claro, a maioria dos caras que eu conheci desde que me mudei para a Califórnia acabou sendo perseguida por assassinos psicopatas ou sendo eles mesmos assassinos psicopatas. Mas essa não é de fato uma desculpa muito boa para me apaixonar por um fantasma. Não mesmo.
Mas foi o que aconteceu.
E também posso dizer o momento exato em que soube que tudo aconteceu. Quero dizer, minha batalha para não me apaixonar por ele. Foi enquanto eu estava no hospital, me recuperando daquela surra braba que mencionei antes – a que recebi por cortesia de quatro alunos da RLS que tinham sido assassinados uma semana antes da escola fechar para o verão.
De qualquer modo, Jesse apareceu no meu quarto de hospital (Por que não? Ele é um fantasma. Pode se materializar onde quiser.) para desejar melhoras, tudo muito sincero e coisa e tal, e enquanto estava ali, por acaso, num determinado ponto, ele tocou meu rosto com a mão.
Foi só isso. Só tocou meu rosto, que, acredito, era a única parte minha que não estava preta e azul na ocasião.
Grande coisa, certo? Então ele tocou meu rosto. Isso não é motivo para desmaiar.
Mas desmaiei.
Ah, não literalmente. Não foi como se alguém precisasse balançar sais aromáticos embaixo do meu nariz nem nada, pelo amor de Deus. Mas depois disso já era. Me acabei. Fiquei caidinha.
Tenho orgulho de dizer que fiz um bom trabalho em esconder isso. Tenho certeza de que ele não faz idéia. Ainda o trato como se ele fosse... bem, uma formiga que tivesse caído na minha piscina. Você sabe, irritante, mas que não vale a pena matar.
E não contei a ninguém. Como é que posso? Ninguém – a não ser o padre Dominic, da Academia, e meu irmão mais novo, Mestre – sequer tem idéia de que Jesse existe. Quero dizer, qual é! O fantasma de um cara que morreu há 150 anos mora no meu quarto? Se eu contasse a alguém, iriam me levar para o hospício mais depressa do que você consegue dizer Ecos do além.
Mas a coisa existe. Só que não contei a ninguém não significa que não exista, o tempo todo, espreitando na minha mente, como uma daquelas músicas sertanejas que você não consegue tirar do pensamento.
E preciso dizer, isso faz com que a idéia de sair com outros caras pareça... bem, uma enorme perda de tempo.
Por isso não pulei de felicidade diante da chance de sair com Paul Slater (se bem que, se você me perguntar, jantar com ele e o irmãozinho não qualifica exatamente como sair). Em vez disso fui para casa e jantei com meus pais e irmãos. Bem, pelo menos meio-irmãos.
O jantar na residência Ackerman sempre foi um negócio importante... até que Andy começou a trabalhar na instalação da minipiscina de água quente. Desde então ele afrouxou consideravelmente no departamento culinário, vou lhe contar. E como minha mãe não é exatamente o que se pode chamar de cozinheira, ultimamente temos jantado um bocado de comida para viagem. Achei que tínhamos chegado ao fundo do poço na véspera, quando pedimos pizza do Península, o lugar onde Soneca trabalha à noite fazendo entregas.
Mas não sabia como a coisa poderia ficar ruim até que entrei naquela noite e vi um balde vermelho e branco pousado no meio da mesa.
- Nem comece – disse minha mãe quando me notou.
Só balancei a cabeça.
- Acho que, se a gente tirar a pele, frango frito não é tão ruim.
- Me dá – interveio Dunga, jogando purê de batata meio coagulado em seu prato. – Eu como sua pele.
Mal pude controlar o reflexo de vômito depois dessa oferta, mas consegui, e estava lendo a literatura nutricional que veio com nossa refeição – “O Coronel jamais se esqueceu dos aromas deliciosos que costumavam sair da cozinha de sua mãe na fazenda, quando era garoto” – quando me lembrei da lata cujo conteúdo também tinha sido anunciado como tendo um aroma delicioso.
- Ei. O que havia na lata que vocês acharam? – perguntei. Dunga fez uma careta.
- Nada. Um punhado de cartas velhas.
Andy olhou triste para o filho. A verdade é que acho que até meu padrasto começou a perceber o que eu sei desde que o conheci: que seu filho do meio é de uma estupidez cavalar.
- Não é apenas um punhado de cartas, Brad – disse Andy. – Elas são bem antigas, datadas mais ou menos da época em que esta casa foi construída, 1850. Estão em péssimas condições, se despedaçando. Pensei em levá-las à sociedade histórica. Talvez eles queiram, apesar do estado. Ou... – Andy olhou para mim – pensei que o padre Dominic poderia se interessar. Você sabe como ele é fanático por história.
O padre Dominic é fanático por história, certo, mas só porque, como eu, sendo mediador ele tem a tendência a encontrar pessoas que viveram acontecimentos históricos como Álamo e a expedição Lewis e Clark. Sabe, pessoas que levam a expressão “estive lá, fiz coisas” a um nível totalmente novo.
- Vou ligar para ele – falei, enquanto deixava um pedaço de frango cair por acidente no colo, onde foi instantaneamente sugado pelo enorme cão dos Ackerman, Max, quem mantém posição atenta ao meu lado durante todas as refeições.
Só quando Dunga riu eu percebi que tinha dito a coisa errada. Jamais tendo sido uma adolescente normal, algumas vezes acho difícil imitar uma. E adolescentes normais, pelo que eu sei, nunca ligam regularmente para o diretor da escola.
Dei um olhar furioso para Dunga, do outro lado da mesa.
- Eu ia ligar para ele de qualquer modo – falei. – Para descobrir o que devo fazer com dinheiro que sobrou do passeio da nossa turma ao Six Flags.
- Vou aceitar isso – brincou Soneca. Por que será que minha mãe teve de casar com alguém de uma família de comediantes?
- Posso ver? – perguntei, ignorando meus dois meios-irmãos.
- Ver o quê, querida? – perguntou Andy.
Por um momento esqueci do que estávamos falando. Querida? Andy me chamou de querida. O que está acontecendo aqui? Será que estávamos- estremeço ao pensar – criando laços? Com licença, eu já tenho um pai, mesmo que esteja morto. Ele ainda me visita com freqüência demais.
- Acho que ela quis dizer as cartas – disse minha mãe, aparentemente nem notando como seu marido tinha acabado de me chamar.
- Ah, claro – respondeu Andy. – Estão no nosso quarto.
“Nosso quarto” é o quarto onde minha mãe e Andy dormem. Tento nunca entrar lá, porque, bem, francamente, a coisa toda me causa repulsa. Claro, acho bom que minha mãe esteja finalmente feliz, depois de 10 anos chorando a morte do meu pai. Mas será que isso significa que eu queira vê-la na cama com o novo marido, assistindo The West Wing? Não, obrigada.
Mesmo assim, depois do jantar me esforcei e entrei lá. Mamãe estava diante da penteadeira, tirando a maquiagem. Ela precisa dormir bem cedo, para estar a postos no noticiário da manhã.
- Ah, oi, meu doce – disse mamãe de um jeito atordoado, tipo “estou ocupada”. – Acho que elas estão ali.
Olhei para onde ela apontou, em cima da penteadeira de Andy, e vi, junto com outras coisas de homem, como dinheiro trocado, fósforos e recibos, a caixa de metal encontrada por Dunga.
De qualquer modo, Andy tinha tentado limpar a caixa e fez um bom trabalho. Quase dava para ler tudo que havia escrito nela.
O que era meio infeliz, porque o que estava escrito era muito politicamente incorreto. Experimente os novos charutos Peles-vermelhas! , insistia o texto. Havia até mesmo a imagem de um nativo orgulhoso segurando um punhado de charutos onde deveriam estar seu arco e as flechas. O aroma delicioso vai tentar até mesmo o fumante mais exigente. Como acontece com todos os nossos produtos, a qualidade é garantida.
Era isso. Nenhum alerta do Ministério da Saúde falando que o fumo mata. Nada sobre a perda de peso dos fetos. Mesmo assim era estranho como os anúncios antes da existência da TV – antes mesmo do rádio – eram basicamente a mesma coisa de hoje. Só que, você sabe, agora sabemos que dar o nome de uma raça de pessoas a um produto provavelmente iria ofendê-las.
Abri a caixa e vi as cartas. Andy estava certo sobre o mau estado. Tão amarelas que mal dava para separar as folhas sem que os pedaços se partissem. Dava para ver que tinham sido amarradas com uma fita de seda que podia ter sido de outra cor, mas agora era de um marrom feio.
Havia um maço de cartas, talvez cinco ou seis. Não posso dizer o que pensei que veria, quando peguei a primeira. Mas acho que parte de mim sabia o tempo todo o que iria encontrar.
Mesmo assim, enquanto desdobrava cuidadosamente a primeira e lia as palavras Caro Hector, ainda me sentia como se alguém tivesse vindo por trás e me chutado.
Precisei me sentar. Afundei numa das poltronas que mamãe e Andy deixam diante da lareira do quarto, os olhos ainda grudados à página amarelada.
Jesse. Aquelas cartas eram para Jesse.
- Suze? – Mamãe me olhou com curiosidade. Estava passando creme no rosto. – Você está bem?
- Ótima – falei numa voz estrangulada. – Será que eu posso... será sentar aqui e ler as cartas um minuto?
Mamãe começou a passar creme nas mãos.
- Claro. Tem certeza de que está bem? Parece meio... pálida.
- Estou ótima – menti. – Ótima.
Caro Hector – dizia a primeira carta. A letra era linda – cheia de volutas e antiga, o tipo de letra que a irmã Ernestine, da escola, usava. Dava para ler com bastante facilidade, apesar de a carta ser datada de 8 de maio de 1850.
1850! O ano em que nossa casa foi construída, o primeiro ano em que funcionou como pensão para viajantes na área da península de Monterey. O ano – eu sabia porque Mestre e eu pesquisamos – em que Jesse, ou Hector (que é o nome de verdade dele; dá para imaginar? Quero dizer, Hector), desapareceu misteriosamente.
Ainda que por acaso eu saiba que não houve nada de misterioso nisso. Ele foi assassinado nesta casa... de fato, no meu quarto no segundo andar. Motivo pelo qual, no século e meio que se passou, ele ficou aqui, esperando...
Esperando o quê?
Esperando você, disse uma pequena voz na minha cabeça. Uma mediadora, para achar estas cartas e vingar a morte dele, para que ele possa ir aonde quer que deva ir em seguida.
A idéia me aterrorizou. Verdade. Fez minhas mãos suarem, mesmo estando frio no quarto de mamãe e Andy, com o ar-condicionado no máximo. Minha nuca começou a ficar arrepiada e áspera.
Obriguei-me a olhar de novo para a carta. Se Jesse tinha de ir em frente, bem, eu simplesmente iria ajudá-lo. Esse é o meu serviço, afinal de contas.
Só que não conseguia deixar de pensar no padre Dom, um colega mediador. Há alguns meses ele havia admitido que um dia teve o infortúnio de se apaixonar por um fantasma, quando tinha minha idade. As coisas não deram certo – como é que poderiam? – e ele virou padre.
Sacou? Padre. Tá legal? Para ver como a coisa foi ruim. Para ver o tamanho da perda a superar. Ele virou padre.
Francamente, não me imagino virando freira. Para começar, nem sou católica. E depois, não fico muito bem com o cabelo puxado para trás. Verdade. Por isso sempre evitei rabo-de-cavalo e faixas de cabelo.
Pára com isso, falei comigo mesma. Pára com isso começa a ler.
Li.
A carta era de alguém chamada Maria. Não sei muito sobre a vida de Jesse antes de morrer – o sujeito não adora exatamente discutir o assunto -, mas sei que Maria de Silva era o nome da garota com quem Jesse ia se casar quando desapareceu. Prima dele. Eu tinha visto o retrato dela num livro. Era uma tremenda gata, você sabe, para uma garota de saia-balão que viveu antes da cirurgia plástica ser inventada. Ou o rímel à prova da água.
E, pelo texto, dava para ver que ela também sabia. Quero dizer, que era uma gata. A carta falava das festas que havia freqüentado, e quem disse o quê sobre seu novo toucado. Seu toucado, imagina só. Juro por Deus, era como ler uma carta de Kelly Prescott, só que tinha um monte de acolás e homessas, e não mencionava Ricky Martin. Além disso, havia um monte de coisas escritas com erros. Maria podia ser um pitéu, mas ficou bem claro, depois de ler suas cartas, que não havia tirado notas muito boas em gramática no velho educandário.
O que me espantou, enquanto lia, foi que a garota que escreveu aquelas cartas não parecia a mesma que, eu tinha bastante certeza, havia ordenado a morte do noivo. Porque por acaso eu tinha ficado sabendo que Maria não queria se casar com Jesse. O pai dela tinha arrumado o casamento. Maria pretendia se casar com outro, um cara chamado Diego, traficante de escravos. Um charme de pessoa. De fato eu suspeitava de que Diego tinha matado Jesse.
Não, claro, que Jesse mencionasse alguma coisa sobre isso – ou, por sinal, que mencionasse qualquer coisa sobre seu passado. Ele mantém, e sempre manteve, a boca totalmente fechada sobre o assunto de sua morte. O que acho que posso entender: ser assassinado deve ser meio traumatizante.
Mas devo dizer que é meio difícil entender por que ele ainda está aqui depois de tanto tempo se não quer colaborar com a conversa. Tive de descobrir tudo isso num livro sobre a história do condado de Salinas, que Mestre descobriu na biblioteca local.
Por isso acho que se pode dizer que li as cartas de Maria com certo sentimento de premonição. Quero dizer, eu estava praticamente convencida de que descobriria nelas alguma prova de que Jesse tinha sido assassinado... e quem tinha feito isso.
Mas a última carta era tão superficial quanto as outras quatro. Não havia nada, absolutamente nada indicando qualquer ato ruim da parte de Maria... a não ser, talvez, uma total incapacidade de escrever certo a palavra compromisso. E, verdade, que tipo de crime é esse?
Dobrei as cartas cuidadosamente outra vez e as enfiei de novo na lata, percebendo que minha nuca, além das mãos, não estavam mais suando. Será que me sentia aliviada por não haver nada incriminador ali, nada que ajudasse a resolver o mistério de Jesse?
Acho que sim. É egoísmo da minha parte, sei, mas é a verdade. Só sei agora o que Maria de Silva tinha usado numa festa na casa do embaixador espanhol. Grande coisa. Por que alguém guardaria cartas tão inócuas assim numa lata de charutos e as enterraria? Não fazia sentido.
- Interessantes, não são? – perguntou mamãe quando me levantei.
Pulei quase um quilômetro. Tinha esquecido que ela estava ali. Agora estava na cama, lendo um livro sobre como administrar o tempo de modo mais eficiente.
- É – falei, guardando as cartas de novo na penteadeira de Andy. – Realmente interessantes. Fico felicíssima em saber o que o filho do embaixador disse ao ver Maria de Silva em seu novo vestido de baile, de gaze.
Mamãe me olhou com curiosidade através dos óculos de leitura.
- Ah, ela mencionou o sobrenome em algum lugar? Porque Andy e eu estávamos imaginando qual seria. Não vimos. De Silva, foi o que você disse?
Pisquei.
- Ah. Não. Bem, ela não disse. Mas Mestre, e eu... quero dizer, David me contou sobre esta família, de Silva, que morou em Salinas mais ou menos nessa época, e eles tinham uma filha chamada Maria, e eu simplesmente... – Minha voz ficou no ar quando Andy entrava no quarto.
- Oi, Suze – disse ele, parecendo meio surpreso em me ver em seu quarto, já que eu nunca punha os pés lá dentro. – Viu as cartas? Bacanas, não?
Bacanas. Ah, meu Deus. Bacanas.
- É. Preciso ir. Boa noite.
Não consegui sair suficientemente rápido. Não sei como os filhos cujos pais se casam múltiplas vezes lidam com isso. Quero dizer, minha mãe só se casou de novo uma vez, e com um homem perfeitamente legal. Mas, mesmo assim, é esquisito demais.
Mas se eu tinha achado que poderia ir para o meu quarto e ficar sozinha e pensar nas coisas, errei. Jesse estava sentado no parapeito da janela.
Sentado ali, como sempre: totalmente gostoso, com a camisa aberta no colarinho e as calças pretas, de toureiro, que ele costuma usar – bem, não é que se possa trocar de roupa na outra vida -, com os cabelos curtos e escuros encaracolados na nuca e os olhos negros, líquidos e brilhantes por baixo das sobrancelhas igualmente negras, uma das quais com uma cicatriz minúscula.
Uma cicatriz que, mais vezes do que gosto de admitir, eu sonhava em acompanhar com as pontas dos dedos.
Ele ergueu os olhos quando entrei – estava com Spike, meu gato, no colo – e disse:
- Este livro é muito difícil de entender. – Estava lendo um exemplar de First Blood, de David Morrell, no qual foi baseado o filme Rambo.
Pisquei tentando acordar do estupor atordoado em que a visão dele sempre me deixava por cerca de um minuto.
- Se Sylvester Stallone entendeu – falei -, achei que você entenderia.
Jesse ignorou isso. Falou:
- Marx previu que as contradições e as fraquezas dentro da estrutura capitalista provocariam crises econômicas cada vez mais sérias e o aprofundamento da pobreza da classe operária que acabaria se revoltando e tomaria o controle dos meios de produção... exatamente o que aconteceu no Vietnã. O que induziu o governo americano a achar que tinha o direito de se envolver na luta do povo daquele país em desenvolvimento em busca da solidariedade econômica?
Meus ombros se afrouxaram. Verdade, será demais pedir que eu possa voltar para casa depois de um longo dia de trabalho e relaxar? Ah, não. Tenho de chegar em casa e ler um punhado de cartas escritas ao amor de minha vida pela noiva dele que, se estou correta, mandou matá-lo há 150 anos.
Então, como se não fosse ruim o bastante, ele quer que eu explique a Guerra do Vietnã.
Realmente preciso começar a esconder os livros didáticos. O negócio é que ele os lê e consegue reter o que dizem, e depois aplica às outras coisas que encontra pela casa.
Não sei por que não pode simplesmente assistir à TV, como uma pessoa normal.
Fui até a cama e desmoronei, de cara. Devo mencionar que ainda estava usando o horrível short do hotel. Mas não consegui me obrigar a me importar com o que Jesse acharia do tamanho da minha bunda naquele momento específico.
Acho que a coisa deve ter ficado evidente. Quero dizer, não minha bunda, mas minha infelicidade geral com o modo como o verão estava passando.
- Você está bem? – perguntou Jesse.
- Estou – falei para os travesseiros.
Depois de um minuto Jesse insistiu:
- Bom, você não parece bem. Tem certeza de que não há nada errado?
“Sim, há algo errado”, quis gritar para ele. Acabo de passar vinte minutos lendo um punhado de cartas particulares de sua ex-noiva, e será que devo acrescentar que ela pareceu uma criatura fantasticamente chata? Como você pode ter sido estúpido a ponto de concordar em se casar com ela? Com ela e seu estúpido toucado.
Mas o negócio é que eu não queria que Jesse ficasse sabendo que eu tinha lido sua correspondência. Quero dizer, nós somos basicamente colegas de quarto e coisa e tal, e há certas coisas que não se faz. Por exemplo, Jesse sempre tem a delicadeza de não ficar por perto quando estou trocando de roupa, tomando banho e coisas do tipo. E eu tenho todo o cuidado de colocar a areia para Spike que, diferentemente de um gato normal, prefere a companhia dos fantasmas à humana. Só me tolera porque eu lhe dou comida.
Claro, no passado Jesse não teve escrúpulos em se materializar no banco de trás de carros em que por acaso eu estava namorando alguém.
Mas sei que Jesse nunca leria minha correspondência, coisa que tenho apenas em pequena quantidade, principalmente na forma de cartas de minha melhor amiga, Gina, lá do Brooklyn. E preciso admitir que me sinto culpada por ter lido a dele, mesmo que as cartas tenham mais de 150 anos e certamente não falem nada a meu respeito.
O que me surpreendeu foi que Jesse (que, afinal de contas, é um fantasma e pode ir a qualquer lugar sem ser visto – a não ser por mim e pelo padre Dom, claro, e agora, acho, por Jack) não soubesse das cartas. Verdade, ele parecia não fazer idéia de que elas tinham sido descobertas e que, há alguns instantes, eu estivera lá embaixo, lendo-as.
Mas, afinal de contas, First Blood é bem interessante. Acho.
Por isso, em vez de dizer o que estava realmente errado comigo – você sabe, qualquer coisa sobre o negócio de estou apaixonada por você, só que onde isso vai dar? Porque você nem está vivo e eu sou a única que pode vê-lo, e além disso está claro que você não sente a mesma coisa por mim. Sente? Bem, sente? -, eu simplesmente falei:
- Bom, eu conheci outro mediador hoje, e acho que isso me deixou meio estranha.
Jesse ficou muito interessado e disse que eu devia ligar para o padre Dom, dando a notícia. O que eu queria fazer, claro, era ligar para o padre Dom e contar sobre as cartas. Mas não podia fazer isso com Jesse no quarto, porque, claro, ele saberia que eu tinha xeretado suas coisas pessoais, o que, dado todo o seu sigilo sobre o modo como tinha morrido, duvidei de que ele apreciaria.
Por isso falei:
- Boa idéia. – E pequei o telefone e liguei para o padre D.
Só que o padre D. não atendeu. E sim uma mulher. A princípio pirei, achando que o padre Dominic estava ficando com alguém. Mas então me lembrei de que ele mora numa residência eclesiástica, com um bocado de outras pessoas. Por isso perguntei:
- O padre Dominic está? – esperando que fosse apenas uma noviça ou algo assim, e que ela iria chamá-lo sem fazer comentário.
Mas não era uma noviça. Era a irmã Ernestine, subdiretora da escola e que, claro, reconheceu minha voz.
- Suzannah Simon – disse ela. – Por que está ligando para a casa do padre Dominic a esta hora? Você sabe que horas são, mocinha? Quase dez!
- Eu sei. Só que...
- Além disso, o padre Dominic não está – continuou a ela. – Foi para um retiro.
- Retiro? – ecoei, visualizando o padre Dominic diante de uma fogueira de acampamento com um punhado de outros padres, cantando cantigas de escoteiro e possivelmente usando sandálias.
Então lembrei que o padre Dominic tinha dito que iria para um retiro com os diretores das escolas católicas. Até me deu o número de lá, para o caso de haver alguma emergência fantasmagórica e que eu precisasse fazer contato. Mas não achei que a descoberta de um novo mediador fosse emergência... ainda que, sem dúvida, o padre Dom acharia. Por isso apenas agradeci à irmã Ernestine, pedi desculpas por tê-la incomodado e desliguei.
- O que é um retiro? – perguntou Jesse?
Então expliquei, mas o tempo todo estava ali sentada, pensando na vez em que ele tinha tocado em meu rosto no hospital e imaginando se teria sido apenas porque sentia pena de mim, se gostava mesmo de mim (mais do que como apenas uma amiga – sei que ele gosta de mim como amiga), ou sei lá o quê.
Porque o negócio é que, mesmo estando morto há 150 anos, Jesse é realmente um tremendo gato – muito mais até do que Paul Slater... ou talvez eu só pense isso porque estou apaixonada.
Mas tudo bem. Quero dizer, ele realmente parece saído direto de um anúncio. Tem até os dentes ótimos para um cara nascido antes de inventarem o flúor, muito brancos e fortes. Puxa, se houvesse algum carinha na Academia da Missão que se parecesse ao menos de longe com Jesse, ir à escola não seria a gigantesca perda de tempo que é.
Mas de que adianta? Quero dizer, ele ser tão bonito e coisa e tal? O cara é um fantasma. Sou a única que consegue vê-lo. Não posso apresentá-lo à minha mãe, nem levá-lo à festa de formatura, nem casar com ele, nem nada. Não temos futuro juntos.
Preciso me lembrar disso.
Mas algumas vezes é muito, muito difícil. Em especial quando ele está sentado ali na minha frente, rindo do que eu digo e fazendo carinho naquele gato estúpido e fedorento. Jesse foi a primeira pessoa que conheci quando me mudei para a Califórnia, e virou meu primeiro amigo de verdade aqui. Sempre esteve presente quando precisei, o que é mais do que posso dizer da maioria dos vivos que conheço. E se eu tivesse de escolher uma pessoa para levar para uma ilha deserta, nem iria pensar: claro que seria o Jesse.
Era nisso que estava pensando quando expliquei sobre os retiros. Era o que estava pensando quando passei a explicar o que sabia sobre a Guerra do Vietnã, e depois sobre a eventual queda do comunismo na ex-União Soviética. Era o que estava pensando quando escovei os dentes e me preparei para dormir. Era o que estava pensando quando disse boa noite a ele, me enfiei sob as cobertas e apaguei a luz. Era o que estava pensando quando o sono me dominou e abençoadamente embotou qualquer pensamento... ultimamente o tempo que passava dormindo era o único em que conseguia não pensar em Jesse.
Mas vou lhe contar: tudo voltou com força total quando, apenas algumas horas depois, acordei com um susto e encontrei uma mão apertando minha boca.
E, ah, sim, uma faca encostada na garganta.

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