Capítulo 4 > (Hora mais sombria)

Sendo mediadora, não é estranho acordar de um modo, vamos dizer, um pouco menos do que gentil.
Mas isso foi muito menos gentil do que o usual. Quero dizer, em geral, quando alguém quer ajuda, se esforça ao máximo para não antagonizar a gente... coisa que uma faca na garganta tende a fazer.
Mas assim que abri os olhos e vi quem era o indivíduo segurando a faca, percebi provavelmente que ela não queria minha ajuda. Não. Provavelmente queria me matar.
Não pergunte como eu soube. Sem dúvida eram os velhos instintos de mediadora funcionando.
Bem, e a faca era uma indicação bastante significativa.
- Escute, garota idiota – sibilou Maria de Silva. Maria de Silva Diego, devo dizer, já que na ocasião da morte ela estava casada com Felix Diego, o traficante de escravos. Sei disso tudo pelo livro que Mestre pegou na biblioteca, chamado Meu Monterey, uma história do condado de Salinas entre 1800 e 1850. Tinha também até um retrato de Maria.
Motivo pelo qual, por acaso, eu soube quem estava tentando me matar.
- Se você não fizer seu pai e seu irmão pararem de cavar aquele buraco – sibilou ela. Bem, padrasto e meio-irmão, eu quis corrigir, só que não pude por causa da mão na minha boca. – Vou fazer você lamentar ter nascido. Entendeu?
Uma fala bastante durona para uma garota de saia-balão. Porque era isso que ela era. Uma garota.
O que não era quando morreu. Quando morreu, por volta da virada do século – do século passado, não deste, claro – Maria de Silva Diego tinha uns setenta anos.
Mas o fantasma em cima de mim parecia ter minha idade. O cabelo era preto, sem qualquer sugestão de grisalho, com uns cachos bem chiques de cada lado do rosto. Parecia ter muita coisa no departamento de joalheria. Havia um rubi grande e gordo pendurado numa corrente de ouro em volta do pescoço longo e esguio – muito Titanic e coisa e tal -, e tinha uns anéis da pesada nos dedos. Um deles estava cortando minha gengiva.
Mas esse é o negócio dos fantasmas. O negócio que sempre mostram errado nos filmes. Quando você morre, o espírito não assume a forma de seu corpo na hora em bateu as botas. Ninguém vê fantasmas andando por aí com as entranhas se derramando nem segurando a cabeça cortada, ou sei lá o que. Se fosse assim, Jack poderia ter razão em ser um moleque tão medroso.
Mas a coisa não acontece desse modo. Em vez disso, os fantasmas aparecem na forma de quando o corpo estava mais vital, mais vivo.
E acho que, para Maria de Silva, isso foi quando tinha uns 16 anos.
Ei, era legal ter opção, sabe? Jesse não teve permissão de viver o bastante para poder escolher. Graças a ela.
- Ah, não, de jeito nenhum – disse Maria, com a parte de trás dos anéis raspando meus dentes de um modo que eu teria mesmo como descrever como desagradável. – Nem pense nisso.
Não sei como ela soube, mas eu estivera pensando em dar uma joelhada em sua coluna vertebral. Mas a lâmina apertada contra minha jugular me dissuadiu rapidamente.
- Você vai fazer seu pai parar de cavar lá trás, e vai destruir aquelas cartas, entendeu, garotinha? – sibilou Maria. – E não vai dizer uma palavra sobre elas, nem sobre mim, a Hector. Estou sendo clara?
O que eu poderia fazer? Ela estava com uma faca na minha garganta. E não havia nada em seus modos que lembrassem a Maria de Silva que havia escrito aquelas cartas idiotas. A garota não estava arengando sobre o novo toucado, se é que você sacou. Não tive qualquer dúvida de que ela não somente sabia usar a faca, mas que pretendia fazer isso, se fosse provocada.
Assenti para mostrar que, nas circunstâncias, estava perfeitamente disposta a seguir suas ordens.
- Bom – disse Maria de Silva. E então afastou os dedos da minha boca. Senti gosto de sangue.
Ela havia montado em cima de mim – o que explicou todas aquelas anáguas de renda na minha cara, coçando meu nariz – e agora me olhava, com feições bonitas retorcidas numa expressão de nojo.
- E disseram para eu ter cuidado – falou com um riso de desprezo. – Que você era cheia de truques. Mas não é, é? É apenas uma garota. Uma garotinha estúpida.
Em seguida inclinou a cabeça para trás e gargalhou.
E então sumiu. Assim.
Logo senti que podia me mexer outra vez, saí da cama e fui para o banheiro, onde acendi a luz e olhei meu reflexo no espelho em cima da pia.
Não. Não havia sido um pesadelo. Havia sangue entre meus dentes, onde o anel de Maria de Silva tinha cortado.
Lavei até que todo o sangue tivesse saído, depois apaguei a luz do banheiro e voltei para o quarto. Acho que estava meio atordoada. Não podia registrar direito o que havia acontecido. Maria de Silva. Maria de Silva, noiva de Jesse – acho que, nas circunstâncias, é seguro dizer ex-noiva -, tinha aparecido no meu quarto e me ameaçado. Eu. Euzinha, coitada.
Era muita coisa a processar, em especial considerando que eram... ah, não sei, quatro da madrugada?
E por acaso eu ainda recebia outro choque noturno. Nem bem saí do banheiro e notei que havia alguém encostado num dos suportes do dossel da minha cama.
Só que não era apenas alguém. Era Jesse. E, quando me viu, ele se empertigou.
- Você está bem? – perguntou preocupado. – Achei... Suzannah, havia alguém aqui, agora?
Ah, quer dizer, sua ex-namorada com uma faca?
Foi o que eu pensei. O que falei foi:
- Não.
Certo. Nem comece. O motivo para eu não contar não teve nada a ver com a ameaça de Maria.
Não, era a outra coisa que Maria tinha dito. Sobre falar com Andy para parar de cavar no quintal dos fundos. Porque isso só podia significar uma coisa: havia algo enterrado no quintal dos fundos e ela não queria que alguém descobrisse.
E eu tinha a sensação de que sabia o que era esse algo.
Também tinha a sensação de que o algo era o motivo para Jesse estar nas colinas de Carmel há tanto tempo.
Deveria ter contado tudo isso a ele, certo? Puxa, qual é: Jesse tinha o direito de saber. Era algo muito diretamente ligado a ele.
Mas também era algo que, eu tinha certeza, iria levá-lo embora para sempre.
É, sei: se eu realmente o amasse, estaria disposta a libertá-lo, como naquele poema que sempre imprimem em cartazes com gaivotas voando ao vento: Se você ama alguém, liberte-o. Se tiver de ser, ele voltará para você.
Deixe-me dizer uma coisa. Esse poema é idiota, certo? E não se aplica de jeito nenhum a esta situação. Porque assim que Jesse ficar livre, nunca mais voltar para mim. Porque não poderá. Porque vai estar no céu, em outra vida, ou sei lá onde.
E aí terei de virar de freira.
Meu Deus. Meu Deus, é tudo uma porcaria.
Arrastei-me de volta para a cama.
- Olha, Jesse – falei puxando as cobertas até o queixo. Estava de camiseta e short, mas, você sabe, sem sutiã nem nada. Não que ele pudesse perceber, estando no escuro e coisa e tal, mas nunca se sabe. – Estou mesmo cansada.
- Ah. Claro. Mas... tem certeza de que não havia ninguém aqui? Porque posso jurar...
Esperei que ele terminasse. Como é que a frase acabaria? Posso jurar que ouvi a voz melodiosa da mulher que amei? Posso jurar que senti o perfume dela – que, por sinal, era de flor de laranjeira?
Mas não falou essas coisas. Em vez disso, parecendo realmente confuso, disse:
- Desculpe.
E desapareceu, exatamente como a ex-namorada tinha feito. De fato é de pensar que eles poderiam ter se trombado, não é?, lá no plano espiritual, com todo esse negócio de se materializar e se desmaterializar.
Mas aparentemente não.
Não vou mentir e dizer que voltei a cair logo no sono. Não caí. Estava mesmo cansada, mas minha mente ficava repassando o que Maria tinha dito, repetidamente. Com quê, afinal, ela estava tão abalada e cheia de preocupação? Aquelas cartas não tinham absolutamente nada incriminador. Quero dizer, se foi verdade que ela mandou apagar Jesse para casar com o namorado Diego, em vez dele.
E, se aquelas cartas eram tão importantes, por que ela não as destruiu direito há tantos anos? Por que foram enterradas no quintal dos fundos numa lata de charutos?
Mas não era isso que estava realmente me incomodando. O que realmente me incomodava era que ela queria que eu fizesse Andy parar de cavar. Porque isso só podia significar uma coisa.
Havia algo ainda mais incriminador ali.
Tipo um corpo.
E eu nem queria pensar no corpo de quem seria.
E quando acordei de novo, algumas horas mais tarde, depois de finalmente conseguir cochilar, ainda não queria pensar nisso.
Mas uma coisa eu sabia: não ia pedir para Andy parar de cavar (como se ele ao menos fosse ouvir, caso eu pedisse), nem ia destruir aquelas cartas. Nem pirando.
Na verdade tomei posse delas, só para garantir, dizendo a Andy que ia entregar pessoalmente à sociedade histórica. Deduzi que ficariam em segurança lá, para o caso de a velha Maria Diego aprontar alguma coisa. Andy ficou surpreso, mas não o bastante para me perguntar casualmente qual era a minha. Estava ocupado demais gritando com Dunga por ter cavado no lugar errado.
Quando cheguei ao Pebble Beach Hotel and Golf Resort naquela manhã, fui recebida por Caitlin com um tom acusador:
- Bem, não sei o que você fez com Jack Slater, mas a família dele pediu que tomasse conta do garoto pelo resto da estadia... até o domingo.
Não fiquei surpresa. Nem me importei particularmente. O fator Paul era perturbador, claro, mas agora que eu conhecia o motivo para o comportamento estranho de Jack, passei a gostar genuinamente do moleque.
E, como ficou claro no momento em que pus os pés na suíte da família, ele estava louco por mim. Nada de ficar deitado no chão diante da TV. Jack estava de calção de banho e pronto para sair.
- Pode me ensinar nado borboleta hoje, Suze? – perguntou ele. – Sempre quis nadar borboleta.
- Suzan – disse a mãe dele num aparte sussurado, logo antes de sair correndo para seu compromisso (Paul e o pai não estavam por perto, para meu alívio, porque tinham de jogar golfe às sete horas). – Mal posso agradecer o que você fez pelo Jack. Não sei o que você falou ontem, mas é que como se ele fosse outra criança. Nunca o vi tão feliz. Sabe, ele realmente é uma pessoa notavelmente sensível. E tem uma imaginação! Sempre acha que está vendo... bem, gente morta. Ele falou disso com você?
Respondi casualmente que sim.
- Bem, nós ficamos quase loucos. Devemos ter consultado uns trinta médicos diferentes, e nenhum, nenhum, conseguiu fazer contato com ele. Então você aparece e... – Nancy Slater olhou para mim com os olhos azuis cuidadosamente maquiados. – Bem, não sei como poderíamos agradecer, Suzan.
“Poderia começar me chamando pelo nome certo”, pensei. Mas na verdade não me importava. Só disse:
- Sem problema, Sra. Slater – em seguida fui pegar Jack e o levei para a piscina.
Jack era um garoto diferente. Não havia como negar. Até Soneca, acordado do cochilo semipermanente pelo espadanar feliz do meu pupilo, perguntou se ele era o mesmo garoto que tinha visto comigo na manhã anterior, e, quando eu disse que sim, chegou a parecer incrédulo por um ou dois segundos antes de voltar a dormir. As coisas que já haviam apavorado Jack – basicamente, tudo – não pareciam mais incomodá-lo nem um pouco.
E assim, quando, depois de hambúrgueres na lanchonete da piscina, sugeri que pegássemos o ônibus do hotel e fôssemos à cidade, ele nem protestou. Até comentou que o plano “parecia divertido”.
Divertido. Vindo de Jack. Verdade, talvez a mediação não seja meu verdadeiro dom. Talvez eu devesse ser professora, psicóloga infantil, ou algo do tipo. Sério.
Mas Jack não ficou particularmente empolgado quando, assim que chegamos à cidade, fomos ao prédio onde fica a Sociedade Histórica de Carmel. Ele queria ir à praia, mas quando falei que era para ajudar a um fantasma e que iríamos à praia depois, ele aceitou bem.
Na verdade não sou do tipo de garota que freqüenta a sociedade histórica, mas até tenho de admitir que era maneiro olhar para todas aquelas fotos antigas nas paredes, fotos de Carmel e do condado de Salina há cem anos, antes que os supermercados e shoppings fossem inaugurados, quando tudo eram campos pintalgados de ciprestes, como naquele livro que fizeram a gente ler na oitava série, O pônei vermelho. Havia umas coisas bem legais – na verdade não muito da época de Jesse, mas muita coisa posterior, tipo depois da Guerra Civil. Jack e eu estávamos admirando algo chamado visor estereoscópico, que era o que as pessoas usavam para se divertir antes de existir o cinema, quando um careca mal-arrumado saiu de sua sala e nos olhou através de óculos com lentes grossas como fundos de garrafa de Coca, e disse:
- Sim, vocês queriam falar algo?
Respondi que queríamos ver alguém encarregado. O sujeito disse que era ele, e se apresentou com Dr. Clive Clemmings, Ph.D. Por isso falei ao Dr. Clive Clemmings, Ph.D., quem eu era e onde morava, e peguei a lata de charutos de minha mochila JanSport (Kate Spade não combina com short cáqui pregueado) e mostrei as cartas...
Ele pirou de vez.
Sério. Ele pirou de vez. Ficou tão empolgado que disse à velha da recepção para não repassar os telefonemas (ela ergueu os olhos, pasma, do romance que estava lendo; estava claro que o Dr. Clive Clemmings, Ph.D., não devia receber muitos telefonemas) e nos levou para a sua sala privativa...
Onde quase tive um ataque cardíaco. Porque ali, sobre a mesa de Clive Clemmings, estava o retrato de Maria de Silva, o que eu tinha visto no livro que Mestre havia apanhado na biblioteca.
Percebi que o pintor tinha feito um trabalho extraordinariamente bom. Havia acertado na mosca, até o cabelo artisticamente cacheado e o colar de ouro rubi no pescoço elegante, para não falar da expressão presunçosa...
- É ela! – exclamei de modo totalmente involuntário, cutucando o quadro com o dedo.
Jack me olhou como se eu tivesse enlouquecido – o que acho que era momentaneamente verdade -, Clive Clemmings só espiou o retrato por cima do ombro e disse:
- Sim, Maria Diego. A jóia da coroa de nossa coleção, esse quadro. Resgatei-o num bazar de garagem de um dos netos dela, dá para imaginar? Azar dele, coitado. Uma desgraça, pensando bem. Mas nenhum dos Diego deu em grande coisa. Sabe o que dizem sobre sangue ruim. E Felix Diego...
O Dr. Clive tinha aberto a lata de charutos e, usando uma coisa especial parecida com uma pinça, desdobrou a primeira carta.
- Minha nossa – ofegou ele, olhando-a.
- É – falei. – É dela. – Assenti para o quadro. – Maria de Silva. Um maço de cartas que ela escreveu para Jesse... quero dizer, Hector de Silva, seu primo, com quem ela deveria se casar, só que ele...
- Desapareceu.
Clive Clemmings me encarou. Se eu podia adivinhar direito, deveria ter trinta e poucos anos – apesar da ampla careca no topo da cabeça -, e mesmo não sendo bonito de jeito nenhum, nesse momento não parecia tão absolutamente repulsivo como antes. Um olhar de perplexidade total, que certamente não ajuda a muitas pessoas, fez maravilhas por ele.
- Meu Deus – disse o sujeito. – Onde você achou isso?
Então contei, e ele ficou ainda mais empolgado, e mandou esperar em sua sala enquanto ia fazer uma coisa.
Por isso esperamos. Jack foi muito bom. Só disse por duas vezes:
- Quando é que a gente vai à praia?
Quando o Dr. Clive Clemmings, Ph.D., voltou, estava segurando uma bandeja e um punhado de luvas de látex, que disse que deveríamos calçar se fôssemos tocar em alguma coisa. Nesse ponto Jack estava bem entediado, por isso optou por voltar à sala principal e brincar mais um pouco com o visor estereoscópico. Só eu calcei as luvas.
Mas fiquei satisfeita com isso. Porque o que Clive Clemmings me deixou tocar quando as calcei era tudo que a sociedade histórica havia colecionado e que tinha alguma coisa a ver com Maria de Silva.
O que, deixe-me dizer, era um bocado.
Mas as coisas que mais me interessaram na coleção foram uma pintura minúscula – uma miniatura, como Clive Clemmings disse que era chamada – de Jesse (ou Hector de Silva, como o Dr.Clive o chamava; aparentemente só a família mais próxima de Jesse o chamava de Jesse... a família e eu claro) e cinco cartas em condições muito melhores do que as da lata de charutos.
A miniatura era perfeita, como uma pequena fotografia. Naquela época as pessoas realmente sabiam pintar, acho. Era totalmente Jesse. A imagem o capturava perfeitamente. Tinha aquela expressão de quando lhe conto sobre alguma conquista fantástica que fiz num shopping – você sabe, que consegui uma bolsa Prada com cinqüenta por cento de desconto, ou algo assim. Como se não pudesse se importar menos.
Na pintura, que era só da cabeça e dos ombros de Jesse, ele estava usando algo que Clive Clemmings chamou de gravata à Lavallière, que supostamente todos os caras usavam na época, um negócio grande, largo e cheio de dobras, enrolado algumas vezes no pescoço. Parecia ridículo em Dunga, Soneca ou mesmo em Clive Clemmings, apesar de seu Ph.D.
Mas em Jesse, claro, ficava fantástico.
Bem, o que não ficaria?
De certa forma, as cartas eram quase melhores do que a pintura. Porque todas eram endereçadas a Maria de Silva... e assinadas por alguém chamado Hector.
Parti para cima delas, e não posso dizer que senti a menor culpa. Eram muito mais interessantes do que as cartas de Maria – se bem que, como elas, não eram nem um pouco românticas. Não: Jesse apenas escrevia – de modo muito espirituoso, devo acrescentar – sobre os acontecimentos da fazenda de sua família e as coisas engraçadas que suas irmãs faziam. (Por acaso ele tinha cinco. Quero dizer, irmãs. Todas mais novas, indo de seis a dezesseis anos na época em Jesse morreu. Mas será que ele já havia falado disso comigo? Ah, por favor). Também havia coisas sobre política local e como era difícil manter bons empregados na fazenda por causa da corrida do ouro que todos eles partiam para reivindicar posses.
O negócio é que, pelo modo como Jesse escrevia, quase dava para ouvi-lo falando aquilo. Era tudo muito amigável, tipo bate-papo e maneiro. Muito melhor do que as cartas presunçosas de Maria.
E, além disso, nada estava escrito errado.
Enquanto eu lia as cartas de Jesse, o Dr. Clive arengava dizendo que agora que tinha as cartas de Maria a Hector iria colocá-las na exposição que pretendia fazer para a temporada turística de outono, uma exposição sobre todo o clã Silva e sua importância para o crescimento do condado de Salinas no decorrer dos anos.
- Se ao menos restasse algum deles vivo – falou, pensativo. – Quero dizer, algum Silva. Seria ótimo tê-los como oradores convidados.
Isso atraiu minha atenção.
- Deve ter restado algum. Maria e o tal de Diego não tiveram 37 filhos, ou algo assim?
Clive Clemmings ficou sério. Como historiador – e especialmente Ph.D. -, não parecia apreciar qualquer tipo de exagero.
- Tiveram 11 filhos – corrigiu. – E eles não são estritamente Silva, e sim Diego. Infelizmente a família Silva tinha muitas filhas. Acho que Hector de Silva foi o último homem da linhagem. E, claro, nunca saberemos se ele teve algum filho do sexo masculino. Se teve, certamente não foi no norte da Califórnia.
- Claro que não teve – falei, talvez mais na defensiva do que deveria. Mas estava incomodada. Fora o óbvio machismo daquela coisa de último homem da linhagem, fiquei irritada com a presunção do sujeito, de que Jesse poderia estar procriando em algum local quando, de fato, fora assassinado de modo maligno. – Ele foi morto na minha casa!
Clive Clemmings me olhou com as sobrancelhas erguidas. Só então percebi o que tinha dito.
- Hector de Silva – disse o Dr. Clive, parecendo um bocado a irmã Ernestine quando fica irritada com bagunceiros na aula de religião – desapareceu pouco antes de se casar com a prima Maria, e jamais se teve notícias dele.
Eu não podia ficar ali sentada e dizer: É, mas seu fantasma mora no meu quarto, e ele me contou...
Em vez disso, falei:
- Eu achava que a... é... percepção era que Maria mandou o namorado, o tal de Diego, matar Hector, para não ter de se casar com ele.
Clive Clemmings pareceu chateado.
- Isso é apenas uma teoria apresentada por meu avô, o coronel Harold Clemmings, que escreveu...
- Meu Monterey – terminei para ele. – É, foi o que quis dizer. O cara é seu avô?
- Sim – respondeu o Dr. Clemmings, mas não pareceu feliz demais com isso. – Ele faleceu há muitos anos. E não posso dizer que concordo com sua teoria, srta... é... Ackerman. – Eu tinha doado as cartas de Maria em nome do meu padrasto, por isso o Dr. Clive, machista como era, presumiu que esse também fosse o meu nome. – Nem posso dizer que o livro tenha vendido bem. Meu avô era extremamente interessado na história da comunidade, mas não era um homem formado, como eu. Não possuía nem mesmo um mestrado, quando mais Ph.D. Minha crença, para não mencionar a da maioria dos historiadores locais, sempre foi que o jovem sr. Silva, como dizemos comumente, “amarelou” – o Dr. Clive fez pequenas aspas com os dedos – alguns dias antes do casamento e, incapaz de encarar o embaraço da família por abandonar a jovem daquele modo, partiu para reivindicar alguma posse, talvez perto de São Francisco...
É incrível, mas por um momento me visualizei cravando aquela pinça que Clive Clemmings me obrigou a usar para virar as páginas das cartas de Jesse direto nos olhos dele. Isto é, se eu conseguisse fazer com que ela passasse pelas lentes daqueles óculos imbecis.
Em vez disso me controlei e disse, com toda a dignidade que pude juntar enquanto estava ali sentada vestida de short cáqui pregueado:
- E você realmente acredita, bem no fundo do coração, Clive, que a pessoa que escreveu estas cartas faria algo assim? Que iria embora sem dizer uma palavra à família? Às irmãzinhas, que ele claramente amava e sobre quem escreveu com tanto afeto? Realmente acha que o motivo para essas cartas terem aparecido no meu quintal é porque ele as enterrou lá? Ou acha que é fora de possibilidade que o motivo de elas terem aparecido lá seja porque ele está enterrado lá em algum lugar, e que se meu padrasto cavar bem fundo pode acabar encontrando-o?
Minha voz tinha subido de tom, esganiçada. Acho que eu estava ficando meio histérica com aquela coisa toda. Pois é, pode me processar.
- Será que isso faria você ver que seu avô está cem por cento correto? – guinchei. – Quando meu padrasto achar o cadáver podre de Hector de Silva?
Clive Clemmings ficou mais perplexo do que antes.
- Minha cara srta. Ackerman! – exclamou ele.
Acho que falou porque tinha notado, no mesmíssimo momento que eu, que eu estava chorando.
O que era bem estranho, porque não sou chorona. Quero dizer, é claro, eu choro quando bato a cabeça num armário da cozinha ou vejo um daqueles comaerciais melosos da Kodak ou coisa assim. Mas, você sabe, não caio no choro por qualquer bobagem.
Mas ali estava eu, sentada na sala do Dr. Clive Clemmings, Ph.D., abrindo o maior berreiro. Muito bem, Suze. Isso é que é profissional. Um belo modo de mostrar a Jack como mediar.
- Bem – falei em voz trêmula enquanto tirava as luvas de látex e me levantava. – Deixe-me garantir, Clive, que você está muito, muito errado. Jesse... quero dizer, Hector, jamais faria algo assim. Isso pode ser o que ela quer que você acredite. – Assenti para o quadro na parede acima, cuja visão agora estava começando a odiar com uma espécie de paixão. Jesse... quero dizer, Hector, não é... não era assim. - Se ele “amarelasse”, como você falou – fiz as mesmas aspas estúpidas no ar -. Teria cancelado a coisa. E, sim, os pais dele poderiam ficar embaraçados, mas teriam perdoado, porque claramente o amavam tanto quanto ele os amava, e...
Mas não consegui falar mais, de tanto que estava chorando. Era de enlouquecer. Não dava para acreditar. Chorando. Chorando na frente desse palhaço.
Por isso me virei e saí intempestivamente da sala.
Não foi uma saída muito digna, acho, considerando que a última coisa que o Dr. Clive Clemmings, Ph.d, viu de mim foi minha bunda, que devia parecer enorme naquele short estúpido.
Mas consegui passar meu argumento.
Acho.
Claro, no fim, acabou não importando. Mas na hora eu não tinha como saber disso.
Nem, infelizmente, o pobre Dr. Clemmings, Ph.D.

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