Capítulo 5 > (Hora mais sombria)

Meus Deus, odeio chorar. É tão humilhante! E juro que quase nunca faço isso.
Mas acho que a tensão de ser agredida no meio da noite pela ex-namorada do sujeito que eu amo, com uma faca na mão, finalmente me pegou no contrapé. Praticamente não parei de chorar até que Jack, desesperado, me comprou um sorvete no Jimmy’s Quick Mart a caminho da praia.
Isso e uma barra de chocolate logo fizeram com que eu me sentisse eu mesma outra vez, e não demorou muito para Jack e eu estarmos cabriolando na água, curtindo com a cara dos turistas e apostando em que surfista cairia da prancha primeiro. Foi tão divertido que só quando o sol começou a se pôr percebi que precisava levar Jack de volta ao hotel.
Não que alguém tivesse sentido nossa falta, descobrimos ao chegar. Quando larguei Jack na suíte da família, sua mãe esticou a cabeça no terraço, onde estava tomando coquetéis com o Dr. Rick, e disse:
- Ah, é você, Jack? Vá correndo trocar a roupa para o jantar, está bem? Vamos nos encontrar com os Robertson. Obrigada, Suzan, vejo você amanhã.
Acenei e fui embora, aliviada por ter conseguido evitar Paul. Depois de minha tarde inesperadamente traumática, não achava que conseguiria passar por um confronto com o Sr. Uniforme de tênis.
Mas meu alívio foi prematuro. Quando estava sentada no banco da frente do Land Rover, esperando Soneca se desembaraçar de Caitlin, que parecia ter algo terrivelmente urgente para discutir com ele justo quando estávamos indo embora, alguém bateu na minha janela fechada. Olhei, e ali estava Paul, usando gravata, imagina só, e um paletó esporte azul-escuro.
Apertei o botão que abria a janela.
- Ah – falei. – Oi.
- Oi. – Ele estava dando um sorriso agradável. Os últimos raios de sol captaram o dourado em seus cachos castanhos. Tive de admitir que ele realmente era bonito. Kelly Prescott o teria comido com uma colher. – Acho que você já tem planos para esta noite – disse ele.
Não tinha, claro, mas respondi depressa:
- Tenho.
- Foi o que imaginei. – O sorriso dele continuou agradável. – Que tal amanhã à noite?
Olha, sei que sou esquisita, certo? Não precisa dizer. Ali estava eu, e um cara totalmente gato, totalmente maneiro me convidando para sair, e eu só podia pensar num sujeito que, vamos encarar os fatos, está morto. Certo? Jesse está morto. É idiotice – idiotice, idiotice, idiotice – da minha parte recusar um encontro com um cara vivo quando o único outro que tenho na vida está morto.
Mas foi exatamente isso que fiz. Falei:
- Ah, desculpe, Paul. Tenho planos para amanhã à noite, também.
Nem me importei se parecia estar mentindo. Para ver como sou pirada. Simplesmente não consegui demonstrar o mínimo interesse.
Mas acho que foi um erro bem grande. Acho que o Sr. Paul Slater não está acostumado a ver garotas recusando seus convites para jantar, ou qualquer outra coisa. Porque disse, não mais com sorriso agradável, nem com sorriso nenhum:
- Bem, que pena. É mesmo uma pena, considerando o fato de que agora terei de contar à sua supervisora que você levou meu irmãozinho para fora do hotel hoje, sem a permissão dos meus pais.
Só o encarei pela janela aberta. A principio nem pude deduzir do que estava falando. Depois me lembrei do ônibus, da sociedade histórica e da praia.
Quase explodi numa gargalhada. Sério. Puxa, se Paul Slater achava que me arranjar encrenca por ter tirado um garoto sem a permissão dos pais era a pior coisa que poderia acontecer – que ao menos havia me acontecido hoje -, estava muito, muito fora da real. Imagine só, uma mulher que está morta há quase cem anos encostou uma faca na minha garganta no meu próprio quarto, há menos de 24 horas. Será que ele realmente acha que vou me importar se Caitlin me fizer uma repreensão?
- Vá em frente – falei. – E quando contar a ela, não deixe de mencionar que, pela primeira vez na vida, seu irmão se divertiu.
Apertei o botão para fechar a janela – puxa, verdade, qual é o problema desse cara? – mas Paul enfiou a mão e apertou o vidro com os dedos. Soltei o botão. Quero dizer, eu só queria que ele fosse embora, não que fosse mutilado pelo resto da vida.
- É – disse Paul. – Eu estava pensando em lhe perguntar sobre isso. Jack disse que você contou que ele é médium.
- Mediador – corrigi antes que ele pudesse me impedir. E eu tinha avisado ao Jack para guardar segredo! Quando é que esse garoto ia aprender que sair por aí dizendo às pessoas que pode falas com fantasmas não irão fazer com que os outros gostassem dele?
- Tanto faz. Imagino que você deve achar bem divertido curtir com a cara de alguém que tem problema mental.
Não pude acreditar. Realmente. Era como uma coisa de um seriado de TV. Mas não da Warner, nem mesmo da Fox. Era totalmente novelão mexicano.
- Não acho que seu irmão tenha problema mental.
- Ah, não? – Paul parecia o dono da verdade. – O garoto diz a você que vê gente morta, e você acha que ele está com a mão cheia de trunfos?
Balancei a cabeça.
- Jack pode ser capaz de ver gente morta, Paul. Você não sabe. Quero dizer, você não pode provar que ele não vê gente morta.
Ah, brilhante argumento, Suze. Onde, diabos, estava Soneca? Anda logo. Me tira daqui.
- Suze – disse Paul, me olhando com atenção. – Por favor. Gente morta? Você realmente acredita nisso? Realmente acredita que meu irmão consegue ver... que consegue falar com gente morta?
- Já ouvi falar de coisas mais estranhas. – Olhei para Soneca. Caitlin estava sorrindo para ele e balançando sua loura juba tipo Jennifer Aniston para tudo que é canto. Ah, meu Deus, chega de paquera! Convide o cara para sair e acabe com isso, para que eu possa...
- É, bem, você não deveria estar encorajando-o. – disse Paul. – É a pior coisa que poderia fazer, segundo os médicos.
- É? – Agora eu estava ficando meio pê da vida. Quero dizer, o que Paul Slater sabia? Só porque o pai é cirurgião cerebral, ou sei lá o quê, e pode pagar uma semana no Pebble Beach Hotel and Golf Resort, isso não faz com que ele esteja certo o tempo todo. – Bem, Jack me parece ótimo. Talvez você até aprenda uma ou duas coisas com ele, Paul. Pelo menos ele tem a mente aberta.
Paul só balançou a cabeça, incrédulo.
- O que você está dizendo, Suze? Que você acredita em fantasmas?
Finalmente, finalmente, Soneca se despediu de Caitlin e se virou para o carro.
- É. Acredito. E você, Paul?
Paul só piscou para mim.
- Eu o quê?
- Acredita?
O lábio superior enrolado foi toda a resposta de que eu precisava. Não me importando se iria decepar sua mão, apertei o botão da janela. Paul tirou os dedos no último instante. Acho que pensava que eu não era do tipo decepadora de dedos.
E estava muito errado.
Por que os garotos são tão difíceis? Quero dizer, puxa! Quando não estão bebendo direto da caixa nem deixando a tampa da privada levantada, ficam todos ofendidos porque a gente não quer sair com eles e ameaçam dedurar a gente para a supervisora. Será que não ocorreu a nenhum deles que esse não é o caminho para o nosso coração?
E o problema é que eles simplesmente vão continuar fazendo isso enquanto garotas imbecis como Kelly Prescott continuarem concordando em sair com eles, apesar dos defeitos.
Fiquei mal-humorada por todo o caminho para casa. Até Soneca notou.
- O que é que você tem? – perguntou ele.
- O idiota do Paul Slater está furioso porque não quero sair com ele – falei, ainda que geralmente eu siga a política de não compartilhar meus problemas pessoais com nenhum dos meus meios-irmãos, a não ser, ocasionalmente, Mestre, e só porque o QI dele é muito mais alto que o meu. – Paul disse que vai dizer a Caitlin que eu saí do hotel com o irmãozinho dele sem a permissão dos pais, coisa que eu fiz, mas só para levá-lo à praia.
E à Sociedade Histórica de Carmel. Mas não mencionei isso.
- Não brinca? Isso é jogo sujo. Bem, não se preocupe. Eu resolvo as coisas com Caitlin, se você quiser.
Fiquei chocada. Só tinha falado disso porque estava me sentindo de baixo-astral. Não esperava que Soneca ajudasse, nem nada.
- Verdade? Você faria isso?
- Claro – Soneca deu os ombros. – Vou sair com ela esta noite, depois de acabar as entregas. – Soneca trabalha de salva-vidas durante o dia e entrega pizza à noite. Originalmente estava economizando para comprar um Camaro. Agora está economizando para ter seu próprio apartamento, já que não há alojamentos na faculdade comunitária que ele cursa, e Andy disse que não vão pagar aluguel para Soneca a não ser que ele melhore as notas.
Não pude acreditar.
- Obrigada. – falei perplexa.
- Afinal, o que há de errado com esse tal de Slater? Achei que ele fazia seu tipo. Você sabe, inteligente e coisa e tal.
- Não há nada de errado com ele – murmurei remexendo no cinto de segurança. – Só que... meio que gosto de outro.
Soneca levantou as pálpebras por trás do Ray-Ban.
- Ah? Alguém que eu conheço?
- Não – respondi secamente.
- Não sei, Suze. Experimente. Com o trabalho na pizzaria e a faculdade, eu conheço quase todo mundo.
- Você definitivamente não conhece o cara.
Soneca franziu a testa.
- Por quê? Ele é de alguma gangue?
Revirei os olhos. Desde que nos conhecemos, Soneca está convencido de que eu faço parte de alguma gangue. Sério. Como se os membros de gangues usassem maquiagem Stila. Pois é.
- Ele mora no vale? Suze, vou dizer agora mesmo, se eu descobrir que você está saindo com um cara de uma gangue do vale...
- Meu Deus! – gritei. – Quer parar? Ele não é de nenhuma gangue, nem eu! E não mora no vale. Você não conhece o cara, certo? Só esqueça que a gente conversou isso.
Está vendo? Está vendo o que eu quero dizer? Está vendo por que as coisas nunca, nunca vão dar certo comigo e Jesse? Não posso puxá-lo e dizer: aí está, esse é o cara de quem eu gosto, e não é de nenhum gangue, e não mora no vale.
Só preciso aprender a ficar de boca fechada, como o Jack.
Quando chegamos em casa fomos informados de que o jantar não tava pronto. Isso porque Andy estava enfiado até a cintura no buraco que ele e Dunga tinham feito no quintal dos fundos. Fui olhar um pouco, roendo a unha do polegar. Era arrepiante espiar aquele buraco. Quase tão arrepiante quanto a perspectiva de ir para a cama dali a alguma horas, sabendo que Maria provavelmente ia aparecer de novo.
E que, vendo como eu não tinha feito nada que ela havia pedido, desta vez a garota cortaria muito mais do que apenas a gengiva.
Foi mais ou menos então que o telefone tocou. Era minha amiga Cee Cee, querendo saber se eu toparia ir com ela e Adam McTavish ao Coffee Clutch tomar ice tea e falar mal de todo mundo. Falei que sim imediatamente, porque não tinha notícias deles há um tempão. Cee Cee estava fazendo estágio de férias no Pinhão de Carmel (o nome do jornal local, dá para acreditar?) e Adam tinha passado a maior parte do verão na casa dos avós em Martha’s Vineyard. No minuto em que escutei a voz dela percebi como sentia saudade de Cee Cee, e como seria ótimo contar sobre o maligno Paul Slater e seus truques.
Mas então, claro, percebi que teria de contar a parte sobre o irmãozinho de Paul, e que ele realmente pode falar com os mortos, caso contrario a história não teria muito pique, o fato é que Cee Cee não é do tipo que acredita em fantasmas, e por sinal nem em nada que ela não possa ver com os dois olhos, o que torna problemático o fato de estudar numa escola católica, com a irmã Ernestine insistindo o tempo todo na fé e no Espírito Santo.
Mas tanto faz. Era melhor do que ficar em casa, olhando um buraco gigantesco.
Corri escada acima, tirei o uniforme e vesti um dos vestidos J. Crew, lindinhos, que comprei e não tive chance de usar porque fiquei o verão todo com o medonho short cáqui. Nenhum sinal de Jesse, mas tudo bem, já que eu não saberia mesmo o que lhe dizer. Sentia-me totalmente culpada por ter lido suas cartas, porque o fato de saber sobre suas irmãs e os problemas na fazenda fez com eu me sentisse mais perto dele.
Só que era uma proximidade falsa porque ele não sabia que eu sabia. E, se quisesse que eu soubesse, você não acha que ele contaria? Mas Jesse não gosta de falar sobre si mesmo. Em vez disso, sempre quer falar coisas como a ascensão do Terceiro Reich e como é que nós, como país, pudemos ficar parados e deixar milhões de judeus morrerem sufocados por gás antes de fazermos alguma coisa a respeito.
Você sabe. Coisas assim.
Na verdade, algumas das coisas que Jesse quer discutir são muito difíceis de explicar. Eu preferiria falar das irmãs dele. Por exemplo, será que ele achava difícil morar com cinco garotas quanto eu acho difícil morar com três garotos? Imagino que provavelmente não, dada a situação invertida com relação ao tempo da privada. Será que havia privadas na época? Ou será que eles simplesmente iam numa daquelas horrendas latrinas do lado de fora, como em Uma pequena casa na campina?
Meu Deus, não é de espantar que Maria estivesse com tamanho mau humor.
Bem, isso e o negócio de estar morta.
De qualquer modo, mamãe e Andy me deixaram sair para comer com os amigos porque não tinham nada para jantar mesmo. E, afinal, as refeições em família não eram a mesma coisa sem Mestre. Fiquei surpresa ao descobrir que sentia falta dele e mal podia esperar sua volta. Ele era o único de meus meios-irmãos que não me enfurecia regularmente.
Mesmo não podendo contar a Cee Cee sobre Paul, me diverti um bocado. Foi bom vê-la, e Adam, que, de todos os garotos que eu conheço, é o que menos age como um, mesmo não sendo gay nem nada, e realmente fica furioso se você sugerir isso. E Cee Cee também , que está apaixonada pelo Adam desde... tipo, sempre. Eu sentia grandes esperanças de que Adam sentisse o mesmo por ela, mas dava para ver que as coisas tinham meio que esfriado – pelo menos da parte dele – desde o início das férias.
Assim que ele foi ao banheiro perguntei a Cee Cee o que estava acontecendo, e ela começou a contar que achava que Adam conheceu alguém em Martha’s Vineyard. Devo dizer que foi legal ouvir outra pessoa reclamar durante um tempo. Quero dizer, minha vida é um horror e coisa e tal, mas pelo menos eu sei que Jesse não está transando com alguma garota em Martha’s Vineyard.
Pelo menos acho que não. Quem sabe aonde ele vai quando não está no meu quarto? Pode ser Martha’s Vineyard, afinal de contas.
Está vendo? Está vendo como esse relacionamento nunca vai dar certo?
De qualquer modo, Cee Cee, Adam e eu não nos víamos havia um tempão, por isso tinha um bocado de pessoas de quem precisávamos falar mal, principalmente Kelly Prescott, por isso quando fui para casa já eram quase onze horas... tarde para mim, já que preciso estar no trabalho às oito.
Mesmo assim fiquei feliz por ter saído, já que isso afastou a mente do que eu suspeitava que me esperaria dali a algumas horas: outra visita da estonteante Sra. Diego.
Mas enquanto lavava o cabelo antes de ir para a cama, ocorreu-me que não havia motivo para tornar as coisas fáceis para a srta. Maria. Quero dizer, por que devo ser vítima em minha própria cama?
Não há motivo. Nenhum. Eu não precisava agüentar esse absurdo. Porque era isso. Um absurdo.
Bem, um absurdo meio apavorante, mas sendo mesmo assim um absurdo.
Por isso, quando apaguei a luz naquela noite, foi com um claro sentimento de satisfação. Senti que estava protegida de qualquer coisa que Maria pudesse armar. Tinha embaixo das cobertas um verdadeiro arsenal que havia apanhado na oficina de Andy, inclusive um machado, um martelo e algo que não dava para identificar, mas que tinha umas pontas malignas. Além disso estava com o cachorro Max. Sabia que ele iria me acordar assim que algo do outro mundo aparecesse, já que era extremamente sensível a essas coisas.
E, ah, sim, dormi no quarto de Mestre.
Sei. Sei. Covardia ao extremo. Mas por que eu deveria ficar na minha cama e esperar por ela, como alvo fácil, quando podia dormir na cama de Mestre e talvez despistá-la? Quero dizer, eu não estava procurando briga nem nada. Bem, a não ser pelo negócio de não ter feito o que ela mandou. Acho que isso era meio indicativo de procurar briga. Mas não ativamente, você sabe.
Porque vou lhe contar, ainda que normalmente talvez eu saísse à procura da sepultura de Maria de Silva para poder, você sabe, resolver as coisas de uma vez, esse caso era meio diferente. Por causa do Jesse. Não pergunte por quê, mas simplesmente não acho que teria pique para quebrar a cara da ex-namorada, como teria feito se ela não fosse ligada a ele. Não posso dizer que estou realmente acostumada a esperar que os fantasmas venham atrás de mim...
Mais isso. Isso era diferente.
De qualquer modo, tinha acabado de me aninhar entre as cobertas de Mestre (recém-lavadas – eu não iria me arriscar. Não sei o que acontece na cama dos garotos de doze anos, e, francamente, não quaro saber) e estava piscando no escuro para as coisas estranhas que Mestre tinha pendurado no teto, um modelo do sistema solar e coisa e tal, quando Max começou a rosnar.
Fez isso tão baixo que a princípio não escutei. Mas como eu o tinha colocado na cama comigo (não que houvesse muito espaço, com o machado, o martelo e a coisa pontuda), pude sentir o rosnado revertendo em seu grande peito canino.
Então o rosnado aumentou, e os pêlos nas costas de Max começaram a ficar em pé. Foi então que eu soube que teríamos um terremoto ou uma visita noturna da ex-beldade do condado de Salinas.
Sentei-me, segurando o negócio pontudo como se fosse um bastão de beisebol, olhando em volta ao mesmo tempo que dizia a Max em voz baixa:
- Muito bem, garoto. Tudo bem, garoto. Tudo vai ficar bem, garoto – e dizendo a mim mesma que acreditava nisso.
Foi então que alguém se materializou diante de mim. E girei o negócio pontudo com o máximo de força que pude.

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