Capítulo 6 > (Hora mais sombria)

Suzannah! – gritou Jesse, pulando para evitar o golpe. – O que você está fazendo?
Quase larguei o negócio pontudo, de tão aliviada que me senti.
Max ficou louco, ganindo e rosnando. O coitadinho estava claramente tendo algum tipo de colapso canino. Para não me arriscar a que ele acordasse todo mundo em casa e depois ter de explicar por que estava dormindo na cama do meu meio-irmão com um punhado de ferramentas do Andy, deixei-o sair do quarto. Quando fiz isso, Jesse pegou o negócio pontudo e me olhou com curiosidade.
- Suzannah – disse ele quando fechei a porta de novo -, por que está dormindo no quarto de David armada com uma picareta?
Levantei as sobrancelhas, parecendo mais surpresa do que alguém que recebe um mandado de prisão.
- Então é isso? Eu estava imaginando o que seria.
Jesse só balançou a cabeça.
- Suzannah, diga o que está acontecendo. Agora.
- Nada – falei com a voz guinchada e aguda demais, até para meus ouvidos. Fui depressa e me deitei na cama de Mestre, batendo o dedo do pé no martelo mas não dizendo nada, porque não queria que Jesse ficasse sabendo que ele estava ali. Me encontrar na cama do meu meio-irmão com uma picareta era uma coisa. Me encontrar na cama do meu meio-irmão com uma picareta, um machado e um martelo era totalmente outra.
- Suzannah – Jesse pareceu realmente furioso, e ele não fica furioso com freqüência. Isto é, a não ser, claro, quando me paga dando beijo de língua em garotos estranhos diante da garagem. – Isso é um machado?
Droga! Empurrei-o de volta para baixo do lençol.
- Posso explicar – falei.
Ele encostou a picareta na lateral da cama e cruzou os braços no peito.
- Eu gostaria de ouvir.
- Bem. – Respirei fundo. – É o seguinte.
E então não consegui pensar num modo de explicar, a não ser contando a verdade.
E isso não podia fazer.
Jesse deve ter lido na minha cara o fato de que eu estava tentando pensar numa mentira, já que de repente descruzou os braços e se inclinou para frente, pondo uma das mãos de cada lado da cabeceira atrás de mim, e meio me capturando entre os braços, ainda que não estivesse me tocando. Isso era muito irritante e fez com que eu afundasse nos travesseiros de Mestre.
Mas nem isso adiantou, já que o rosto de Jesse ainda estava a uns dez centímetros do meu.
- Suzannah. – Agora ele estava realmente furioso. Pê da vida, pode-se dizer. – O que está acontecendo aqui? Ontem à noite pude jurar que senti... uma presença em seu quarto. E esta noite você está dormindo aqui, com picaretas e machados? O que você não quer me contar? E por quê? Por que não pode me contar?
Eu tinha afundado o máximo possível, mas não havia como escapar do rosto furioso de Jesse, a não ser que eu puxasse o lençol para cima do rosto. E isso, claro, não seria nem um pouco digno.
- Olha – falei de modo mais razoável que pude, considerando que havia um martelo pressionando meu pé. – Não é que eu não queira contar. Só tenho medo de que, se contar...
E então, não pergunte como, a coisa toda saiu aos borbotões. Verdade. Foi incrível. Foi como se ele tivesse apertado um botão na minha testa que dizia “Informações, por favor”, e o negócio saiu.
Contei tudo, sobre as cartas, a ida à sociedade histórica, tudo, e terminei com:
- E o negócio é que eu não queria que você soubesse, porque se seu corpo realmente estiver lá, e se eles descobrirem, bem, isso significa que não há mais motivo para você ficar aqui, e sei é egoísmo, mas eu realmente ia sentir sua falta, por isso achei que, se não falasse, você não descobriria e tudo poderia continuar normal.
Mas Jesse não teve o tipo de reação que eu esperava. Ao me envolver nos braços nem me beijou apaixonadamente como nos filmes, nem me chamou de mi hermosa, nem acariciou meu cabelo, que estava molhado do banho.
Em vez disso começou a rir.
Coisa que eu realmente não apreciei. Quero dizer, depois de tudo que passei em nome dele nas últimas 24 horas, seria de pensar que o cara mostraria um pouquinho mais de gratidão do que ficar ali sentado, rindo. Sobretudo quando minha vida podia muito bem estar correndo perigo mortal.
Foi o que falei, mas isso só o fez rir ainda mais.
Por fim, quando cansou de rir – o que só aconteceu quando tirei o martelo de baixo das cobertas, algo que o fez gargalhar ainda mais, mas o que é que eu deveria fazer? O negócio ainda estava furando minha perna -, ele estendeu a mão e meio desgrenhou meu cabelo, mas não havia nada de romântico nisso, já que eu tinha posto condicionador Kielh’s e tenho certeza de que melou os dedos dele.
Isso só me deixou mais furiosa do que nunca, ainda que tecnicamente não fosse culpa dele. Por isso tirei o machado de baixo do lençol, também, depois puxei o lençol sobre a cabeça, rolei e não quis mais falar com ele. Nem olhar. Muito madura, sei, mas eu estava furiosa.
- Suzannah – disse ele numa voz meio rouca de tanto rir. Senti vontade de lhe dar um soco. Verdade. – Não fique assim. Desculpe. Desculpe ter rido. Só que não entendi uma palavra, de tão rápido que você falou. E quando puxou aquele martelo...
- Vá embora.
- Ande, Suzannah – disse Jesse em sua voz mais sedosa e persuasiva, que ele estava usando de propósito para me deixar toda dengosa. Só que dessa vez não ia funcionar. – Largue o lençol.
- Não – falei, segurando o lençol com mais força, enquanto ele puxava. – Mandei ir embora.
- Não, não vou embora. Sente-se. Quero conversar com você a sério agora, mas como posso fazer isso, se não quer me olhar? Vire-se.
- Não. - Eu estava mesmo furiosa. Quero dizer, você também ficaria. Aquela tal de Maria era um indivíduo apavorante. E ele se casar com ela! Bem, pelo menos há 150 anos. Será que ao menos a conhecia? Sabia que ela não era nem um pouco a garota que tinha escrito aquelas cartas idiotas? Em que ele estava pensando, afinal? – Por que não vai ficar com a Maria? – sugeri acidamente. – Talvez vocês dois possam afiar as facas dela juntos e rir um pouquinho mais à minha custa. Ha, há. Aquela mediadora é tão engraçada!
- Maria? – Jesse puxou o lençol mais um pouco. – O que você está falando? Facas?
Certo. Então eu não tinha sido totalmente sincera com ele. Não tinha contado a história toda. É, contei a parte sobre as cartas, a sociedade histórica, o buraco e coisa e tal. Mas a parte sobre Maria aparecendo com uma faca – o motivo, de fato, para eu estar dormindo no quarto de Mestre com um punhado de ferramentas? Não tinha mencionado essa parte.
Porque sabia como ele iria reagir. Exatamente como reagiu.
- Maria e facas? – ecoou ele. – Não. Não.
Foi a gora da água. Rolei e falei com ele, bem sarcástica.
- Ah, certo, Jesse. Então aquela faca que ela apertou contra minha garganta ontem à noite devia ser uma faca imaginária. E eu devo ter imaginado quando ela ameaçou me matar, também.
Comecei a rolar de volta, furiosa, mas desta vez ele me pegou antes e me fez girar de novo para encará-lo. Vi com alguma satisfação que agora Jesse não estava rindo. Nem mesmo sorrindo.
- Uma faca? – Ele estava me olhando como se não tivesse certeza de que havia escutado direito. – Maria esteve aqui? Com uma faca? Por quê?
- Diga você – falei, mesmo sabendo perfeitamente bem a resposta. – Alguém que morreu e se foi há tanto tempo como ela precisaria de algum motivo bem grande para voltar.
Jesse só me encarou com aqueles seus olhos escuros e líquidos. Se sabia alguma coisa, não iria me dizer. Pelo menos por enquanto.
- Ela... ela tentou machucar você?
Confirmei com cabeça, e tive a satisfação de sentir que seu aperto em meus ombros ficou mais forte.
- É. E segurou a faca bem aqui – apontei para minha jugular – e disse que, se eu não mandasse o Andy parar de cavar, ia me ma...
Matar, era o que eu ia dizer, mas não tive chance porque Jesse me agarrou – verdade, agarrou, é o único modo de descrever – e me segurou com muita força para alguém que há apenas alguns segundos tinha achado aquilo tudo uma grande piada.
Devo dizer que foi extremamente gratificante. E ficou ainda mais gratificante quando Jesse falou uma coisa – mesmo não sabendo o que era, porque foi em espanhol – no meu cabelo molhado.
Mas aquele abraço mortal (desculpe o trocadilho) que ele me deu não precisava de tradução: ele estava apavorado. Apavorado por mim.
- Foi uma faca bem grande – falei adorando a sensação do seu ombro enorme e forte sob minha bochecha. Eu poderia me acostumar totalmente com isso. – E muito pontuda.
- Mi hermosa – disse ele. Certo, essa palavra eu entendia. Ele me beijou no topo da cabeça.
Foi bom. Foi muito bom. Decidi partir para o abate.
- E então – falei fazendo uma imitação muito boa de choro, ou pelo menos de que estava à beira do choro – ela pôs a mão sobra minha boca para eu não gritar, e um dos anéis me cortou e deixou a boca toda sangrando.

Epa! Isso não teve o efeito esperado. Provavelmente eu não deveria ter falado da boca sangrenta, porque em vez de me beijar ali, o que era meu objetivo, ele me empurrou para poder olhar meu rosto.
- Suzannah, por que não me contou nada disso ontem à noite? – Ele parecia genuinamente pasmo. – Eu perguntei se havia alguma coisa errada, e você não disse nenhuma palavra.
Alô? Será que ele não ouviu nada que eu disse?
- Pois é.
Eu estava com os dentes trincados, mas você teria feito o mesmo, se fosse abraçada pelo homem dos seus sonhos e ele só quisesse conversar. E nada menos do que sobre a tentativa da ex-namorada dele me assassinar!
- Obviamente tem algo a ver com o motivo de você estar aqui. – falei. – Quero dizer, por que você está nesta casa, e por que está aqui há tanto tempo? Jesse, você não vê? Se eles acharem seu corpo, isso prova que você foi assassinado, e significa que o coronel Clemmings estava certo.
A perplexidade de Jesse pareceu aumentar, ao invés de diminuir, graças a essa explicação.
- Coronel quem?
- Coronel Clemmings. Autor de Meu Monterey. A teoria dele para seu desaparecimento não é que você amarelou antes de se casar com Maria e foi para São Francisco reivindicar uma posse, e sim que o tal Diego matou você para poder se casar com Maria. E eles acharem seu corpo, Jesse, isso vai provar que você foi assassinado. E os suspeitos mais prováveis, claro, são Maria e o tal de Diego.
Mas em vez de ficar fascinado com minhas excelentes capacidades de detetive, Jesse perguntou com voz chocada:
- Como você sabe sobre ele? Sobre Diego?
- Eu já disse. – Meu Deus, isso era irritante. Quando é que íamos partir para o beijo? – É de um livro que Mestre pegou na biblioteca, Meu Monterey, do coronel Harold Clemmings.
- Mas eu achei que Mestre... quero dizer, David, estava na colônia de férias.
- Isso foi há muito tempo – falei frustrada. – Quando cheguei aqui. Em janeiro passado.
Jesse não me soltou nem nada, mas estava com uma expressão tremendamente estranha.
- Você está dizendo que sabia sobre esse... sobre como eu morri... o tempo todo?
- É – falei meio na defensiva. Estava tendo a sensação de que talvez ele achasse que eu tinha feito algo errado, ao xeretar sobre sua morte. – Mas, Jesse, esse é meu trabalho. É isso que os mediadores fazem. Não posso evitar.
- Então por que ficava me perguntando como eu morri, se já sabia?
Ainda na defensiva, falei:
- Bom, eu não sabia. Não sabia com certeza. Ainda não sei. Mas Jesse... – Queria ter certeza de que ele ia entender essa parte, por isso recuei (e infelizmente ele me soltou, mas o que eu podia fazer?) e me agachei e disse, muito devagar e com cuidado: - Se eles descobrirem seu corpo lá fora, não somente Maria vai ficar muito furiosa, mas você... você vai embora. Sabe? Daqui. Porque é isso que está segurando você, Jesse. O mistério do que aconteceu. Assim que seu corpo for encontrado, esse mistério estará resolvido. E você vai embora. E por isso eu não podia contar, entende? Porque não quero que você vá embora. Porque eu te a...
Ah, meu Deus, quase falei. Nem posso dizer como cheguei perto de falar. Desembuchei o A, e o M quase foi atrás.
Mas no último instante pude salvar a situação. Transformei em:
-... acho legal e odiaria não vê-lo outra vez.
Rápida, hein? Essa foi por pouco.
Porque uma coisa eu sei sobre os homens, junto com sua incapacidade de usar um copo, baixar a tampa da privada e encher as fôrmas de gelo quando estão vazias: eles realmente não sabem lidar com a palavra “a...”. Quero dizer, é o que dizem praticamente todos os artigos que já li.
E a gente tem de deduzir que isso é verdade para todos os caras, até os que nasceram há 150 anos.
E acho que o fato de eu não ter dito a palavra deu certo, porque Jesse estendeu a mão e tocou meu rosto com a ponta dos dedos – como tinha feito naquele dia no hospital.
- Suzannah – disse ele. – Encontrar meu corpo não vai mudar nada.
- Ah. Com licença, Jesse, mas acho que eu sei do que estou falando. Sou mediadora há 16 anos.
- Suzannah, eu estou morto há 150 anos. Acho que sei o que estou falando. E posso garantir que esse mistério sobre minha morte, do qual você fala... não é o motivo para, como você costuma dizer, eu estar dando um tempo aqui.
Então aconteceu uma coisa engraçada. Como na sala de Clive Clemmings, eu simplesmente comecei a chorar. Verdade. Assim.
Ah, não fiquei soluçando feito um bebê nem nada, mas meus olhos se encheram de lágrimas e fiquei com aquela sensação ruim e pinicante no fundo do nariz, e a garganta começou a doer. Foi esquisito, porque, você sabe, eu tinha acabado de fingir que estava chorando, e, de repente, estava mesmo.
- Jesse – falei numa horrenda voz fungada (fingir que vai chorar é muito melhor do que chorar, já que há muito menos muco envolvido) -, desculpe, mas simplesmente não é possível. Quero dizer, eu sei. Já fiz isso cem vezes. Quando eles descobrirem seu corpo, acabou. Você vai embora.
- Suzannah – disse ele outra vez. E dessa vez não tocou simplesmente minha bochecha. Pôs a mão em concha num dos lados do meu rosto...
Ainda que o efeito romântico fosse um tanto arruinado pelo fato de que ele estava meio rindo de mim. Mas, para lhe dar crédito, ele parecia se esforçar tanto para não gargalhar quanto eu me esforçava para não chorar.
- Prometo, Suzannah – disse ele com um monte de pausas entre as palavras para dar ênfase -, que não vou a lugar nenhum, quer seu padrasto encontre ou não meu corpo no quintal. Certo?
Não acreditei, claro. Queria acreditar e tudo, mas a verdade é que ele não sabia do que estava falando.
Mas o que poderia fazer? Não tinha escolha além de ser corajosa. Quero dizer, não poderia ficar ali sentada abrindo o berreiro. Que tipo de idiota pareceria?
Por isso falei, infelizmente de um modo muito mucoso, já que nesse momento as lágrimas estavam escorrendo:
- Verdade? Promete?
Jesse riu e soltou meu rosto. Então enfiou a mão no bolso e pegou uma pequena coisinha com acabamento de renda, que eu reconheci. O lenço de Maria de Silva. Ele o havia usado para limpar vários cortes e arranhões que recebi no serviço de mediação. Agora usou para enxugar minhas lágrimas.
- Juro – disse ele, rindo. - Mas só um pouquinho.
No fim das contas me convenceu a voltar à minha cama. Falou que ia garantir que a ex-namorada não me procuraria à noite. Só que não a chamou de ex-namorada. Só de Maria. Eu ainda queria perguntar o que ele estivera pensando ao namorar uma vaca com cara de fuinha como aquela, mas o momento não surgiu.
Será que existe momento certo para perguntar a alguém por que vai se casar com a pessoa que o mandou matar?
Provavelmente não.
Não sei como Jesse achava que iria impedi-la, se ela voltasse. Certo, ele estava morto havia muito mais tempo do que ela, por isso, tinha um pouco mais de prática no negócio de ser fantasma. Na verdade parecia bem provável que esta tivesse sido a primeira visita de Maria de volta a este mundo, vinda do plano espiritual que habitava desde a morte. Quanto mais tempo alguém passa como fantasma, mais poderoso costuma ficar.
Claro, a não ser que, como Maria, o dito-cujo esteja cheio de fúria.
Mas Jesse e eu, juntos, tínhamos lutado com fantasmas tão furiosos quanto Maria e vencemos. Venceríamos desta vez também, eu sabia, desde que ficássemos juntos.
Sem dúvida era estranho ir dormir sabendo que alguém ficaria sentado, vigiando seu sono. Mas depois de me acostumar com a idéia, era legal saber que ele estava ali, com Spike, no sofá-cama, lendo à luz de seu próprio brilho espectral um livro chamado Mil anos, que ele havia achado no quarto de Mestre. Teria sido mais romântico se ele simplesmente ficasse olhando meu rosto, cheio de desejo, mas a cavalo dado não se olham os dentes, e quantas outras garotas que você conhece têm caras perfeitamente dispostos a ficar sentados no quarto delas, vigiando a noite toda para que invasores malignos não entrem? Aposto que você não pode citar nenhuma.
Acho que por fim devo ter caído no sono, já que quando abri os olhos de novo era de manhã, e Jesse ainda estava lá. Tinha acabado Mil anos e tinha passado para um livro da minha estante, chamando As pontes de Madison, que ele parecia achar tremendamente divertido, ainda que tentasse não rir alto a ponto de me acordar.
Meu Deus, que constrangedor.
Nesse momento não percebi que era última vez que iria vê-lo.

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