Capítulo 7 > (Hora mais sombria)

A partir daí meu dia despencou morro abaixo.
Acho que, mesmo não estando interessada em renovar o contato com o ex, Maria continuava bem interessada em me torturar. Tive a primeira impressão disso quando abri a geladeira e peguei a caixa de nova de suco de laranja que alguém havia comprado para substituir a que Dunga e Soneca tinham esvaziado na véspera.
Tinha acabado de abri-la quando Dunga entrou, arrancou-a da minha mão e levou aos lábios.
Comecei a falar “Ei”, numa voz irritada, mas logo a palavra se transformou num guincho de nojo e terror quando o que jorrou na boca de meu meio-irmão não foi suco, e sim insetos.
Centenas de insetos. Milhares de insetos. Insetos vivos, retorcendo-se, arrastando-se e caindo de sua boca aberta.
Uma fração de segundo depois Dunga percebeu o que estava acontecendo. Jogou a caixa no chão e correu para a pia, cuspindo o máximo de besouros pretos tinham caído em sua boca. Enquanto isso eles continuavam correndo aos montes pelas laterais da caixa e indo para o chão.
Não sei como consegui juntar força interior para fazer o que fiz em seguida. Se há uma coisa que eu odeio são insetos. Depois de sumagre venenoso, é um dos principais motivos para eu passar tão pouco tempo ao ar livre. Quero dizer, não me incomodo com uma formiga na piscina se afogando ou uma borboleta pousando no meu ombro, mas mostre um mosquito ou, que Deus não permita, uma barata, e saio correndo pela porta.
Mesmo assim, apesar do medo quase paralisante de qualquer coisa menor que um amendoim, peguei aquela caixa, derramei o conteúdo na pia e, mais rápido do que você pode dizer Raid, liguei o triturador.
- Ah, meu Deus! – estava gritando Dunga. – Ahmeudeuscacete.
Só que ele não disse cacete. Nas circunstâncias, não o culpei.
Nossos gritos tinham trazido Soneca e meu padrasto para a cozinha. Eles só ficaram parados olhando para as centenas de besouros pretos que tinham escapado da morte no triturador da cozinha e corriam pelos ladrilhos de cerâmica. Pelo menos até que eu gritei:
- Pisem neles!
Então começamos a pisar no máximo daquelas coisas nojentas que pudemos.
Quando terminamos, só uns poucos se livraram, os que tiveram o bom senso de correr para o espaço sob a geladeira e um ou dois que haviam chegado à porta de vidro que dava no deque. Tinha sido um trabalho árduo e nojento, e todos ficamos ali ofegando... mesmo Dunga, que, com um gemido, correu para o banheiro, presumivelmente para lavar a boca com Listerine, ou talvez verificar alguma antena que pudesse ter ficado presa entre os dentes.
- Bem – disse Andy quando expliquei o que tinha acontecido. – É a última vez que compro suco orgânico.
O que foi meio engraçado, de um modo doentio. Só que por acaso eu sabia que, orgânico ou concentrado congelado, não teria feito diferença: um poltergeist estivera agindo.
Andy olhou a bagunça no chão e disse numa voz meio atordoada:
- Temos de limpar isso antes de sua mãe chegar.
Estava certo. Você acha que eu tenho uma coisa com insetos? Deveria ver minha mãe. Nenhuma das duas é o que você poderia chamar de amantes da natureza.
Partimos para o trabalho, passando pano e arrancando entranhas de inseto dos ladrilhos, enquanto eu fazia sugestões sutis de que por enquanto comprássemos todas as refeições para viagem. Não tinha certeza se Maria havia posto a mão em mais alguma coisa, mas suspeitava de que nada no armário ou na geladeira seria seguro.
Andy estava disposto a concordar, falando sobre como as infestações por insetos podiam acabar com plantações inteiras, e em quantas casas destruídas por cupins ele havia trabalhado, e como era importante fumigar a casa regularmente.
Mas eu queria dizer que fumigação não adianta quando os insetos são resultado de um fantasma vingativo.
Mas, claro, não falei. Duvido tremendamente de que ele teria entendido. Andy não acredita em fantasmas.
Deve ser bom ter esse luxo.
Quando Soneca e eu finalmente fomos para o trabalho, pareceu brevemente que as coisas estavam melhorando, já que não tivemos problema pelo atraso. Claro, porque Soneca estava saindo com Caitlin escravizada. Veja bem, há algumas vantagens em ter meios-irmãos.
Nem parecia haver alguma reclamação dos Slater porque tirei Jack do hotel sem permissão, já que me mandaram ir direto à suíte deles. Isso é bom demais para ser verdade, pensei enquanto seguia pelos corredores acarpetados do hotel, e só mostra como por trás de cada nuvem há uma fatia de céu azul.
Pelo menos era o que estava pensando quando bati à porta. Mas quando ela se abriu, revelando não apenas Jack, mas os dois irmãos Slater usando short de banho, comecei a ter dúvidas.
Jack ficou me batendo como um gatinho numa bola.
- Adivinha só! – gritou ele. –Paul não vai jogar golfe nem tênis nem nada hoje. Quer passar o dia inteiro com a gente. Não é incrível?
- Ah. É. Incrível.
O Dr. e a Sra. Slater passaram por nós, com as roupas de golfe.
- Divirtam-se, crianças – gritou Nancy. – Suze, nós teremos aulas o dia inteiro. Fique até as cinco, certo? – Então, sem esperar resposta, falou: - É isso aí, tchau. – Pegou o marido pelo braço e saiu.
“Certo”, falei comigo mesmo. “Posso cuidar disso” Já cuidei de um enxame de insetos. Quero dizer, apesar de algumas vezes achar que estava sentindo um deles se arrastando na pele e dar o maior pulo – só para descobrir que era o cabelo ou alguma outra coisa -, tinha me recuperado bastante bem. Provavelmente muito melhor do que Dunga jamais se recuperaria.
Por isso certamente podia cuidar de Paul Slater me picando o dia inteiro. Quero dizer, me incomodando.
Certo? Sem problema.
Só que havia problema. Porque Jack queria ficar falando sobre o negócio de ser mediador, e eu ficava murmurando para ele calar a boca, e ele dizia:
- Ah, tudo bem, Suze, o Paul sabe.
E esse era o ponto. Paul não deveria saber. Esse deveria ser nosso segredo, meu e de Jack. Não queria que o Paul estúpido, incrédulo, tipo “se você não sair comigo eu entrego você”, fizesse parte disso. Em especial porque, a cada vez que Jack falava algo a respeito, Paul baixava os óculos Armani e me olhava por cima da armação, cheio de expectativa, esperando ouvir o que eu ia responder.
O que eu poderia fazer? Fingi que não sabia do que Jack estava falando. O que era frustrante para ele, claro, mas o que mais eu deveria fazer? Não queria que Paul soubesse dos meus negócios. Quero dizer, nem minha mãe sabe. Por que, afinal, eu iria contar ao Paul?
Felizmente, depois das primeiras seis ou sete vezes em que Jack tentou falar alguma coisa relacionada à mediação e eu o ignorei, ele pareceu captar a mensagem e calou a boca. O fato de que a piscina tinha ficado apinhada de outras crianças e seus pais e babás ajudou, por isso ele tinha bastante coisa com que se distrair.
Mesmo assim foi um tanto irritante, ali encostada na beira da piscina com Kim, que tinha aparecido com seus pupilos, olhar para o Paul de vez em quando e vê-lo esticado numa espreguiçadeira, o rosto virado na minha direção. Sobretudo porque eu sentia que Paul, diferentemente de Soneca, estava totalmente acordado por trás das lentes escuras dos óculos.
Além do mais, como disse Kim:
- Ei, se um gato como aquele quiser me olhar, pode ficar à vontade.
Mas, claro, para Kim é diferente. Ela não tem o fantasma de um gato de 150 anos morando em seu quarto.
No total, eu diria que a manhã foi bastante medonha, pensando bem. Achei que depois do almoço o dia só poderia melhorar.
E como estava errada! Foi depois do almoço que os policiais apareceram.
Eu estava deitada numa espreguiçadeira, sozinha, com um olho em Jack, que estava num espalhafatoso jogo de Marco Polo com as crianças de Kim, e outro em Paul, que fingia ler um exemplar do The Nation, mas que, como observou Kim, estava nos espionando por cima das paginas, quando Caitlin apareceu, visivelmente perturbada, seguida por dois membros grandalhões da polícia de Carmel.
Presumi que estivessem meramente passando a caminho do banheiro masculino, onde de vez em quando surgia um armário arrombado. Imagina minha enorme surpresa quando Caitlin levou os policiais direto até mim e disse em voz trêmula:
- Esta é Suzannah Simon, senhores.
Vesti correndo meu short odioso enquanto Kim, na espreguiçadeira ao lado, olhava boquiaberta para os policiais como se eles fossem tritões saídos do mar, ou algo do tipo.
- Srta. Simon – disse o policial mais alto. – Gostaríamos de trocar uma palavra com você um momento, se não se importa.
Já tive mais do que minha cota de policiais na vida. Não porque eu ande com gangues, como Soneca gosta de pensar, mas porque na mediação a gente costuma ser obrigada a... bem, a violar a lei um pouquinho.
Por exemplo: digamos que Marisol não entregasse o tal rosário à filha de Jorge. Bem, para realizar o último desejo de Jorge eu seria obrigada a invadir a casa de Marisol, pegar o rosário e mandar pelo correio para Teresa, anonimamente. Qualquer um pode ver que uma coisa assim, que é realmente para o bem maior no vasto esquema das coisas, poderia ser mal interpretada pelos policiais como sendo um crime.
De modo que, sim, o fato é que fui levada diante dos policiais várias vezes, para consternação de minha mãe. Mas, com exceção daquele infeliz acidente que me deixou no hospital há alguns meses, nos últimos tempos não tinha feito nada, pelo que podia pensar, que ao menos remotamente pudesse ser considerado ilegal.
Portanto, foi com alguma curiosidade, mas pouco nervosismo, que acompanhei os policiais – Knightley e Jones – para fora da área da piscina, até atrás da churrascaria Pool House, perto das lixeiras, a área mais próxima, acho, onde os policiais achavam que teríamos privacidade total para a conversinha.
- Srta. Simon – começou o policial Knightley, o mais alto, enquanto eu olhava um lagarto sair correndo da sombra de rododentro ali perto, olhar para nós alarmado e depois voltar correndo para a sombra. – A senhorita conhece o Dr. Clive Clemmings?
Fiquei chocada ao admitir que sim. A última coisa que eu esperava que o policial Knightley mencionasse era o Dr. Clive Clemmings, Ph.D. Estava pensando em algo mais do tipo... ah, não sei, levar um menino de oito anos para fora do hotel sem a permissão dos pais.
Sei que é idiotice, mas Paul realmente havia me irritado com aquilo.
- Por quê? – perguntei. – Ele, o Sr. Clemmings, está bem?
- Infelizmente não – disse o policial Jones. – Está morto.
- Morto? – Senti vontade de me segurar em alguma coisa. Infelizmente não havia nada, a não ser a lixeira, e como ela estava cheia dos restos do almoço, não quis tocá-la.
Preferi afundar no meio-fio.
Clive Clemmings? Minha mente estava disparando. Clive Clemmings morto? Como? Por quê? Eu não tinha gostado de Clive Clemmings, claro. Quando o corpo de Jesse aparecesse, eu esperava poder voltar à sua sala e esfregar isso na cara dele. Você sabe, a parte de Jesse ter sido assassinado e coisa e tal.
Só que, agora, pelo jeito não teria chance.
- O que aconteceu? – perguntei, olhando pasma para os policias.
- Não sabemos exatamente – disse o policial Jones. – Ele foi achado hoje cedo, sentado à mesa na sociedade histórica, morto, aparentemente de ataque cardíaco. Segundo o livro de assinaturas da recepção, você foi uma das poucas pessoas que o viram ontem.
Só não me lembrei de que a mulher atrás do balcão tinha feito com que eu assinasse o livro. Droga!
- Bem – falei entusiasmada, mas esperava que não entusiasmada demais. – Ele estava ótimo quando conversamos.
- É – disse o policial Jones. – Sabemos disso. Não é por causa da morte do Dr. Clemmings que viemos.
- Não?
Espera um minuto. O que estava acontecendo?
- Senhorita Simon, - disse o policial Jones – Quando o Dr. Clemmings foi encontrado esta manhã, também foi descoberto que um artigo de valor particular para a Sociedade Histórica estava faltando. Algo que você aparentemente olhou com o Dr. Clemmings ontem.
As cartas. As cartas de Maria. Elas sumiram. Elas têm que ter sumido.

Ela havia aparecido e levado todas, e de algum modo Clive Clemmings tinha visto Maria e sofreu um ataque cardíaco pelo choque de ver a mulher do retrato que ficava atrás de sua mesa andando pela sala.
- Uma pequena pintura. – O policial Knightley teve de olhar o bloco de anotações. – Uma miniatura de alguém chamado Hector de Silva. A recepcionista, a Srta. Lampbert, disse que o dr. Clemmings contou que você estava particularmente interessada nela.
Essa informação, tão inesperada, me chocou. O retrato de Jesse? Mas quem poderia ter apanhado aquilo? E por que?
Não precisei fingir inocência pela primeira vez, quando gaguejei:
- Eu... eu olhei a pintura, sim. Mas não peguei, nem nada. Quero dizer, quando saí, o sr... o dr. Clemmings estava guardando-a.
Os policiais Knightley e Jones trocaram olhares. Mas antes que pudessem dizer mais alguma coisa, alguém apareceu no canto da churrascaria.
Era Paul Slater.
- Há algum problema com a babá do meu irmão, senhores? – perguntou numa voz entediada que sugeria, ao menos para mim, que o empregados da família Slater costumavam ser arrastados para interrogatório por membros da polícia.
- Com licença – disse o policial Knightley -, assim que terminarmos de interrogar esta testemunha...
Paul tirou os óculos escuros e rosnou:
- Vocês sabem que a Srta. Simon é menor de idade? Não deveriam estar interrogando-a na presença dos pais?
O policial Jones piscou algumas vezes.
- Perdão, é... senhor – começou ele, mesmo estando claro que não considerava Paul um senhor, vendo que o cara tinha menos de 18 e coisa e tal. – Esta senhorita não está sendo presa. Só estamos fazendo algumas per...
- Se ela não está sendo presa – disse Paul rapidamente -, não precisa falar com os senhores, não é?
Os policiais Knightley e Jones se entreolharam de novo. Então o policial Knightley respondeu:
- Bem, não. Mas houve uma morte e um roubo, e temos motivo para acreditar que ela pode ter informações...
Paul me olhou.
- Suze, esses senhores leram seus direitos?
- Ah... não.
- Você quer falar com eles?
- Ah – falei, olhando nervosa do policial Knightley para o policial Jones, e depois de volta. – Na verdade, não.
- Então não precisa.
Paul se inclinou e segurou meu braço.
- Diga adeus aos bons policiais. – E me puxou de pé.
Olhei para os policiais.
- Ah – falei a eles. – Sinto muito saber que o dr. Clemmings está morto, mas juro que não sei o que aconteceu com ele, nem com a pintura. Tchau.
Então deixei Paul Slater me puxar de volta para a piscina.
Normalmente não sou tão dócil, mas preciso dizer que estava em choque. Talvez fosse empolgação “apósserinterrogadapelapolíciamasnãoserlevadaadelegacia”, mas assim que estávamos fora das vistas dos policiais Knightley e Jones, girei e agarrei o pulso de Paul.’
- Certo – falei. – O que foi aquilo?
Paul tinha posto os óculos escuros de volta, por isso era difícil ler a expressão de seus olhos, mas acho que ele estava achando divertido.
- Aquilo o que?
- Aquilo tudo – falei assentindo para os fundos da churrascaria. – O negócio do mocinho resgatando a mocinha. Corrija se estou errada, mas não foi ontem mesmo que você ia me entregar às autoridades? Ou pelo menos me dedurar a minha chefe?
Paul deu de ombros.
- É. Mas um certo alguém me disse que é possível pegar mais moscas com mel do que com vinagre. Na hora só me senti meio chateada por ser chamada de mosca. Não me ocorreu imaginar quem seria o “alguém”.
Mas não demorei muito para descobrir.

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