Certo, não sei se algum de vocês já perdeu a consciência antes, então deixe eu dizer rapidinho: Não faça isso. Verdade. Se puder evitar situações em que possa perder a consciência, por favor evite. Faça qualquer coisa mas não apague. Confie em mim. Não é divertido. Não é nem um pouco divertido.
A não ser, é claro, que haja a garantia de acordar com um boca-a-boca feito por um salva-vidas californiano gatésimo. Nesse caso eu digo: vai fundo.
Essa foi a minha experiência quando abri os olhos naquela tarde na praia de Carmel. Num segundo estava enchendo os pulmões de água salgada, e no outro estava com os lábios grudados em Brad Pitt. Ou pelo menos alguém muito parecido com ele.
Será que este é o meu verdadeiro amor?, perguntei a mim mesma, com o coração a mil.
Então os lábios se separaram dos meus e eu vi que não era meu amor verdadeiro, e sim o salva-vidas, com o cabelo louro e comprido caindo molhado em volta do rosto moreno. A pele em volta dos olhos se franziu preocupada (a devastação causada pelo sol; ele deveria ter usado Coppertone) enquanto perguntava:
- Moça? Moça, está ouvindo?
- Suze - escutei uma voz familiar dizendo. Seria Gina? Mas o que Gina estava fazendo na Califórnia? - O nome dela é Suze.
- Suze - disse o salva-vidas, dando uns tapinhas bem fortes nas minhas bochechas. - Pisque se estiver entendendo.
Este não podia ser meu amor verdadeiro, pensei. Parece achar que eu sou uma imbecil. Além do mais, por que fica me batendo?
- Ah, meu Deus. - A voz de Cee Cee estava mais aguda do que o usual. - Ela está paralisada?
Para provar que eu não estava paralisada comecei a me sentar.
E imediatamente percebi que fora uma péssima decisão.
Acho que só vomitei uma vez. Dizer que eu botei os bofes para fora como o Vesúvio é um tremendo exagero da parte de Dunga. É verdade que um monte de água do mar saiu da minha boca quando tentei me sentar. Mas felizmente evitei vomitá-la em cima de mim e do salva-vidas, jogando a maior parte direitinho na areia ao lado.
Depois de vomitar me senti muito melhor.
- Suze! - Gina, que subitamente lembrei que tinha vindo à Califórnia me visitar, estava de joelhos ao meu lado. - Você está legal? Fiquei tão preocupada! Você estava ali deitada, imóvel...
Soneca foi muito menos simpático.
- Que diabo você estava pensando? Pamela Anderson morreu e deixou uma vaga em S.O.S. Malibu, ou alguma coisa assim?
Olhei todos os rostos ansiosos em volta. Verdade, não fazia idéia de que tantas pessoas se importavam. Mas ali estavam Gina, Cee Cee, Adam, Dunga, Soneca, alguns de seus amigos surfistas e turistas tirando fotos da garota que se afogou de verdade, e Michael e...
Michael. Meu olhar saltou de volta para ele. Michael, que estava correndo tanto perigo e mal parecia notar. Michael que, parado e pingando acima de mim, parecia inconsciente do fato de que em volta de sua garganta havia um grande inchaço vermelho onde a alga havia lanhado sua pele. Ela parecia dolorosamente inflamada.
- Estou bem - falei, e tentei ficar de pé.
- Não - disse o salva-vidas. - Uma ambulância está vindo. Fique aí até que os caras do resgate médico façam um exame.
- Hã... Não, obrigada.
Então me levantei e fui em direção à minha toalha, que continuava onde eu tinha deixado mais adiante na praia, perto da de Gina.
- Moça - disse o salva-vidas, correndo atrás de mim. - Você ficou inconsciente. Quase se afogou. Tem de ser examinada pelo resgate médico. É o procedimento.
- Você deveria deixar que eles examinassem você, Suze - disse Cee Cee correndo ao meu lado. - Rick disse que acha que você e Michael podem ter sido vítimas de uma caravela, sabe? Uma água-viva gigante.
Pisquei.
- Rick? Quem é Rick?
- O salva-vidas - disse Cee Cee exasperada. Parece que, enquanto eu estava inconsciente, todo mundo havia se conhecido. - Por isso ele mandou pendurar a bandeira amarela.
Franzi os olhos e vi a bandeira amarela desfraldada acima da cadeira do salva-vidas. Em geral ela era verde, a não ser quando havia correntezas extremamente fortes, mas agora era de um amarelo luminoso, avisando aos banhistas para tomar cuidado na água.
- Puxa, olha só o pescoço do Michael - continuou Cee Cee. Olhei para o pescoço dele, obedientemente.
- Rick disse que quando chegou lá havia uma coisa enrolada no meu pescoço - disse Michael. Percebi que ele não me encarava. - Ele disse que a princípio achou que fosse uma lula gigante. Mas não podia ser, claro. Nunca foi vista uma tão ao norte. Por isso achou que devia ser uma caravela.
Não falei nada. Tinha quase certeza de que Rick acreditava mesmo que Michael fora vítima de uma caravela. A mente humana é capaz de qualquer coisa para acreditar em tudo, menos na verdade: que pode haver alguma outra coisa lá fora, algo inexplicável... algo que não é exatamente normal.
Algo paranormal.
Assim, a corda de alga que fora enrolada no pescoço de Michael se tornou o braço de uma lula gigante, e depois o tentáculo peçonhento de uma água-viva. Certamente não poderia ser o que parecia: um pedaço de alga sendo usado com intenção mortal por um par de mãos invisíveis.
- E olha os seus tornozelos - disse Cee Cee.
Olhei. Em volta dos dois tornozelos havia marcas vermelhas, parecendo de corda. Só que não eram marcas de corda. Eram os lugares onde Felicia e Carrie tinham me agarrado, tentando me arrastar para o fundo do oceano e para a morte certa.
Aquelas garotas estúpidas precisavam de uma manicure, e muito.
- Você teve sorte - disse Adam. - Eu já fui picado por uma caravela, e dói pra...
Sua voz ficou no ar quando ele viu Gina escutando atentamente. Gina, que tinha quatro irmãos, certamente já ouvira todo palavrão que há no mundo, mas Adam era cavalheiro demais para falar algum na frente dela.
- Caramba - terminou ele. - Mas vocês não parecem ter sido muito machucados. Bem, a não ser pelo negócio de quase se afogarem.
Estendi a mão para a toalha e fiz o máximo para tirar a areia que me cobria inteira. O que aquele salva-vidas tinha feito, afinal? Me arrastado pelo chão?
- Bem - falei. - Agora eu estou bem. Não me machuquei.
Soneca, que tinha me seguido como todo mundo, reagiu exasperado:
- Não está bem, Suze. Faça o que o salva-vidas mandou. Não me obrigue a ligar para mamãe e papai.
Olhei-o, surpresa. Não porque estivesse furiosa com a ameaça de me dedurar, mas porque ele tinha chamado minha mãe de mamãe. Soneca nunca fizera isso antes. A mãe dos meus meios-irmãos tinha morrido há anos e anos.
Bem, pensei. Ela é a melhor mãe do mundo.
- Ligue - falei. - Não me importo.
Vi Soneca e o salva-vidas trocarem olhares significativos. Corri para pegar minhas roupas e comecei a vesti-las por cima do biquíni molhado. Não estava tentando bancar a difícil. Sério, não estava. Só que não podia me dar ao luxo de uma viagem ao hospital, com as três horas que isso me faria perder. Nessas três horas tinha quase certeza de que os Anjos da RLS fariam outro ataque contra Michael... e eu não poderia deixá-lo, em sã consciência, à mercê das tramas deles.
- Não vou levar você para casa a não ser que você deixe o pessoal do resgate médico examinar você primeiro - disse Soneca, cruzando os braços diante do peito, um gesto que fez a borracha de sua roupa de mergulho chiar audivelmente.
Virei-me para Michael, que pareceu extremamente surpreso quando perguntei com educação:
- Michael, você se importaria de me levar para casa?
Agora ele não pareceu ter problema em me encarar. Seus olhos se arregalaram por trás dos óculos - evidentemente os havia encontrado largados na minha toalha - e ele gaguejou:
- C...claro!
Isso fez o salva-vidas balançar a cabeça insatisfeito e ir embora. Todos os outros ficaram parados em volta, me olhando como se eu fosse demente. Gina foi a única que chegou perto enquanto eu pegava os livros e me preparava para acompanhar Michael até onde seu carro estava estacionado.
- Nós duas vamos ter uma boa conversa quando você chegar em casa - disse ela.
Olhei-a com o que esperei que fosse uma expressão inocente. Os últimos raios do sol tinham feito sua aura de cabelos cor de cobre brilhar como uma auréola.
- O que você quer dizer com isso?
- Você sabe o que eu quero dizer - disse ela, com um olhar expressivo.
E então ela se virou e voltou para onde Soneca estava me olhando preocupado.
A verdade é que eu sabia o que ela queria dizer. Gina estava falando de Michael. O que eu estava fazendo? Brincando com um garoto como ele, que obviamente não era meu verdadeiro amor?
Mas o fato é que eu não podia contar a ela. Não podia contar que Michael estava sendo perseguido por quatro fantasmas com intenções assassinas, e que meu dever sagrado como mediadora era protegê-lo.
Se bem que, considerando o que aconteceu mais tarde naquela noite, provavelmente deveria ter contado.
- Precisamos conversar - falei assim que Michael ligou o carro. Era de novo a perua de sua mãe. Michael explicou que o dele ainda estava na oficina.
Agora que estava de novo com os óculos e as roupas, Michael nem de longe era o intimidante espécime masculino que pareceu ser sem eles. Como o Super-homem vestido de Clark Kent, ele tinha voltado a ser um nerd gaguejante.
Só não pude deixar de ver que, enquanto gaguejava, ele preenchia muito bem aquele suéter.
- Conversar? - Ele segurou o volante com força enquanto entrávamos no que, para Carmel, significava o tráfego da hora do rush: um único ônibus de turismo e um Volkswagen cheio de pranchas de surfe. - S... sobre o quê?
- Sobre o que aconteceu com você neste fim de semana.
Michael virou a cabeça rapidamente para me olhar, depois, de modo igualmente rápido, virou-se de novo para a estrada. - O... o que você q...quer dizer?
- Qual é, Michael! - Achei que não havia sentido em ser gentil. Era como um Band-Aid que precisava ser arrancado: ou você fazia isso com uma lentidão agonizante ou ia com tudo, bem depressa. - Eu sei sobre o acidente.
Finalmente o ônibus de turismo começou a andar. Michael pisou no acelerador.
- Bem - falou depois de um minuto, com um sorriso torto no rosto, apesar de manter o olhar na estrada. - Você não deve me culpar muito, senão não teria pedido carona.
- Culpar de quê?
- Quatro pessoas morreram naquele acidente. - Michael pegou uma lata de Coca pela metade no suporte de copos entre os bancos. - E eu ainda estou vivo. - Ele tomou um gole rápido e pôs a lata de volta no lugar. - Faça o seu julgamento.
Não gostei do seu tom de voz. Não porque fosse de autopiedade. Porque não era. Parecia hostil. E notei que ele não estava mais gaguejando.
- Bem - falei com cuidado. Como disse, o padre Dominic é que é bom de diálogo. Eu sou mais o lado musculoso de nossa família mediadora. Sabia que estava me aventurando em águas profundas e turvas, se você perdoar a piada de mau gosto.
- Li hoje no jornal que seu teste do bafômetro deu negativo para álcool - falei cautelosamente.
- E daí? - explodiu Michael, me espantando um pouco. - O que isso prova?
Pisquei para ele.
- Bem, que pelo menos você não estava dirigindo bêbado.
Ele pareceu relaxar um pouco.
- Ah. - Depois me perguntou hesitante: - Você quer...
Olhei-o. Estávamos seguindo pelo litoral. E o sol, afundando na água, tinha pintado tudo em laranja brilhante ou em sombras profundas. A luz refletida nos óculos de Michael tornava impossível ler sua expressão.
- Você quer ver onde a coisa aconteceu? - perguntou ele de repente, como se quisesse pôr as palavras para fora antes de mudar de idéia.
- Ah, claro. Se você estiver com vontade de mostrar.
- Estou. - Ele virou o rosto para me olhar, mas de novo não pude ver seus olhos por trás das lentes. - Se você não se importar. É esquisito, mas... eu realmente acho que você pode entender.
Ha!, pensei presunçosa. Engula essa, padre Dom! Toda essa sua birra porque eu sempre bato primeiro e falo depois. Bem, olhe só para mim agora!
- Por que você fez aquilo? - perguntou Michael abruptamente, interrompendo meus parabéns a mim mesma.
Lancei um olhar espantado na sua direção.
- Fiz o quê? - Genuinamente não fazia a mínima idéia do que o cara estava falando.
- Entrou na água atrás de mim - disse ele na mesma voz baixa.
- Ah. - Pigarreei. - Aquilo. Bem, veja só, Michael...
- Não faz mal.
Quando o olhei de novo vi que ele estava sorrindo.
- Não se preocupe - disse Michael. - Não precisa me dizer. Eu sei. - Sua voz baixou uma oitava. Olhei-o alarmada. - Eu sei.
E então ele passou a mão por cima da Coca-cola aninhada no suporte de copos entre os bancos e pôs a mão direita em cima da minha esquerda.
Ah, meu Deus! Senti o estômago se revirar outra vez, como tinha acontecido na praia.
Porque subitamente tudo estava claro. Michael Meducci não tinha simplesmente uma quedinha por mim. Ah, era muito, muito pior do que isso:
Michael Meducci acha que eu tenho uma quedinha por ele.
Michael Meducci acha que eu tenho mais do que simplesmente uma quedinha por ele. Michael Meducci acha que estou apaixonada por ele.
Eu tinha apenas uma coisa para dizer, e como não podia dizer em voz alta, falei dentro da cabeça:
EEEECA!
Digo, ele pode ter ficado bonito na roupa de banho e coisa e tal, mas Michael Meducci ainda não era exatamente...
Bem, Jesse.
E é assim que minha vida amorosa vai ser de agora em diante, não é?, pensei com um suspiro.
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