Quando Shasta transpôs o portão, viu à sua frente um declive coberto de grama e de pequenas urzes, que
ia dar numas árvores. Naquele momento não conseguia pensar em nada, não dava para fazer
planos: o importante era correr. Às vezes tropeçava e por pouco não torceu o tornozelo nas pedras soltas. As matas tornavam-se mais fechadas e o sol se fora, mas nem por isso o calor diminuíra. Era um desses dias em que os mosquitos parecem multiplicar-se. Cobriam a cara de Shasta, que nem se dava ao trabalho de
espantá-los.
Tataratatá!
O menino ouviu de repente um som alegre de trompas. Daí a pouco já se achava numa grande
clareira, no meio de uma multidão. Para ele, pelo menos, pareceu uma multidão. Eram só quinze ou
vinte cavalheiros em trajes de caça, com suas montarias. No centro, alguém segurava o estribo para
que outro montasse. E este outro era um rei, o rei mais jovial, mais gordinho, mais cara-de-maçã, mais piscapisca que se pode imaginar.
O rei desistiu logo de montar quando Shasta apareceu. Estendeu os braços para o menino e o seu
rosto se iluminou, ao gritar, com uma profunda voz de baixo:
- Corin! Meu filho! Descalço... e em farrapos! O que...
- Príncipe Corin, não - disse Shasta ofegante. - Pareço... sei... com ele... encontrei Sua Alteza em
Tashbaan... manda lembranças...
O rei contemplava Shasta com uma expressão de extraordinário espanto.
- É o rei Luna? - Não esperou resposta: - Senhor rei... vá voando para Anvar... feche as portas da
cidade... inimigos... Rabadash com duzentos cavalos.
- Tem certeza disso, rapaz? - perguntou um outro cavalheiro.
- Vi com os meus próprios olhos. Vim correndo na frente desde Tashbaan.
- A pé? - perguntou o cavalheiro, enrugando um pouco a testa.
- Cavalos... com o eremita - respondeu Shasta.
- Chega de perguntas, Darin - disse o rei Luna. - Vejo pela carinha dele que está falando a verdade.
Vamos montar. Arranjem um cavalo para o rapaz.
Sabe galopar, meu amigo?
Em resposta, Shasta meteu o pé no estribo, logo que lhe trouxeram o cavalo, e pulou para a sela. Fizera
isso com Bri umas cem vezes nas últimas semanas. Já não parecia um saco de feno.
Ficou contente ao ouvir o lorde Darin falar para o rei:
- O rapaz tem a postura de um verdadeiro cavaleiro, Majestade. Garanto que tem sangue nobre.
- O sangue dele, aí é que está a questão - respondeu o rei, fixando os olhos em Shasta, com
aquela curiosa e ansiosa expressão.
- Movimentaram-se todos. Se a postura de Shasta era correta, o freio o atrapalhava, pois jamais
usara aquilo quando no dorso de Bri. Com o rabo do olho viu o que os outros faziam (como a gente faz
num banquete, quando não sabe qual faca ou garfo deve usar). Mas nem mesmo ousava dirigir o cavalo;
sabia que este seguiria os outros. Embora não fosse um cavalo falante, o animal tinha bastante inteligência
para perceber que o garoto não usava chicote nem esporas e que não era de todo senhor da situação.
Shasta acabou fechando a fila.
Respirando bem, sem mosquitos, missão cumprida, pela primeira vez (desde a chegada a Tashbaan,
há tanto tempo!) começava a divertir-se.
Estranhou por não ver no alto os picos das montanhas, pois nunca estivera numa região
montanhosa. “São nuvens, já sei. Aqui nas montanhas estamos no céu. Quero saber como é dentro de uma
nuvem. Que gozado!” O sol estava quase sumindo à esquerda.
Seguiam por uma estrada áspera, em boa velocidade. A certa altura, entraram no nevoeiro, ou o
nevoeiro veio para cima deles. Ficou tudo cinzento. O cinzento foi virando pardo com alarmante rapidez.
À frente da coluna, de quando em quando, soava a trompa, e a cada vez o som parecia vir de mais
longe. Shasta por um instante não viu os outros, esperando que, ao fazer a curva, os descobrisse. Pois
fez a curva e não viu nada. O cavalo ia a passo.
“Vamos, cavalinho, vamos!” Ouviu então a trompa, muito fraca. Tinha a impressão de que alguma coisa
horrorosa aconteceria se cutucasse um cavalo com os calcanhares. Mas parecia o momento de tentar.
- Escute uma coisa, cavalinho: se você não correr, meto meus calcanhares na sua barriga!
O cavalo não tomou conhecimento da ameaça.
Shasta firmou-se na sela, agarrou-se com os joelhos, cerrou os dentes e tacou os calcanhares no cavalo com
toda a força.
Resultado: o cavalo troteou, ou coisa parecida, cinco ou seis passos, e voltou à boa vida. Já estava
escuro. “Teriam esquecido de tocar a trompa?, pensou. “Bem, de qualquer forma, mesmo a passo
devemos chegar a algum lugar. Só espero que nesse lugar não esteja Rabadash com a sua gente.”
Começou a sentir raiva daquele cavalo; e também começou a sentir fome. Estava chegando a
um ponto em que a estrada fazia uma bifurcação. Qual seria o caminho de Anvar? Foi quando ouviu um
barulho pelas costas, um ruído de cavalos a trote. “É Rabadash!”, pensou. “Que estrada devo pegar? Se eu tomar uma, ele pode pegar a outra; mas, se fico aqui na encruzilhada, eu é que vou ser pego.” Apeou e
conduziu o cavalo pelo caminho da direita.
Aproximava-se o som da cavalhada. Já deviam estar na encruzilhada. Com a respiração presa, ficou
aguardando. Que caminho tomariam?
Ouviu um brado: “Alto!” Depois, ruídos cavalares, ventas assoprando, cascos golpeando,
tapinhas em pescoços. E uma voz falou:
- Atenção! Já estamos perto do castelo.
Lembrem-se das instruções. Devemos chegar a Nárnia ao nascer do sol; matem o menos possível. Nesta
incursão, um litro de sangue narniano é mais precioso que três litros do seu próprio sangue. Nesta incursão,
eu disse! Os deuses hão de propiciar-nos uma hora mais feliz, aí vocês não deixarão nada vivo entre Cair
Paravel e o Deserto do Oeste. Mas ainda não chegamos a Nárnia. É diferente aqui em Arquelândia.
Só a rapidez importa no assalto ao castelo do rei Luna.
Será meu, dentro de uma hora. Mostrem o seu valor.
O castelo será de vocês. Nada quero da pilhagem.
Executem todos os machos bárbaros dentro das muralhas, até mesmo os recém-nascidos, e o resto será
de vocês: mulheres, ouro, jóias, armas e vinho. O homem que hesitar ao cruzar as portas do castelo será
queimado vivo. Em nome de Tash, o irresistível, o inexorável -em frente!
Com grande estrépito, a coluna adiantou-se e Shasta pôde respirar: tinham tomado o outro caminho.
Levaram um tempo enorme para passar, pelo menos era o que parecia, e só então Shasta realmente
compreendeu o que significavam “duzentos cavalos”.
Quando o estrépito desapareceu, só ficou o doce barulho das ramagens.
Sabia o caminho para Anvar, mas não podia ir para lá. Seria correr para os braços armados dos
homens de Rabadash. “Que diabo de coisa posso fazer?” Não tendo resposta para si mesmo, montou de
novo e seguiu pela estrada que havia escolhido, na vaga esperança de encontrar uma cabana na qual
pudesse pedir abrigo e comida. Lembrou-se, é claro, de retornar à casa do eremita, mas já não tinha a
menor idéia da direção. A estrada deveria ir para algum lugar.
Sim, mas isso depende do que chamamos de algum lugar. A estrada no caso seguia entre as matas
mais espessas, sempre mais frias. Ventos gelados continuavam a impelir blocos de névoa sobre Shasta
sem parar. Não estando acostumado aos lugares montanhosos, ignorava que estava a uma grande
altitude, talvez já no alto da picada.
“Devo ser o cara mais desgraçado de todo o mundo”, pensou. “Tudo dá certo com os outros,
comigo nunca. Os nobres e as damas de Nárnia conseguiram fugir de Tashbaan; eu fiquei lá. Aravis,
Bri e Huin estão no bem-bom com o velho eremita; fui o único a ter de sair. O rei Luna e sua gente estão a
salvo no castelo, com os portões bem fechados, mas eu fiquei de fora.”
Teve tanta pena de si mesmo que as lágrimas começaram a deslizar por seu rosto.
Um susto interrompeu os seus tristes pensamentos. Alguém ou alguma coisa caminhava a
seu lado. Nas trevas não podia ver nada. E a coisa (ou pessoa) ia tão silenciosamente que ele mal podia ouvir
suas pisadas. Ouvia, sim, uma respiração: o invisível companheiro de fato respirava com vontade; devia ser
uma criatura enorme. Foi um grande choque.
Relampejou na sua cabeça uma lembrança: ouvira dizer que existiam gigantes nos países do
Norte. Mordeu os lábios, apavorado. Mas, agora que tinha um motivo real para chorar, parou de chorar.
A coisa (se é que não era uma pessoa) ia tão silenciosa que talvez fosse mera imaginação. Já estava
certo disso, quando ouviu ao seu lado um suspiro grande e profundo. Não era imaginação! O fato é que
sentiu o hálito quente desse longo suspiro na mão direita.
Se o cavalo fosse mesmo bom - ou se ele soubesse como fazer o cavalo tornar-se bom - teria
arriscado tudo numa corrida desabalada. Como isso não era possível, seguiu a passo, com o companheiro
invisível caminhando e respirando a seu lado. Acabou não agüentando mais:
- Quem é você? - murmurou baixinho.
- Alguém que esperava por sua voz - respondeu a coisa. O tom não era alto, mas amplo e profundo.
- Você é... um gigante?
- Pode me chamar de gigante - disse a grande voz. - Mas não me pareço com as criaturas que você
chama de gigantes.
- Não consigo vê-lo - falou Shasta, depois de muito tentar. Uma coisa terrível lhe passou pela
cabeça. Com a voz quase trêmula de choro, perguntou:
- Você não é... não é uma coisa morta... é? Vá embora, por favor. Nunca lhe fiz mal. Ó, sou o sujeito
mais desgraçado do mundo!
Sentiu novamente o hálito quente da coisa no rosto e na mão.
- Morto não respira assim. Pode me contar as suas tristezas, rapaz.
O hálito deu a Shasta um pouco mais de confiança. Contou então que jamais conhecera pai e
mãe, que fora criado por um pescador muito severo.
Contou sobre como fugira, sobre os leões que os perseguiram, os perigos em Tashbaan, a noite entre os
túmulos, as feras que uivavam no deserto, o calor e a sede durante a caminhada, e o outro leão que surgiu
quando estavam quase chegando, Aravis ferida...
Contou, por fim, que estava com fome, pois não comia nada havia muito tempo.
- Não acho que seja um desgraçado - disse a grande voz.
- Mas não foi falta de sorte ter encontrado tantos leões?
- Só há um leão - respondeu a voz.
- Não estou entendendo nada. Havia pelo menos dois naquela noite...
- Só há um leão, mas tem o pé ligeiro.
- Como sabe disso?
- Eu sou o leão.
Shasta escancarou a boca e não disse nada. A voz continuou:
- Fui eu o leão que o forçou a encontrar-se com Aravis. Fui eu o gato que o consolou na casa dos
mortos. Fui eu o leão que espantou os chacais para que você dormisse. Fui eu o leão que assustou os
cavalos a fim de que chegassem a tempo de avisar o rei Luna. E fui eu o leão que empurrou para a praia a
canoa em que você dormia, uma criança quase morta, para que um homem, acordado à meia-noite, o
acolhesse.
- Então foi você que machucou Aravis?
- Fui eu.
- Mas por quê?!
- Filho! Estou contando a sua história, não a dela. A cada um só conto a história que lhe pertence.
- Quem é você?
- Eu mesmo - respondeu a voz, com uma entonação tão profunda que a terra estremeceu. E de
novo: - Eu mesmo - com um murmúrio tão suave que mal se podia perceber, e parecia, no entanto, que esse
murmúrio agitava toda a folhagem à volta.
Shasta já não temia que a voz pertencesse a alguma coisa que o devorasse; nem temia que fosse a
voz de um fantasma. Uma coisa nova aconteceu, um tremor que lhe deu certa alegria.
A névoa passou do pardo para cinza e do cinza para branco. Devia ter começado pouco antes,
enquanto ele estava absorvido conversando com a coisa.
A brancura ao redor já começava a fulgir.
Passarinhos cantavam em algum lugar. A noite estava por um fio. Já enxergava bastante bem a crina e as
orelhas do cavalo. Uma luz dourada surgiu à esquerda, e Shasta pensou que fosse o sol.
Caminhando a seu lado, maior do que o cavalo, estava um Leão. O cavalo não parecia ter medo, ou
talvez não o visse. Era dele que vinha a luz dourada.
Ninguém jamais viu algo tão belo e terrível.
Felizmente o menino vivera toda a sua vida no Sul, e não havia escutado os casos, cochichados em
Tashbaan, sobre um tétrico demônio de Nárnia que costumava aparecer na forma de leão. E,
naturalmente, também tudo ignorava sobre as verdadeiras histórias de Aslam, o Grande Leão, o
filho do Imperador-dos-Mares, o Rei dos Grandes Reis de Nárnia. Mas, depois de espiar mais uma vez o
Leão, pulou do cavalo. Não conseguia dizer nada, mas também não queria dizer nada, e sabia que nada
precisava dizer.
O Grande Rei encaminhou-se para ele. A juba e um perfume estranho e solene, que nela pairava,
cercaram o menino. O Leão tocou a fronte de Shasta com a língua. Os olhos de ambos encontraram-se.
Depois, instantaneamente, a brancura da névoa misturou-se com o brilho ardente do Leão, num
redemoinho de glória, e os dois sumiram. Shasta se viu só, com o cavalo, na relva de uma colina, sob um
céu azul. Todas as aves do mundo cantavam.
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