12. Shasta em Nárnia

“Foi tudo um sonho?”, indagava Shasta para si mesmo. Mas não podia ter sido um sonho, pois via na
relva a grande e penetrante marca da pata direita do Leão. Que peso devia ter! O mais espantoso, porém,
veio depois: a depressão começou a encher-se de água e transbordou, formando uma correnteza que começou a descer pela relva.
Shasta matou a sede com um bom gole, molhou o rosto e a cabeça. Era uma água fria e clara como o
cristal. Sacudindo a cabeça molhada, começou a observar o que se passava em redor.
Parecia ser ainda muito cedo. A paisagem era completamente nova a seus olhos, um vale verde,
respingado de árvores, através das quais pôde ver o reflexo de um rio que seguia para o noroeste. Serras
rochosas alteavam-se na distância. Virando-se, viu que a elevação na qual se encontrava pertencia a um
bloco montanhoso bem mais alto.
- Estou entendendo: aquelas são as montanhas entre Arquelândia e Nárnia. Eu estava do lado de lá,
ontem. Devo ter passado pelo desfiladeiro durante a noite. Que sorte! Sorte coisa nenhuma, foi Ele. E
agora estou em Nárnia.
Tirou a sela e o freio do cavalo, dizendo: “Eta cavalinho ruim!” Sem tomar conhecimento, o animal
começou a pastar; ele também não tinha uma boa opinião sobre Shasta.
- Ah, se eu gostasse de grama! Bem, não adianta nada voltar a Anvar, toda sitiada. É melhor procurar
alguma coisa para comer lá embaixo no vale.
Sentindo o orvalho gelado nos pés descalços, chegou a uma mata. Passou a seguir uma espécie de
trilha sob as árvores e logo depois ouviu uma vozinha:
- Bom dia, vizinho.
Tentou localizar quem falara e acabou descobrindo uma criatura toda espinhenta que acabava
de enfiar a carinha escura entre as árvores. Era um porco-espinho. Shasta respondeu:
- Bom dia, mas não sou vizinho. Sou um forasteiro por estas bandas.
- Hum? - fez o porco-espinho, inquisidor.
- Vim pelas montanhas... lá de Arquelândia, sabe?
- Uma boa caminhada! Nunca fui lá.
- E acho que alguém deve saber que um exército de ferozes calormanos está atacando Anvar neste
instante.
- Não diga! Que coisa! E contam que os calormanos habitam a centenas ou milhares de
quilômetros daqui, lá no fim do mundo, depois de um marzão de areia!
- Não é tão longe quanto você pensa. Alguma coisa precisa ser feita. O seu Grande Rei precisa
saber...
- É claro, é preciso fazer alguma coisa. Acontece que estou indo para a cama tirar uma soneca. Alô,
vizinho.
As últimas palavras foram endereçadas a um coelho cor-de-sorvete-de-nata, cuja cabeça acabara de
apontar ao lado do caminho. Pelo porco-espinho, o coelho ficou a par da situação. Concordou também
que eram notícias graves e que alguém tinha de procurar alguém para que alguma coisa fosse feita.
E assim foi. A cada instante novas criaturas surgiam, algumas dos galhos das árvores, outras de
debaixo da terra, até que a reunião ficou integrada por cinco coelhos, um esquilo, duas gralhas, um fauno e
um camundongo. Todos falavam ao mesmo tempo e todos estavam de acordo com o porco-espinho.
A verdade era esta: naquela era de ouro e paz, quando a feiticeira e o inverno não reinavam mais, e o
Grande Rei Pedro governava em Cair Paravel, os serezinhos dos bosques de Nárnia se sentiam tão
felizes e seguros que acabaram se tornando descuidados.
Mas naquele momento duas pessoas mais práticas chegaram à mata. Uma era um anão vermelho
cujo nome parecia ser Dufles. A outra era um cervo, uma bela e senhorial criatura de olhos límpidos, com
flancos e pernas tão esguios que pareciam poder quebrar-se à força de dois dedos.
- Salve o Leão! - exclamou Dufles, ao inteirar-se das notícias. - O que estamos fazendo aqui parados,
batendo boca? Inimigos em Anvar! A notícia tem de ser enviada imediatamente a Cair Paravel. O exército
deve ser convocado. Nárnia deve levantar-se para socorrer o rei Luna.
- Ah! - exclamou o porco-espinho. - Mas você não vai achar o Grande Rei em Cair. Foi para o Norte,
dar uma tunda naqueles gigantes. Aliás, por falar em gigantes...
- Quem levará a nossa mensagem? - interrompeu o anão. - Existe alguém aqui mais veloz do que eu?
- Eu sou veloz - respondeu o cervo. - Qual é a mensagem? Quantos calormanos?
- Duzentos, chefiados por Rabadash. Além disso...
Mas o cervo já estava longe, batendo de uma só vez no chão com as quatro patas.
- Não sei para onde ele vai - disse o coelho -, pois não encontrará o rei em Cair Paravel.
- Encontrará a rainha Lúcia - disse Dufles. - E... o que está havendo com o humano? Está verdinho.
Está desmaiando e deve ser de fome. Quando você comeu pela última vez, jovem?
- Ontem de manhã - respondeu Shasta, fracamente.
- Venha comigo - falou o anão, passando o seu bracinho pela cintura de Shasta a fim de ampará-lo. -
Vizinhos, que vergonha!
Murmurando acusações a si mesmo, o anão conduziu Shasta para dentro da mata. As pernas do
menino tremiam quando chegaram a uma casinha com chaminé e fumaça. Entraram pela porta aberta e
Dufles gritou:
- Alô, irmãos, temos uma visita para o café. Um cheiro simplesmente delicioso chegou até
Shasta. Era a primeira vez que sentia o aroma de ovos com lombo defumado e cogumelos a estalar na
frigideira.
- Cuidado com a cabeça - disse Dufles. Mas já era tarde, pois Shasta acabava de meter a testa na
verga da porta. - Sente-se agora, rapaz. A mesa é um pouco baixa para você, mas o banquinho também é
baixo. Perfeito. E aqui está o mingau... e aqui uma jarra de creme de leite... e aqui uma colher.
Shasta já havia terminado o mingau quando os dois irmãos do anão - Rogin e Deduro - serviram o
prato de lombo com ovos e cogumelos. E mais ainda:
café, leite e torradas.
Era um paladar novo e delicioso para Shasta. Era a primeira vez que via torradas. Também pela
primeira vez via aquela coisa macia e amarela que passavam na torrada, pois os calormanos usam, quase
sempre, óleo em vez de manteiga. E a própria casa era muito diferente da choupana escura e cheirando a
peixe de Arriche, como também era diferente dos salões atapetados dos palácios de Tashbaan. O teto era
baixinho e tudo era feito de madeira. Havia um relógio-cuco, uma toalha de mesa com quadradinhos
vermelhos e brancos, uma jarra de flores silvestres e cortinas alvas nas janelas. O que atrapalhava um
pouco era ter de usar os talheres e as xícaras dos anões. Mas o seu pratinho estava sempre cheio, e a
todo instante os anões diziam “manteiga, por favor”, ou “uma outra xícara de café”, ou “um pouco mais de
cogumelo”, ou “que tal se a gente fritasse mais uns ovinhos”...
Depois de comerem até não poder mais, os anões tiraram a sorte para saber quem lavaria os pratos.
Rogin deu azar.
Dufles e Deduro levaram Shasta para um banco rente à parede externa; espicharam todos as pernas,
com grandes suspiros de satisfação; os anões acenderam seus cachimbos. O sol estava quente e o
orvalho desaparecera da relva: chegaria a ser quente demais se não soprasse uma leve viração.
- Agora, forasteiro - disse Dufles -, vou mostrarlhe a terra. Daqui se pode ver praticamente todo o sul
de Nárnia, e temos certo orgulho da nossa paisagem.
Ali à esquerda, depois daquelas serras, você pode apreciar as montanhas do Oeste. Aquela colina
arredondada à direita é a Colina da Mesa de Pedra.
Logo ali...
E aí foi interrompido por um ronco de Shasta, morto de sono pela viagem noturna e pela excelente
refeição. Os anões fizeram sinais um para o outro para não despertá-lo. E cochicharam tanto, e tantos gestos
fizeram enquanto se retiravam, que Shasta teria despertado, se não estivesse exausto.
O menino dormiu o dia inteiro e só acordou para cear. As camas eram pequenas demais para ele, mas
os anões arranjaram-lhe uma cama de urze no chão.
Shasta nem sequer se virou no leito, nem tampouco sonhou durante toda a noite. Na manhã seguinte,
haviam acabado de tomar café quando ouviram um barulho empolgante:
- Trompas! - disseram os anões. Saíram todos correndo para fora.
As trompas soaram de novo: não tão solenes como as de Tashbaan, não tão alegres quanto as do rei
Luna - claras, agudas, empolgantes. O ruído, vindo das matas do oriente, logo se misturou ao barulho de
cascos de cavalos. Logo depois surgiu à frente deles um batalhão.
Vinha em primeiro lugar o Senhor de Peridan, montando um cavalo baio, empunhando o grande
pavilhão de Nárnia: um leão vermelho em campo verde. Shasta o reconheceu imediatamente. Depois,
três cavaleiros, dois em cavalos de batalha e um sobre um pônei. Os dois primeiros eram o rei Edmundo e
uma dama de cabelos louros, com um rosto muito jovial, usando elmo e malha de ferro, levando além
disso um arco cruzado nos ombros e um carcás cheio de flechas. (“A rainha Lúcia”, murmurou Dufles.) O
do pônei era Corin. Seguia-se o principal corpo do exército; homens em cavalos comuns, homens em
cavalos falantes (que não se incomodavam de ser montados em ocasiões especiais), centauros, ursos,
grandes cães falantes e, por fim, seis gigantes. Pois há gigantes bons em Nárnia. Apesar disso, Shasta mal
teve coragem de olhar para eles; leva muito tempo para a gente se acostumar com certas coisas.
Assim que o rei e a rainha chegaram à cabana, os anões começaram a fazer profundas reverências, e
Edmundo tomou a palavra:
- Alto! Aqui, amigos, vamos ter um pequeno descanso.
Foi uma algazarra: gente descendo dos cavalos, conversas, mochilas sendo abertas... Corin veio
correndo e agarrou Shasta pelas mãos.
- Não é possível! Você por aqui! Que alegria!
Mas a coisa está feia. Mal tínhamos chegado a Cair Paravel, ontem pela manhã, quando encontramos o
cervo com as novas de um ataque a Anvar. Você não imagina...
- Quem é o amigo? - perguntou o rei Edmundo ao apear.
- Não está vendo, senhor? É o meu sósia: o rapaz que foi confundido comigo em Tashbaan.
- Olhe só! - exclamou a rainha Lúcia. - Parecem gêmeos. Que coisa mais fantástica!
- Majestade, por favor - disse Shasta para o rei Edmundo. - Não fui um traidor, não mesmo. Tive que
ouvir os planos. Mas jamais passou pela minha cabeça contar para os inimigos o que ouvi...
- Estou vendo agora que você não é um traidor, rapaz - disse o rei Edmundo, colocando a mão sobre a
cabeça de Shasta. - Mas, se não quiser passar por traidor, da próxima vez não ouça o que não é para os
seus ouvidos. Mas está tudo bem.
Eram tantas ordens e indas e vindas que, por uns minutos, Shasta perdeu Corin de vista. Depois ouviu o
rei Edmundo dizer bem alto:
- Pela juba do Leão, príncipe, já é demais! Será que Vossa Alteza jamais tomará jeito? Você dá mais
trabalho do que todo um exército!
Shasta embarafustou-se pela multidão e viu que o rei Edmundo parecia de fato muito zangado. Corin,
por sua vez, mostrava-se um pouco envergonhado; e havia um estranho anão sentado no chão, fazendo
caretas, enquanto dois faunos o ajudavam a livrar-se da armadura.
- Se tivesse trazido meu tônico - disse a rainha Lúcia -, daria um jeito nisso. Mas o Grande Rei não
quer que eu o leve às guerras comuns; devo guardá-lo para os casos de extrema necessidade.
Acontecera o seguinte: depois de falar com Shasta, Corin fora puxado pelo cotovelo por um anãosoldado
que se chamava Espinhei.
- Que há, Espinhei? - Corin perguntou. O anão respondeu:
- Alteza, nossa marcha de hoje nos levará ao desfiladeiro à direita do castelo de seu pai. Podemos
estar lutando antes do anoitecer.
- Sei disso - respondeu Corin. - Sensacional!
- Sensacional ou não - retornou Espinhei -, tenho ordens estritas do rei Edmundo para impedi-lo de
entrar na luta. Mas você poderá assistir à batalha, e isso já é o suficiente para a sua idade.
- Que besteirada! - explodiu Corin. - É claro que vou entrar na luta. Até a rainha Lúcia vai formar com
os arqueiros.
- A rainha pode fazer como ela quiser - respondeu Espinhei. - Vossa Alteza é que está sob a
minha guarda. E tem de jurar solenemente que ficará ao meu lado, até que lhe dê autorização para partir.
Do contrário - é a palavra de Sua Majestade - teremos de seguir com os punhos amarrados como dois
prisioneiros.
- Eu lhe sento a mão na cara se tentar me amarrar - disse Corin.
- Gostaria de ver Vossa Alteza fazer isso.
Era o suficiente para um rapazinho como Corin.
Em um segundo ele e Espinhei estavam embolados no chão. Teria sido uma boa luta: Corin era mais alto e
de mais envergadura, mas Espinhei era mais velho e mais forte. Mas não houve luta: por pura falta de
sorte, Espinhei pisou numa pedra solta e tacou o nariz no chão. Quando tentou levantar-se, viu que havia
torcido o tornozelo, uma torção que o impediria de andar ou cavalgar durante umas duas semanas.
- Veja o que fez - disse o rei Edmundo. - Privounos de um guerreiro experimentado na hora da luta!
- Eu tomo o lugar dele, Majestade - disse Corin.
- Escute! - falou Edmundo. - Ninguém duvida da sua coragem. Mas um rapazinho numa batalha só é
um perigo para o seu próprio lado.
O rei foi chamado para decidir outra coisa, e Corin, após desculpar-se cavalheirescamente com o
anão, correu até Shasta e murmurou:
- Depressa! Há um cavalo sobrando e a armadura do anão. Meta-se nela antes que alguém veja.
- Para quê?
- Ora bolas! Para que possamos entrar na batalha! Não vai querer?
- Oh, ah... é... claro... quero - Shasta não contava com essa e começou a sentir um calafrio na espinha.
- Ótimo - disse Corin. - Levante a cabeça. Agora, o cinto da espada. Devemos ir no fim da fila e mais
quietos do que camundongo. Depois que a batalha começar, não terão tempo de se lembrar de nós.

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