Lá pelas onze horas todo o exército estava em pé de guerra, marchando para oeste, com as montanhas à
esquerda. Corin e Shasta iam na retaguarda, logo depois dos gigantes. Lúcia, Edmundo e Peridan
estavam entretidos com os planos da batalha. Assim, quando Lúcia perguntou: “Mas onde está aquele
principezinho levado da breca?”, Edmundo simplesmente respondeu: “Na vanguarda é que não
está, e isso já é uma boa notícia. Deixe pra lá”.
Shasta contou a Corin suas aventuras, explicando que aprendera a montar com um cavalo e que não
sabia usar o freio. Corin deu-lhe instruções, relatando ainda tudo sobre a viagem por mar, quando fugiram
de Tashbaan.
- Por onde anda a rainha Susana?
- Em Cair Paravel. Ela não é como Lúcia, que briga feito um homem, ou pelo menos como um
rapazinho. A rainha Susana parece mais uma dama.
Não freqüenta guerras, apesar de ser muito boa no arco e flecha.
Com o caminho ficando mais estreito e escarpado, passaram a desfilar em fila indiana ao
longo da borda do precipício. Shasta estremeceu ao pensar que passara pelo mesmo lugar na noite
anterior, e viu que não correra perigo porque o Leão permanecera a seu lado.
Duas águias giravam lá em cima no azul.
- Sentem o cheiro da batalha - disse Corin. - Sabem que estamos preparando comida para elas.
Shasta não gostou.
Ao atingirem o fim do desfiladeiro, o panorama abriu-se um pouco mais e Shasta pôde descortinar
toda a Arquelândia, nevoenta e azul.
O exército fez alto e abriu-se em linha, executando novos arranjos de formação. Só então
Shasta se deu conta do impressionante destacamento de feras falantes (leopardos, panteras, etc.) que foram
postar-se à esquerda. Os gigantes foram enviados para a direita mas, antes de assumirem suas posições,
sentaram-se para calçar as enormes botas com ponteiras que vinham carregando nas costas e que lhes
chegavam aos joelhos. Puseram então seus pesados cajados nos ombros e formaram para o combate. Os
arqueiros, com a rainha Lúcia, caíram para a esquerda, e Shasta os viu -tiiim... tiiim... - experimentar as
cordas dos arcos. Por toda a parte era a mesma coisa:
gente colocando elmos, puxando espadas, cingindo cintos, quase sem dizer palavra. Era tudo muito solene
e dava medo.
“Agora não tenho saída” - pensou Shasta -, “agora estou aqui.”
De longe chegava o som de gritos e um surdo tontom.
- Golpes de aríete - murmurou Corin. - Estão forçando as portas. - E acrescentou, com uma
expressão agora muito séria: - Por que o rei Edmundo não parte para cima deles? Não agüento essa demora.
É de morte!
Shasta concordou com a cabeça, esperando não aparentar todo o medo que sentia.
Por fim, a trompa! O pavilhão desfraldou-se no vento, com o trote dos cavalos. Todo o cenário abriuse
de repente: um pequeno castelo de muitos torreões, com o portão à frente deles. Não tinha fosso,
infelizmente. Sobre as muralhas viam-se os defensores. Embaixo, cerca de cinqüenta calormanos,
desmontados, forçavam os portões com um vasto tronco de árvore. Mas bem depressa a cena mudou. O
grosso dos homens de Rabadash estava a pé, pronto para invadir os portões. E tinham acabado de perceber
os narnianos que desciam da serra.
Sem dúvida alguma, os calormanos eram muito bem exercitados. Em um segundo, toda uma linha do
inimigo estava novamente a cavalo, rodopiando para enfrentá-los, saltando de encontro a eles.
E um galope agora. O espaço entre os dois exércitos diminuía de momento a momento. Rápido,
mais rápido. Espadas nuas, escudos à altura do nariz, orações feitas, dentes cerrados.
Shasta estava morrendo de medo. Mas de repente pensou que ter medo naquele momento era sentir
medo em todas as outras lutas de sua vida. “Agora ou nunca!”
Quando as duas formações se encontraram ele teve uma idéia muito pálida do que estava
acontecendo. Foi uma confusão assustadora, um estrépito de enlouquecer. A espada não demorou a ser
derrubada de suas mãos. Embaraçaram-se suas rédeas, e viu-se escorregando do cavalo. Aí uma lança veio na sua direção e, enquanto ele se agachava para evitá-la...
Mas de nada vale descrever o combate do ponto de vista de Shasta, que pouco entendia da luta em
geral e mesmo da sua pequena guerra particular. Para contar o que realmente acontecia, levarei você para
bem longe dali, para onde o eremita se postava a olhar para a água do tanque, sob a árvore frondosa, com Bri, Huin e Aravis a seu lado.
Pois era para dentro desse tanque que o eremita olhava quando queria saber o que se passava no
mundo, além dos muros verdes do eremitério. Como num espelho, conseguia ver no tanque cidades mais
longínquas que Tashbaan, navios que deixavam os portos e até assaltantes e feras que perambulavam
pelas grandes florestas entre o Ermo do Lampião e Teimar. Naquele dia pouco deixou o tanque, nem
mesmo para comer ou matar a sede, pois sabia que grandes eventos estavam acontecendo em
Arquelândia. Aravis e os cavalos também olhavam para o interior do poço. Em vez do céu e dos ramos
refletidos, viam confusas formas coloridas que se moviam. Mas não viam com nitidez. Era o eremita
que lhes dizia de vez em quando o que ia vendo claramente. Um pouco antes de Shasta ter seguido
para a sua primeira batalha, ele começou a falar assim:
- Estou vendo uma... duas... três águias girando acima do Pico da Tempestade. Uma é a mais velha de
todas as águias. Não estaria lá se uma batalha não estivesse para explodir. Ah... Agora vejo o motivo
pelo qual Rabadash e seus homens andaram tão ocupados o dia todo. Derrubaram uma grande árvore e
fizeram do tronco um aríete. Aprenderam alguma coisa com o fracasso do assalto da noite passada.
Procederia ele com mais inteligência se mandasse os homens fazerem escadas. Mas levaria mais tempo, e
ele é impaciente. Tresloucado! Ele deveria ter retornado para Tashbaan logo depois de fracassado o
primeiro ataque, pois todo o seu plano dependia da surpresa e da rapidez. Estão colocando o aríete em
posição. Os homens do rei Luna atiram de cima das muralhas. Caíram cinco calormanos; mas muitos
restarão, mantendo os escudos acima das cabeças.
Rabadash agora está transmitindo novas ordens. Estão com ele os senhores de mais confiança, os cruéis
tarcaãs das províncias do Oriente. Vejo até os seus rostos. Ali vai Coradin do Castelo de Tormunt, e
Chlamash, e Ilgamute, o do lábio torcido, e um alto tarcaã com uma barba escarlate...
- Pela juba! É o meu antigo amo Anradin! - exclamou Bri.
- Psiu! - disse Aravis.
- O aríete agora começa a funcionar. São terríveis pancadas, mas não posso ouvi-las. Não há
porta ou portão que agüente. Um momento! Alguma coisa no Pico da Tempestade assustou as aves. Estão
vindo em massa. Um momento! Ainda não posso ver... Ah! Já vejo. A encosta leste está negra de
cavaleiros. Já vi o pavilhão. Nárnia! Nárnia! É o Leão vermelho! Desabalaram serra abaixo. Estou vendo o
rei Edmundo. Há uma dama entre os arqueiros. Ó!
- Que foi? - perguntou Huin, ofegante.
- Todos os gatos se lançam pela esquerda da linha.
- Gatos? - estranhou Aravis.
- Gatões, bichos como leopardos - explicou o eremita, com impaciência. - Estou entendendo: os
gatos estão cercando os cavalos dos homens desmontados. Os cavalos dos calormanos já estão
loucos de pavor. Os gatos já estão entre eles.
Rabadash refez o seu exército e conta com cem homens a cavalo. Vão bater-se com os narnianos.
Cem metros os separam. Cinqüenta. Estou vendo o rei Edmundo e lorde Peridan. Há duas crianças na linha
de Nárnia. Como o rei foi deixar que entrassem na batalha? Só dez metros... as duas frentes se
encontraram. Os gigantes à direita de Nárnia estão operando prodígios... mas um acabou de cair... ferido
no olho, suponho. A confusão é geral. De novo os dois meninos. Pelo Leão! Um deles é Corin! O outro é
parecidíssimo com ele. Ah, é o pequeno Shasta, Corin luta feito um homem. Matou um calormano. Quase
que Rabadash e Edmundo se encontram...
- E Shasta? - perguntou Aravis.
- Ó! Que maluco! - resmungou o eremita. - Que rapazinho maluco e valente! Não sabe nada de guerra.
Nem sabe usar o escudo. Está completamente exposto.
Não tem a menor idéia do que fazer com a sua espada.
Ah, agora se lembrou... começou a rodar a espada...
quase cortou a cabeça do seu cavalo, e acabará cortando se não tomar mais cuidado. Mas a espada
caiu-lhe da mão. É um crime mandar uma criança para uma batalha; não dura mais do que cinco
minutos. Que maluquinho... Ó, caiu!...
- Morto? - perguntaram os três.
- Como vou saber? Os gatos trabalharam bem.
Todos os cavalos sem cavaleiros estão mortos ou fugiram. Não há muita possibilidade para os
calormanos. Os gatos agora se dirigem para a zona mais quente da batalha. Estão saltando sobre os
homens do aríete. Um caiu no chão. Ó, bom, muito bom! Os portões se abriram pelo lado de dentro; vão
enfrentá-los peito a peito. O rei Luna está entre os primeiros que saem; os outros são os irmãos Dar e
Darin. Chegam atrás Tran, Shar e Col com o seu irmão Colin. São dez.... vinte... quase trinta agora. Os
calormanos estão imprensados. O rei Edmundo está fazendo lances magníficos. Acabou de decepar com
grande precisão a cabeça de Coradin. Muitos calormanos jogam suas armas no chão e correm para
as matas. Os outros não correm porque estão encurralados. Os gigantes apertam pela direita... os
gatos pela esquerda... o rei Luna pela retaguarda. Os calormanos se agrupam, lutando. Seu tarcaã já era,
Bri. Luna e Ilgamute estão combatendo corpo a corpo.
Parece que o rei vai ganhar... Ele está indo muito bem... O rei ganhou! Ilgamute no chão. O rei
Edmundo caiu, não... não... levantou-se outra vez.
Está frente a frente com Rabadash. Estão lutando bem na frente do portão do castelo. Vários calormanos se
entregam. Não sei o que aconteceu a Rabadash. Acho que morreu, tombado sob o muro do castelo, mas não sei. Chlamash e o rei Edmundo continuam a lutar, mas a batalha já terminou por todos os lados. Chlamash se entrega. Acabou-se a luta! Os calormanos foram inexoravelmente batidos.
Ao cair do cavalo, Shasta se deu por perdido.
Mas os cavalos, mesmo numa batalha, pisoteiam os seres humanos muito menos do que se pode supor.
Depois de uns dez minutos, reparou que não havia cavalos revolteando por perto e que os ruídos que
ouvia não eram de combate. Olhou em torno.
Compreendeu que os arqueiros e os narnianos haviam vencido. Os únicos calormanos vivos ao alcance da
vista estavam aprisionados, e os portões do castelo estavam abertos; o rei Luna e o rei Edmundo
apertavam-se as mãos sobre o aríete. Os lordes e guerreiros conversavam animadamente. E de repente
tudo se uniu numa tremenda gargalhada.
Shasta correu para saber qual era o motivo de tanto riso. E deu com uma cena muito engraçada. O
infeliz Rabadash estava suspenso no ar, em algum ponto da muralha do castelo. Seus pés, meio metro
acima do solo, davam chutes violentos. Sua malha de ferro estava presa a uma saliência qualquer,
apertando-lhe as axilas e cobrindo metade do seu rosto. Um homem surpreendido no momento de vestir
uma camisa apertada demais -era esta a imagem de Rabadash.
Acontecera mais ou menos o seguinte: logo no início da batalha, um dos gigantes procurou acertar
Rabadash com a sua bota pontuda; não conseguiu, mas o ferrão rasgou a malha. Ao encontrar-se com
Edmundo às portas do castelo, Rabadash tinha um rasgão nas costas de sua malha. Acuado por Edmundo
de encontro à muralha, pulou para um lugar mais elevado, tentando defender-se de cima. Desconfiando
que a sua posição, acima da cabeça de todos, o tornava um alvo fácil para as flechas narnianas,
resolveu voltar para o nível do chão. Grandioso e assustador, deu um pulo e um grito: “O raio de Tash
cai do alto!” Mas pulou um pouco para o lado, pois na frente estava um monte de guerreiros. Foi aí, com uma precisão admirável, que o rasgão em sua malha foi pescado por um gancho preso na pedra do muro.
(Antigamente esse gancho prendia um aro que servia para amarrar as rédeas dos cavalos.) E lá ficou ele,
como uma peça de roupa posta a secar, e todo o mundo dando gargalhadas.
- Deixe-me descer daqui, Edmundo - rosnou Rabadash. - Desça-me e vamos lutar como reis e
machos; mas, se for covarde demais para isso, mate-me de uma vez.
- Com o maior prazer... - disse Edmundo, que foi interrompido pelo rei Luna:
- Nada disso, Majestade. - E o rei Luna dirigiu-se a Rabadash:
- Se Vossa Alteza tivesse feito esse desafio há uma semana, não haveria ninguém nos domínios do
rei Edmundo, do Grande Rei ao menor dos camundongos falantes, que o teria recusado. Mas, por
ter atacado o castelo de Anvar em tempo de paz e sem declaração de guerra, mostrou que não é um
cavalheiro, e sim um traidor, mais digno do relho do carrasco do que de uma luta singular com uma pessoa
honrada. Tirem-no daí; levem-no amarrado para o castelo, até que a nossa satisfação se torne conhecida
de todos.
Mãos fortes arrancaram a espada de Rabadash, que foi arrastado para o castelo entre gritos, ameaças e
maldições, e até lágrimas. Pois, embora capaz de enfrentar a tortura, não suportava passar por ridículo.
Sempre fora levado a sério em Tashbaan.
Nesse instante Corin foi correndo até Shasta, pegou-lhe a mão e puxou o amigo para perto do rei
Luna.
- Aqui está ele, pai, aqui está ele - gritou Corin.
- E também aqui está você, finalmente - disse o rei com uma voz muito ríspida. - Entrou na batalha
contrariando ordens! Um filho mata um pai! Na sua idade, uma varada no traseiro vai melhor do que uma
espada na mão, hã!
Todos notaram, no entanto, que o rei se sentia orgulhoso do filho.
- Não se zangue mais com ele, Majestade, por favor - disse Darin. - Sua Alteza não seria filho de
quem é se não tivesse herdado a sua bravura. Mais afligiria Sua Majestade se ele fosse digno de
reprimenda pela falta contrária.
- Bem, bem - resmungou o rei. - Desta vez, passaremos por cima, mas da próxima... E agora...
O que aconteceu em seguida foi a maior surpresa que Shasta já teve em toda a sua vida: de repente se
viu apertado nos braços de urso do rei Luna, que o beijava nas duas bochechas. E, quando ele se
encontrou de novo no chão, o rei falou:
- Fiquem aqui juntos, rapazes, para que todos possam vê-los. Levantem a cabeça! Senhores, olhem
para ambos. Alguém pode ter alguma dúvida?
Shasta ainda não podia entender por que motivo todos fixavam os olhos nele e em Corin, nem por que
tanta alegria.
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