15. Ultimato pós-parto

Estes deveriam ter sido os dias mais felizes de nossas vidas e, em
muitos aspectos, eles foram. Tínhamos dois filhos agora, um bebê de um
ano e outro recém-nascido, com apenas dezessete meses de diferença
entre eles. A alegria que eles nos trouxeram foi profunda. Embora tenha
persistido a melancolia que descera sobre Jenny quando ela se viu
obrigada a ficar em repouso. Em algumas semanas ela estava ótima,
lidando, despreocupada, com os desafios da responsabilidade de ter duas
crianças totalmente dependentes dela para tudo. Em outras, sem prévio
aviso, ela se tornava sombria e deprimida, fechada em si mesma, que
poderia levar dias para passar. Estávamos ambos exaustos e insones.
Patrick ainda acordava pelo menos uma vez no meio da noite, e Conor
chorava mais vezes para ser amamentado ou para suas fraldas serem
trocadas. Raramente tínhamos mais do que duas horas de sono
ininterrupto de cada vez. Algumas noites, ficávamos como zumbis,
passando um pelo outro sem dizer uma palavra, com os olhos extasiados,
Jenny com um bebê e eu com o outro. Acordávamos à meia-noite, às duas,
às três e meia e novamente às cinco. Então, o sol nascia e com ele vinha
um novo dia, trazendo novas esperanças e um cansaço físico ao retomar o
ciclo. Ouvíamos a voz doce, alegre e desperta de Patrick descendo pelo
corredor — Mama! Dada! Fannnn! — e por mais que quiséssemos pensar
de outra maneira, sabíamos que nosso sono, ou o que sobrara dele, teria
de ser adiado por mais um dia. Comecei a fazer um café mais forte, e
aparecer para trabalhar com camisas amassadas e gravatas manchadas de
papinha de bebê. Certa manhã, na redação, notei a jovem e atraente
assistente editorial olhando fixamente para mim. Lisonjeado, sorri para ela:
“Ei, posso ser o pai de dois filhos, mas as mulheres ainda reparam em mim”.
Então, ela disse:
— Sabe que está com uma etiqueta de ursinho grudada em seu
cabelo?
Para complicar o caos da falta de sono que se instalou em nossas vidas,
nosso novo bebê começou a nos deixar muito preocupados. Ainda abaixo
do peso, Conor não conseguia manter o leite que mamava em sua barriga.
Jenny estava determinada a amamentá-lo até que ficasse saudável e
robusto, e ele parecia não querer corresponder a essa expectativa. Ela o
amamentava e ele começava a sugar, esfomeado. Então, em seguida,
colocava tudo para fora. Ela o amamentava novamente; ele sugava
nervosamente e, logo depois, vomitava tudo de novo. Vômitos tornaram-se
uma recorrência diária em nossas vidas. A rotina se repetia, deixando Jenny
cada vez mais nervosa. Os médicos diagnosticaram um caso de refluxo e
encaminharam-nos a um especialista, que sedou nosso bebezinho, e
introduziu uma sonda em sua garganta para poder fazer uma endoscopia.
Conor acabou superando o mal e passou a ganhar peso normalmente, mas
por quatro longos meses fomos consumidos pela preocupação com o que
acontecia com ele. Jenny acumulava medo, estresse e frustração, tudo
exacerbado pela falta de sono, ao amamentá-lo quase ininterruptamente
para depois vê-lo expelir de volta todo o leite, sem nada que pudesse fazer.
— Eu me sinto tão mal — ela dizia. — Mães devem ser capazes de
dar aos seus bebês tudo que eles precisam.
Sua paciência estava curtíssima como eu nunca vira, e por causa
de nada — uma porta de armário aberta ou migalhas deixadas em cima
do balcão fariam com que estourasse.
A boa notícia é que Jenny jamais descontou sua ansiedade em
cima das crianças. De fato, ela cuidava dos dois com obsessivo cuidado e
paciência. Ela se derramava sobre eles. A má notícia é que ela passou a
dirigir sua frustração raiva a mim e ainda mais a Marley. Ela perdeu toda a
paciência com ele. Ele a desagradava em tudo, e tudo o que ele fazia estava
errado. Cada transgressão — e continuaram a haver muitas delas —
empurravam Jenny cada vez mais para o fim de sua paciência. Sem
perceber, Marley continuou agindo como sempre, com suas
excentricidades, suas confusões, e infinita ebulição. Eu comprei um
arbusto florido e plantei-o no jardim para comemorar o nascimento de
Conor; Marley arrancou-o pela raiz no mesmo dia e mastigou-o inteiro.
Eu finalmente consegui substituir a tela da porta da varanda que ele havia
rasgado e Marley, já acostumado com sua passagem de cachorro, em
seguida, furou-a novamente. Ele fugiu um dia e quando finalmente
retornou, trouxe um par de calcinhas nos dentes. Nem me importei.
Apesar dos tranqüilizantes que Jenny passou a lhe dar cada vez com
mais freqüência, mais por ela do que por ele, sua fobia a trovões tornava-se
a cada dia mais intensa e irracional. Agora qualquer chuva leve o deixava
em pânico. Se estivéssemos em casa, ele simplesmente grudava cm nossas
pernas e babava nervosamente em cima de nós. Se tivéssemos saído, ele
tentaria escapar do mesmo modo alucinado, cavando e se jogando contra
portas, paredes e linóleo. Quanto mais eu consertava, mais ele destruía.
Eu não conseguia acompanhá-lo. Eu deveria ficar furioso, mas Jenny já
estava suficientemente zangada por nós dois. Ao contrário, comecei
encobertá-lo. Se eu encontrasse um sapato, livro ou travesseiro mastigado,
escondia a prova antes que ela visse. Quando ele atravessava a casa, como
um touro em uma loja de porcelanas, eu o seguia, arrumando tapetes,
endireitando mesinhas de centro, e limpando a saliva que ele borrifava nas
paredes. Antes que Jenny descobrisse, eu corria para aspirar as lascas de
madeira na garagem que ele tivesse arrancado da porta outra vez. Eu
ficava até mais tarde emendando e lixando para que, de manhã, quando
Jenny levantasse, o último dano estivesse reparado.
— Pelo amor de Deus, Marley, você quer morrer? — eu disse a ele,
um dia à noite, enquanto consertava mais uma de suas destruições e
ele, ao meu lado, balançava o rabo e lambia minha orelha. — Você tem
de parar com isso!
Foi nesse ambiente volátil que cheguei certa noite em casa. Abri
a porta e vi Jenny esmurrando Marley. Ela estava chorando
descontrolada e espancando-o nas costas, nos ombros e no pescoço.
— Por quê? Por que você faz isso? — ela gritava com ele. — Por
que você destrói tudo?
Nesse momento, vi o que ele fizera. O sofá estava todo
arrebentado, o tecido rasgado e o estofamento puxado para fora.
Marley estava com a cabeça baixa e as patas esparramadas, como se
estivesse dentro de um furacão. Ele não tentou fugir ou evitar os murros;
apenas ficou ali parado, agüentando a surra, sem chorar ou reclamar.
— Ei, ei, ei, ei, ei! — gritei, agarrando seus pulsos. — Que é isso?
Pare! Pare!
Ela estava aos prantos sem conseguir respirar.
— Pare! — repeti.
Postei-me entre ela e Marley e olhei-a direto nos olhos. Era
como se uma estranha estivesse olhando para mim. Não reconheci seu
olhar.
— Tire-o daqui! — ela grunhiu, num tom de voz baixo e irado.
— Tire-o daqui agora!
— O.k.! Vou levá-lo para fora — respondi —, mas acalme-se!
— Tire-o daqui e mantenha-o fora daqui — ela disse de forma
estranhamente monocórdia.
Abri a porta da frente e Marley saiu, e quando me virei para pegar
sua guia de cima da mesa, Jenny advertiu:
—Estou falando sério. Quero que ele vá embora. Quero que ele
saia daqui de uma vez!
—Que é isso? — perguntei. — Você não pode estar falando sério.
—Estou, sim — ela respondeu. — Estou farta desse cachorro.
Encontre um novo lugar para ele morar ou eu encontrarei.
Ela não poderia estar falando sério. Ela amava esse cachorro. Ela o
adorava apesar de sua longa lista de confusões. Ela estava exausta; estava
estressada além do limite. Ela iria mudar de idéia. Nesse momento, pensei
que seria melhor dar tempo a ela para esfriar a cabeça. Eu saí de casa sem
dizer mais nada. No jardim da frente, Marley corria para cima e para
baixo, saltando e estalando os dentes no ar, tentando tirar a guia da minha
mão. Ele continuava brincalhão, aparentemente inalterado depois da
surra. Eu sabia que ela não o ferira. Para falar francamente, eu batia nele
com muito mais força quando brincava com ele, e ele adorava, sempre
voltando para apanhar mais. Era algo típico de sua raça; ele era imune à
dor, uma infatigável máquina de músculos e força. Certa vez, enquanto eu
estava na entrada lavando o carro, ele enfiou a cabeça no balde de água
com sabão e galopou às cegas pela grama, e não parou até ir bater com
toda a força contra uma parede de concreto. Ele não pareceu nem um
pouco perturbado. Mas dê-lhe uma palmada de leve no traseiro com a mão
espalmada com raiva, ou até mesmo apenas fale com ele com a voz séria, e
ele se mostrará totalmente magoado. Para o pateta que ele era, Marley era
extremamente sensível. Jenny não o machucou nem um pouco
fisicamente, mas ela pisou em seus sentimentos, pelo menos naquele
momento. Jenny era tudo para ele, sua melhor amiga no mundo, além de
mim, e ela havia se revoltado contra ele. Ela era sua dona e ele, seu fiel
companheiro. Se ela achava que deveria espancá-lo, ele acreditava que
deveria suportar o castigo. Em relação a cachorros, ele não era um dos
melhores; mas era indiscutivelmente leal. Era minha obrigação agora
reparar o dano e fazer com que as coisas se acertassem novamente.
Na rua, enganchei a guia em sua coleira e comandei:
— Sente!
Ele sentou.
Puxei o enforcador bem alto em sua garganta para prepará-lo para
o passeio. Antes de dar o primeiro passo, passei minha mão sobre a
cabeça dele e massageei seu pescoço. Ele levantou o focinho e olhou
para mim, deixando sua língua caída para o lado. O incidente com
Jenny parecia ter sido esquecido; agora eu esperava que fosse esquecido
por ela também.
— O que vou fazer com você, seu bobão? — perguntei a ele.
Ele saltou para a frente, como se tivesse molas nos pés e beijou-me
na boca com sua imensa língua.
Marley e eu caminhamos vários quilômetros naquela noite, e quando
finalmente abri de novo a porta de casa, ele estava exausto e pronto para se
esborrachar num canto. Jenny estava dando um potinho de papinha de bebê
a Patrick, enquanto ninava Conor em seu colo. Ela estava calma e parecia
ter voltado ao normal. Soltei Marley e ele foi beber em sua vasilha, fazendo
um enorme barulho enquanto lambia, derrubando água para todos os
lados. Sequei o chão e olhei furtivamente na direção de Jenny; ela parecia
tranqüila. Talvez aquele momento terrível tivesse passado. Talvez ela tivesse
mudado de idéia. Talvez ela estivesse se sentindo mal em relação a ter
estourado com ele e estivesse buscando uma forma de pedir desculpas.
Quando passei por ela, com Marley junto a mim, ela disse numa voz calma
e baixa, sem levantar os olhos:
— Estou falando muito sério. Quero que ele vá embora.
Nos dias seguintes, ela repetiu o ultimato o suficiente para que
finalmente eu aceitasse que não era uma ameaça inócua. Ela não estava
falando por falar, e não iria desistir da idéia. Eu estava cansado desse
assunto. Por mais patético que parecesse, Marley se tornara minha alma
gêmea masculina, um companheiro constante, meu amigo. Ele era o
espírito livre, indisciplinado, recalcitrante, não-conformista, e
politicamente incorreto que eu sempre quis ser, se eu tivesse a coragem de
sê-lo, e eu me regozijava com sua verve inquebrantável. Não importa quão
complicada a vida se tornara, ele me lembrava de suas simples alegrias.
Não importa quantas exigências me fossem feitas, ele nunca me deixava
esquecer que a desobediência voluntária algumas vezes vale a pena.
Num mundo cheio de caciques, ele era seu próprio senhor. O pensamento
de passá-lo adiante dilacerava a minha alma. Mas agora eu tinha dois filhos
para me preocupar e uma mulher de quem precisávamos. Nossa casa se
mantinha por um fio muito tênue. Se perder Marley faria a diferença entre
a dissolução e a estabilidade, como eu não atenderia à vontade de Jenny?
Comecei a sondar, discretamente perguntando a amigos e colegas
de trabalho, se eles estariam interessados em adotar um labrador de dois
anos de idade, adorável e vivaz. Descobri um vizinho que adorava
cachorros e que não recusaria um cão abandonado. Até ele se recusou.
Infelizmente, a reputação de Marley o precedia.
Toda manhã, eu abria o jornal na seção de classificados à procura
de um anúncio milagroso: “Procura-se um labrador selvagem, enérgico,
descontrolado com múltiplas fobias. Qualidades destrutivas são bemvindas.
Pagamos o melhor preço do mercado”. O que encontrei em vez
disso foi um mercado ascendente de cachorros que, por alguma razão,
não tinham dado certo. Muitos eram cães de raça cujos donos haviam
gasto centenas de dólares poucos meses antes. Agora estavam sendo
oferecidos por um valor ínfimo ou até mesmo de graça. Um número
assustador dos cães indesejados eram labradores machos.
Os anúncios eram publicados todos os dias, e eram, ao mesmo
tempo, hilários e de cortar o coração. Por conhecer bem esse tipo de cão, eu
reconhecia as tentativas de disfarçar as verdadeiras razões por que estes
cães estavam sendo devolvidos ao mercado. Os anúncios estavam
coalhados de eufemismos para descrever os tipos de comportamento que
eu conhecia bem demais: “Ativo ...adora pessoas ...necessita de um
quintal grande ...necessita de espaço para correr ...enérgico ...espirituoso
...possante ...um tipo único”. Todos induziam à mesma idéia: um cão que o
dono não conseguiu controlar. Um cão que havia se transformado em
estorvo. Um cão que seu dono desistira de ter.
Um lado meu ria; os anúncios eram cômicos por serem
decepcionantes. Quando eu lia “extremamente leal”, eu sabia que o
vendedor na verdade queria dizer “capaz de morder”. “Companheiro
constante” significava “sofre de carência afetiva” e “bom cão de guarda”
queria dizer “late muito” E quando eu via “melhor oferta”, eu sabia muito
bem que o dono, desesperado, no fundo estava perguntando: “Quanto
você quer para me tirar este problema das mãos?”. Outro lado meu doía
de tristeza. Eu não iria desistir fácil; eu não acreditava que Jenny fosse
desistir fácil também. Não éramos do tipo de pessoa que colocava seus
problemas à venda numa página de classificados. Marley era, sem sombra
de dúvida, uma dor de cabeça. Ele não se parecia nem um pouco com os
cachorros civilizados que nós dois tivemos quando crianças. Ele tinha
uma coleção de maus hábitos e maus comportamentos. Era culpado por
tudo que fazia de errado. Ele também não era mais o filhote fofinho que
havíamos trazido para casa dois anos antes. Em seu modo confuso, ele
continuava tentando. Parte de nossa atribuição como seus donos era
adequá-lo às nossas necessidades, mas outra parte era também aceitá-lo
como ele era. Não apenas aceitá-lo, mas apoiá-lo e a seu espírito canino
indomável. Nós havíamos trazido para casa um ser vivo e pulsante, não
um acessório de moda para enfeitar um canto da sala. Pelo sim ou pelo
não, ele era nosso cachorro. Ele era parte de nossa família e, apesar de
todos os seus defeitos, ele correspondeu mil vezes ao nosso amor. Uma
devoção como a dele não poderia ser comprada a preço algum.
Eu não estava pronto para abrir mão dele.
Mesmo continuando a procurar de modo casual um novo lar para
Marley, comecei a treiná-lo ferozmente. Minha “Missão: Impossível”
pessoal era conseguir reabilitá-lo e provar a Jenny que ele valia a pena.
Ignorando a falta de sono, comecei a acordar mais cedo, prendia Patrick
no carrinho e ia para o quebra-mar para treinar Marley. Sente. Fique.
Deitado. Junto. Praticamos infinitas vezes. Havia um desespero em
minha missão, e Marley parecia perceber isso. A aposta era outra agora;
esta era para valer. No caso de ele não haver entendido isso
inteiramente ainda, eu repetia em alto e bom som para ele: “Não
estamos fazendo nada para perder, Marley. Isto vale tudo. Vamos em
frente”. E eu o faria repetir a seqüência de co-mandos, com meu
ajudante Patrick batendo palmas e gritando para seu grande amigo
peludo e amarelo:
— Waddy!Hee-O!
Quando eu inscrevi Marley mais uma vez na escola de
adestramento, ele era um cão diferente do delinqüente juvenil que eu
levara antes. Sim, mesmo selvagem como um javali, desta vez ele
sabia que era eu quem comandava, e ele obedecia. Desta vez, não
haveria investidas contra outros cachorros (pelo menos não muitos),
nenhum ataque descontrolado pela pista, nenhum ataque às virilhas de
pessoas estranhas. Com aulas diárias, eu avancei pelos comandos com
rédea curta, e ele se sentia feliz — ou até mesmo esfuziante — em
cooperar. Na última aula, a adestradora — uma mulher tranqüila, a
antítese da Sra. Dominatrix — chamou-nos para frente.
— O.k. — ela disse —, mostre-nos o que sabe fazer.
Dei a ordem a Marley para se sentar e ele se sentou
perfeitamente sobre as patas traseiras. Ajustei o enforcador alto em sua
garganta e, com um puxão curto da guia, dei o comando para ele vir
junto a mim. Andamos pelo estacionamento, ida e volta, Marley ao
meu lado, seu ombro raspando na minha perna, exatamente como
estava escrito no livro. Dei o comando para ele se sentar novamente e
fiquei de pé na frente dele, e apontei meu dedo para sua testa:
— Fique — eu disse, calmamente e, com a outra mão, deixei cair a
guia.
Dei alguns passos para trás. Seus grandes olhos castanhos
estavam fixos em mim, esperando por qualquer sinal para que pudesse se
mover, porém permaneceu firme. Caminhei 360 graus em torno dele.
Ele tremia de ansiedade e tentou me acompanhar com a cabeça, à moda
de O Exorcista, para continuar de olho em mim, mas ele não se moveu.
Quando voltei a ficar na frente dele, apenas por diversão, estalei os
dedos e gritei:
— Entrando!
Ele se esparramou no chão como se estivesse se escondendo de
um ataque aéreo. A instrutora estourou na gargalhada, que era um bom
sinal. Dei as costas para ele e caminhei por uns nove metros. Eu podia
sentir seus olhos grudados nas minhas costas, mas ele agüentou firme.
Ele estava tremelicando muito quando me virei para encará-lo. Ele
estava a ponto de explodir como um vulcão. Então, afastando bem os
meus pés para esperar o que estava por vir, eu disse:
— Marley... — e esperei alguns segundos para criar expectativa.
— Venha!
Ele disparou com tudo em minha direção, e esperei pelo
impacto. No último instante, desviei do caminho dele com a graça de
um toureiro; ele passou direto por mim, e depois deu a meia-volta e veio
por trás e empurrou-me com o nariz.
— Bom menino, Marley! — exultei, caindo de joelhos. — Muito
bom menino! Você é um bom menino!
Ele dançava à minha volta como se tivéssemos acabado de escalar
o Monte Everest.
No fim da noite, a instrutora nos chamou e entregou-nos o nosso
diploma. Marley havia passado no treinamento de adestramento básico
em sétimo lugar na turma. E qual o problema se eram oito na classe e o
oitavo cachorro era um pit bull psicopata assassino que mataria o primeiro
ser humano que atravessasse a sua frente? Para mim estava bom. Marley,
meu cão incorrigível, não domesticável e indisciplinado havia concluído o
curso. Eu estava tão orgulhoso que seria capaz de chorar e, de fato, eu
teria chorado, se Marley não tivesse saltado e imediatamente engolido o
seu diploma.
No caminho de casa, cantamos We are the champions o mais alto
possível. Marley, percebendo meu orgulho e contentamento, enfiou sua
língua dentro da minha orelha. Pela primeira vez, eu não me importei.
Havia uma questão ainda não resolvida entre Marley e eu. Eu
precisava acabar com seu pior defeito: saltar em cima das pessoas. Não
importava se fosse um amigo ou um desconhecido, uma criança ou um
adulto, o funcionário da empresa de fornecimento elétrico ou o carteiro.
Marley saudava a todos do mesmo modo — atacando-os em plena
velocidade, deslizando pelo chão, saltando, e colocando suas patas sobre
o peito ou os ombros da pessoa, enquanto lambia a cara delas. O que
era uma gracinha quando ele era pequeno se tornou desagradável e até
mesmo atemorizante para algumas das pessoas que recebiam esse
ataque inesperado. Ele derrubara crianças, surpreendera convidados,
sujava as roupas dos nossos amigos, e também quase havia derrubado
minha frágil mãe. Ninguém gostava disso. Eu tentara, sem sucesso,
ensiná-lo a não saltar nas pessoas, utilizando técnicas de adestramento
padrão. A ordem não entrava na cabeça dele. Então, um antigo dono de
cachorros que eu respeitava muito me disse:
—Se você quer ensiná-lo a não fazer isso, dê uma joelhada no
peito dele da próxima vez que ele saltar sobre você.
—Eu não quero machucá-lo — respondi.
—Você não irá machucá-lo. Umas boas porradas com o joelho, e
eu garanto que ele pára de saltar.
Foi algo duro de fazer. Marley tinha de mudar ou se mudar. Na
noite seguinte, quando cheguei em casa do trabalho, entrei e gritei:
— Cheguei!
Como sempre, Marley veio disparado atravessando o assoalho de
madeira para vir me saudar. Ele escorregou os três últimos metros como
se estivesse numa pista de gelo, e então se ergueu para esborrachar suas
patas sobre meu peito e passar a língua na minha cara. Assim que suas
patas pousaram sobre mim, bati rápido com o joelho logo abaixo de sua
caixa torácica. Ele engasgou um pouco e deslizou até o chão, olhando
para mim com um ar magoado, tentando entender por que eu fizera isso.
Ele sempre pulara em cima de mim a vida inteira. Por que eu o atacara
de repente?
Na noite seguinte, repeti o baque. Ele saltou, eu levantei o joelho
contra o peito dele, e ele caiu no chão, tossindo. Achei que estava sendo
um tanto cruel, mas se eu iria salvá-lo dos anúncios de classificados,
sabia que teria de fazê-lo entender.
— Desculpe, rapaz — eu disse, abaixando-me para que ele pudesse
me lamber com as quatro patas no chão. — É para o seu próprio bem.
Na terceira noite, quando entrei em casa, ele veio correndo do
mesmo modo como costumava fazer. Desta vez, no entanto, ele mudara
sua rotina. Em vez de saltar, ele se manteve no chão e enfiou a cabeça
entre meus joelhos, quase me derrubando. Eu considerei isso uma
vitória.
— Você conseguiu, Marley! Você conseguiu! Bom menino! Você
não saltou!
Eu me abaixei para que ele pudesse me lamber à vontade sem o
risco de levar uma joelhada. Eu fiquei impressionado. Marley cedera ao
poder da persuasão.
Porém, o problema não se resolvera totalmente. Ele pode ter sido
curado de pular em cima de mim, mas não parara de pular em cima dos
outros. Ele era esperto o suficiente para entender que apenas eu
representei uma ameaça, e ele ainda poderia pular em cima do resto da
humanidade e continuar impune. Eu precisei ampliar minha ofensiva e,
para fazer isso, convoquei um amigo do trabalho, um jornalista chamado
Jim Tolpin. Jim era gentil, intelectual, meio careca, usava óculos e tinha
estatura mediana. Se havia uma pessoa que Marley imaginasse que ele
poderia pular em cima sem maiores conseqüências seria Jim. Na
redação, um dia, expus o plano. Ele deveria vir até minha casa depois
do trabalho, tocar a campainha da porta e entrar em seguida. Quando
Marley saltasse para cumprimentá-lo, ele deveria fazer o mesmo que eu.
— Não se acanhe — eu reforcei. — Não se pode ser sutil com
Marley.
Naquela noite, Jim tocou a campainha e entrou pela porta da
frente. Marley engoliu a isca e disparou, as orelhas voando para trás.
Quando saltou do chão para pular em cima dele, Jim fez exatamente o
que eu pedi Temendo que fosse bater sem força, ele meteu o joelho sobre
o plexo solar de Marley, derrubando-o no chão. Deu para ouvir o
barulho da outra sala. Marley grunhiu alto, os olhos arregalados,
totalmente esparramado no assoalho.
—Nossa, Jim — eu repliquei. — Você tem praticado kung-fu?
—Você me disse para não ter dó — ele respondeu.
E não teve mesmo. Marley se levantou, retomou o fôlego, e
saudou Jim do modo que um cão deve saudar alguém — com as quatro
patas no chão. Se ele pudesse dizer alguma coisa, juro que ele teria
reconhecido a derrota. Marley não pulou em mais ninguém, pelo menos
não na minha frente, e nunca mais ninguém precisou lhe dar uma
joelhada.
Um dia de manhã, não muito depois de Marley ter abandonado o
seu hábito de pular em cima das pessoas, eu acordei e minha mulher
estava de volta. Minha Jenny, a mulher que eu amava, que desaparecera
no meio daquela espessa bruma azul, havia voltado para mim. Da
mesma forma como a depressão pós-parto se instalou, acabou indo
embora. Como se ela tivesse sido exorcizada. Todos os demônios
haviam ido embora. Embora para sempre. Ela estava forte, pra cima,
não apenas enfrentando as situações de uma jovem mãe de dois filhos,
mas conseguindo fazer isso com sucesso. Marley caiu novamente nas
graças dela, pisando em terreno firme. Com um bebê em cada braço, ela
se inclinava para beijá-lo. Jogava varetas para ele pegar e fazia um molho
para ele com as sobras de hambúrguer. Dançava com ele na sala quando
começava a tocar uma música que ela gostasse. Às vezes, à noite,
quando ele estava calmo, eu a encontrava deitada no chão com a
cabeça apoiada no pescoço dele. Jenny havia voltado. Graças a Deus,
ela havia voltado.

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