16. O teste

Algumas coisas na vida são tão bizarras que só podem ser verdadeiras.
Assim, quando Jenny ligou para a redação para dizer que
Marley iria fazer um teste, eu sabia que ela não estaria inventando
aquilo. Mesmo assim, eu não acreditei:
—Um, o quê...? — perguntei.
—Um teste para um filme.
—Tipo... filme de cinema?
—É, de cinema, seu bobo — ela respondeu. — Um longametragem,
—Marley? Num longa-metragem?
Continuamos repetindo isso por algum tempo até eu conciliar a
imagem do nosso cabeçudo mordedor de tábuas de passar com a
imagem de um imponente sucessor de Rin Tin Tin saltando na tela
prateada, salvando crianças indefesas de edifícios em chamas.
— Nosso Marley? — perguntei novamente, só para ter absoluta
certeza.
E era verdade. Uma semana antes, a supervisora de Jenny no Palm
Beach Post ligara e dissera que tinha uma amiga que precisava que lhe
prestássemos um favor. Ela era fotógrafa, chamava-se Colleen McGarr e
fora contratada pela produtora de filmes Shooting Gallery de New York
para trabalhar em um filme que pretendiam rodar em Lake Worth, que
fica ao sul do lugar onde moramos. O trabalho de Colleen era encontrar
um “típico lar do sul da Flórida” e fotografado de todos os ângulos possíveis
— estantes, ímãs de geladeira armários, tudo — para ajudar aos diretores a
dar mais realismo ao seu filme.
—A equipe inteira é gay — confidenciou a chefe de Jenny. —
Eles querem entender como os casais que têm filhos vivem por aqui.
—Tipo um estudo antropológico — completou Jenny.
—Exatamente.
—Claro — Jenny concordou —, desde que eu não tenha de fazer
uma faxina em casa antes.
Colleen veio e começou a fotografar, não só o que tínhamos em
casa, mas a nós também. Como nos vestíamos, como nos penteávamos,
como nos sentávamos no sofá. Fotografou as escovas de dentes no
banheiro, os bebês em seus berços, e também o cachorro eunuco do
típico casal heterossexual. Ou ao menos o que conseguiu fotografar dele.
Como ela disse:
— Ele é meio indefinido.
Marley não poderia ficar mais entusiasmado em participar. Desde
que os bebês haviam invadido a casa, ele procurava carinho onde
pudesse encontrá-lo. Colleen poderia tê-lo furado com uma agulha:
enquanto recebesse atenção, estaria tudo bem para ele. Colleen, uma
amante de animais grandes, e sem medo de tomar banhos de saliva,
deu-lhe toda a atenção, atirando-se para rolar no chão com ele.
Enquanto Colleen fotografava, não pude deixar de pensar nas
possibilidades. Não apenas estávamos fornecendo dados antropológicos
em estado natural aos diretores, como estávamos contribuindo
pessoalmente com o elenco. Eu sabia que grande parte dos atores
coadjuvantes e todos os extras deste filme seriam contratados na cidade.
E se o diretor encontrasse um verdadeiro astro entre os ímãs de geladeira
e os pôsteres artísticos? Coisas mais estranhas do que isso já havia
acontecido.
Eu podia ver o diretor, que na minha imaginação se pareceria
bastante com Steven Spielberg, curvado sobre uma mesa imensa coberta
com centenas de fotos. Ele olha, impaciente, para todas elas,
resmungando:
— Lixo! Lixo! Isto não serve!
Então, ele pára em uma foto.
Nela vê um rude, sensível e típico macho heterossexual, que é chefe
de família. O diretor aponta com veemência para a foto e grita para seus
assistentes:
— Tragam-me este homem! Preciso tê-lo em meu filme!
Quando conseguem me encontrar, humildemente hesito antes de
aceitar o papel principal. Afinal, o show deve continuar.
Colleen agradeceu por havermos aberto nossa casa para ela e foi
embora. Ela não nos deu nenhum motivo para que acreditássemos que
ela ou qualquer outra pessoa associada ao filme entraria em contato
conosco novamente. Nosso dever tinha sido cumprido. Porém, alguns
dias mais tarde, Jenny me ligou no trabalho e disse:
— Acabei de falar com Colleen McGarr, e você NÃO vai acreditar.
Não tive dúvida de que simplesmente eu havia sido descoberto.
Meu coração saltou.
—Continue — eu disse.
—Ela disse que o diretor quer que Marley faça um teste.
—Marley? — perguntei, certo de que havia ouvido mal.
Ela não pareceu notar o desânimo em minha voz.
—Aparentemente, ele está procurando por um cão grande, bobo
e retardado, para fazer o papel do animal de estimação da família, e
Marley chamou a atenção dele.
—Retardado? — perguntei.
—Foi isso o que Colleen disse que ele quer. Grande, bobo e
retardado.
Bem, ele, com certeza, havia escolhido certo.
—Colleen disse se ele mencionou algo a meu respeito? —
perguntei.
— Não — Jenny respondeu. — Por que ele mencionaria algo?
Colleen apanhou Marley no dia seguinte. Sabendo da
importância de uma boa entrada, ele atravessou a sala feito um rojão
para cumprimentá-la, parando apenas para abocanhar uma almofada
mais próxima, porque nunca se sabe quando um diretor ocupado irá
precisar tirar uma soneca rápida e, se fosse o caso, Marley queria estar
preparado.
Ao tocar o assoalho de madeira, ele deslizou, só parando ao
trombar na mesinha de centro, alçou vôo de novo, espatifou-se contra a
cadeira, caiu de costas, rolou, empertigou-se novamente, e meteu a cabeça
entre as pernas de Colleen. Pelo menos, ele não saltou em cima dela: isso
eu pude reparar.
— Tem certeza de que não quer que eu aplique um calmante? —
Jenny perguntou.
O diretor queria vê-lo em seu estado normal, sem qualquer
medicação, insistiu Colleen, e lá foi ela com nosso cão
desesperadamente feliz ao seu lado, em seu jipe vermelho.
Duas horas depois, Colleen e companhia estavam de volta e o
veredicto foi o seguinte: Marley passara no teste.
— Como assim? — Jenny esganiçou. — Como assim, ele passou?
Nosso júbilo não diminuiu nem um pouco quando Colleen nos
disse que Marley era o único concorrente para o seu papel. Nem
quando nos contou que este seria o único a não ser pago do elenco.
Eu perguntei a ela como havia sido o teste.
— Eu pus Marley no carro e foi como se estivesse dirigindo em
uma banheira — ela relatou. — Ele babou o tempo todo em cima de
tudo. Quando cheguei com ele, eu estava encharcada.
Quando eles chegaram ao estúdio de produção no Hotel
GulfStream, um antigo marco turístico com vista para a Intracoastal
Waterway, Marley imediatamente impressionou a equipe saltando do jipe
e cruzando o pátio do estacionamento de forma tão irregular como se
estivesse esperando um ataque aéreo começar a qualquer momento.
—Ele estava simplesmente eufórico — ela disse —-, totalmente
fora de si.
—Sim, ele sempre fica um pouco ansioso — eu respondi.
Em determinado momento, ela contou, Marley agarrou um talão
de cheques da mão de um dos membros da equipe e saiu correndo,
dando voltas, desembestado, como se dessa forma ele conseguisse
garantir o seu pagamento.
— Nós o chamamos de nosso Labrador fujão — Jenny se
desculpou, com um sorriso que só uma mãe orgulhosa daria.
Marley acabou se acalmando o suficiente para convencer todo
mundo que ele poderia fazer o papel, que seria basicamente ser ele
mesmo. O filme iria se chamar A Ultima Jogada, uma ficção sobre
beisebol no qual um senhor de 79 anos que vive em uma casa de repouso
se torna um garoto de doze anos por cinco dias para viver seu sonho de
jogar em um campeonato pela sua liga. Marley seria o cão hiperativo da
família do treinador do time, interpretado pelo agarrador aposentado da
liga profissional, Gary Carter.
— Eles realmente querem que Marley participe do filme? —
perguntei, ainda incrédulo.
— Todo mundo o adorou — respondeu Colleen. — Ele é perfeito.
Nos dias que antecederam a filmagem, notamos uma mudança
sutil na atitude de Marley. Uma estranha calma tomou conta dele.
Como se ter passado no teste tivesse lhe dado uma nova confiança. Ele
estava se comportando de modo quase imperial.
— Talvez ele apenas precisasse que alguém acreditasse nele — eu
disse a Jenny.
Se alguém acreditava nele, esse alguém era ela, Dona Mãe de
Palco Extraordinária. Antes de chegar o primeiro dia de filmagem, ela
dava banhos, escovava-o, cortava as unhas e limpava as suas orelhas.
Na manhã em que começava a filmagem, eu saí do quarto, e vi
Jenny e Marley enrascados como se estivessem em um combate mortal,
rolando no chão. Ela o prendera entre os joelhos apertando as suas
costelas e com uma das mãos puxava a corrente do enforcador,
enquanto ele se debatia. Era como se eu estivesse assistindo a um
rodeio no meio da minha sala de estar.
—Em nome de Deus, o que é que você está fazendo?
—O que é que lhe parece? — ela respondeu, rápido. — Escovando
os dentes dele!
Realmente, ela estava com uma escova de dente na outra mão e
estava fazendo o possível para escovar seus imensos dentes brancos,
enquanto Marley, babando a mais não poder, mastigava a escova. Ele
parecia absolutamente enlouquecido.
—Você está usando pasta de dente? — perguntei, que, evidente,
pedia outra pergunta melhor. — E como é que você pretende fazê-lo cuspir
tudo isso?
—E bicarbonato — ela replicou.
—Graças a Deus — respondi. — Então ele não está com um
ataque de raiva?
Uma hora mais tarde, saímos em direção ao Hotel GulfStream, os
meninos sentados em suas cadeirinhas e Marley entre eles, resfolegando
com um hálito fresco completamente inusitado. Nossas instruções eram
para chegar até às nove da manhã, mas no quarteirão seguinte, o
trânsito parou. Acima, na estrada, havia uma barricada e um policial
desviava os carros do hotel. A filmagem havia sido bastante divulgada
no jornal — o maior evento a acontecer na adormecida Lake Worth
desde que Corpos quentes fora filmado havia quinze anos no mesmo
local — e uma multidão de espectadores apareceu para prestigiar. A
polícia estava desviando todo mundo. Andamos lentamente pelo
trânsito, e quando finalmente chega-mos ao guarda, abri a janela e
disse:
—Precisamos passar.
—Ninguém passa — ele respondeu. — Continue rodando. Vamos.
—Temos alguém do elenco conosco — eu disse.
Ele nos lançou um olhar cético, um casal numa minivan com dois
bebês e um cão domesticado a tiracolo.
—Eu disse para ir rodando! — ele repetiu.
—Nosso cão está no filme — eu insisti.
De repente, ele me encarou de outro modo:
—O cão está com você? — ele perguntou.
O cão estava na lista de nomes autorizados dele.
—O cão está comigo — respondi. — O cão Marley.
—Interpretando a ele mesmo — Jenny acrescentou.
Ele se virou e tocou seu apito com enorme alarido:
— O cão está com ele! — ele gritou a outro guarda, meio
quarteirão adiante. — O cão Marley!
E o outro guarda, por sua vez, gritou para mais alguém à frente:
—O cão está com ele! O cão Marley está aqui!
—Deixem este carro passar! — um terceiro policial gritou de
longe.
—Deixem este passar! — o segundo policial repetiu.
O guarda retirou a barricada e acenou para que passássemos.
— Venham por aqui! — ele disse, educadamente.
Eu me senti parte da família real. Ao passar por ele, ele repetiu
mais uma vez, como se não conseguisse acreditar:
— O cão está com ele!
No pátio do estacionamento em frente ao hotel, a equipe de
filmagem estava pronta para rodar. Cabos atravessavam o chão; tripés
de câmeras e gruas de microfones haviam sido instalados. Lâmpadas
dependuravam-se do alto. Havia trailers com cabides de roupas
penduradas. Haviam montado duas grandes mesas com comida e
bebida à sombra para o elenco e a equipe de produção. Pessoas com ar
importante usando óculos escuros passeavam de um lado para outro. O
diretor Bob Gosse nos cumprimentou e nos deu uma rápida prévia da
cena que iria ser rodada. Era bastante simples: uma minivan
encostava no meio-fio, a dona de mentirinha de Marley, interpretada
pela atriz Liza Harris, está na direção. Sua filha, interpretada por uma
linda adolescente chamada Danielle, que era da escola de teatro da
cidade e seu filho, outro jovem ator local de pelo menos nove anos de
idade, estão no banco de trás com o cão da família, interpretado por
Marley. A filha abre a porta de correr e desce do carro; seu irmão a
segue, puxando Marley pela guia. Eles se afastam da câmera. Final da
cena.
— Bastante fácil — eu disse ao diretor. — Ele deverá conseguir
fazê-la, sem problema.
Puxei Marley para o lado para esperar por sua deixa para entrar
na van.
— O.k., pessoal, ouçam aqui — Gosse disse para a equipe. — O
cão é um pouco doido varrido, está bem? Mas a menos que ele estrague
toda a cena, vamos continuar rodando.
Ele explicou seu ponto de vista: Marley era o filé mignon — um
típico cão de família — e o objetivo era captá-lo se comportando como
um típico cão de família se comportaria saindo em condições normais
com a família. Sem interpretação ou direção; um cinema puro e
verdadeiro.
— Deixe-o fazer o que ele quiser — ele explicou —, e façam o que
tiverem de fazer a partir dele.
Quando todo mundo estava pronto para começar a filmar,
coloquei Marley na van e dei sua guia de náilon para o menino, que fez
um ar apavorado por ter de segurá-lo.
— Ele é bonzinho — eu disse a ele. — Ele apenas vai querer
lambê-lo, vê?
Coloquei meu pulso em frente à boca de Marley para mostrar
como ele fazia.
Tomada um: A van se aproxima do meio-fio. No instante em que a
filha abre a porta lateral, uma mancha amarela dispara como uma bola
de pêlo gigante atirada por um canhão e zune na frente das câmeras,
arrastando uma guia vermelha atrás dele.
— Corta!
Eu cacei Marley no fim do estacionamento e arrastei-o de volta.
— O.k., amigos, vamos tentar fazer a mesma cena novamente —
disse Gosse.
Então, ele se virou para o menino e disse, gentilmente:
— O cão é um demônio. Tente segurá-lo mais firme desta vez.
Tomada dois: A van se aproxima do meio-fio. A porta se abre
deslizando para o lado. A filha apenas começa a sair quando Marley
surge e salta na frente dela, desta vez arrastando o pálido menino atrás
dele.
— Corta!
Tomada três: A van estaciona. A porta desliza para o lado. A filha
sai. O menino sai, segurando a guia. Quando ele dá um passo para fora
da van, a guia se estica para dentro, mas o cão não sai. O menino
começa a puxar com força. Ele se dobra à frente e puxa com toda a
força. A guia não se mexe. Passam-se longos e dolorosos segundos. O
garoto faz uma careta e vira para a câmera.
— Corta!
Eu olhei dentro da van e vi Marley lambendo-se onde nenhum
macho deveria se lamber. Ele se virou candidamente para mim como se
dissesse: “Não dá pra ver que estou ocupado?”
Tomada quatro: Coloco Marley no banco de trás da van com o
menino e fecho a porta. Antes que Gosse grite “Ação!”, ele interrompe
por alguns minutos para falar com seus assistentes. Finalmente,
começam a rodar a cena. A van estaciona junto ao meio-fio. A porta se
abre para o lado. A filha sai. O filho sai, mas com um olhar estupefato.
Ele olha direto para a câmera e levanta uma das mãos. Nela está
dependurada metade da guia, a ponta esgarçada e encharcada de
saliva.
— Corta! Corta! Corta!
O menino explicou que, enquanto ele esperava dentro da van,
Marley começou a morder a guia sem parar. A equipe e o elenco
olhavam para a guia estraçalhada sem acreditar, um misto de espanto
e horror tomou conta deles como se tivessem acabado de testemunhar
uma grande e misteriosa manifestação de uma força da natureza. Eu, por
outro lado, não me surpreendi nem um pouco. Marley havia destruído
mais guias e cordas do que eu conseguia contar; ele mordeu até mesmo
um cabo de aço revestido de borracha que havia sido anunciado como
sendo “usado na indústria aérea”. Logo depois de Connor nascer, Jenny
voltou para casa com o novo produto, um arreio de viagem para
cachorros que lhe permitiria atar Marley no cinto de segurança do carro
para que ele não se mexesse com o carro em movimento. Nos primeiros
noventa segundos em que ele usou o novo equipamento, conseguiu
mastigar não apenas o pesado arreio, mas o cinto de segurança da
nossa mini van novinha em folha.
— O.k., todo mundo, vamos fazer um intervalo! — exclamou
Gosse.
Virando-se para mim, ele perguntou, numa voz
surpreendentemente calma:
— Em quanto tempo consegue arranjar outra guia para ele?
Ele não precisava me contar quanto cada minuto perdido custava
para ele enquanto os atores e equipe de produção ficavam parados.
— Há uma loja de animais a poucos metros daqui — respondi. —
Dá pra voltar em quinze minutos.
— E desta vez compre algo que ele não consiga mastigar — ele
recomendou.
Voltei com uma corrente pesada que se assemelhava mais a algo
que um treinador de leões usaria, e a filmagem continuou, tomada após
tomada, todas mal sucedidas. Cada cena era pior que a anterior. Em
determinado momento, Danielle, a atriz adolescente, soltou um guincho
desesperado no meio da cena e gritou, realmente horrorizada:
—Oh, meu Deus! Ele está com tudo para fora!
—Corta!
Em outra cena, Marley estava arfando tão alto sentado aos pés de
Danielle, enquanto ela falava ao telefone com o namorado, que o
engenheiro de som arrancou os fones de ouvido, desgostoso e reclamou
bem alto:
—Não consigo ouvir nenhuma palavra do que ela está dizendo.
Tudo que consigo ouvir é uma respiração resfolegante. Parece um filme
pornô.
—Corta!
Assim se passou o primeiro dia de filmagem. Marley foi um
desastre, incorrigível e indesculpável. Por um lado, eu me defendia:
“Bem, o que eles esperavam dele de graça? O cão Benji?”, e por outro,
eu estava mortificado. Eu olhava de esguelha para o elenco e para a
equipe de filmagem e podia ver claramente na expressão deles: “De onde
saiu este animal, e como conseguimos nos livrar dele?”. Ao final do dia,
um dos assistentes, segurando uma plaqueta na mão, nos disse que a
escalação para a manhã seguinte ainda estava em aberto.
— Não precisa se preocupar em vir amanhã — ele disse. — Nós
chamaremos vocês se precisarmos do Marley.
E para ter certeza de que não houvesse confusão, ele repetiu:
— Só venha se nós ligarmos para vocês, entendeu?
Sim, eu entendi, em alto e bom som. Gosse mandou seu ajudante
nos dispensar. A carreira promissora de ator de Marley havia
terminado. Não que eu pudesse culpá-los por isso. Com a exceção da
cena em Os Dez Mandamentos em que Charlton Heston abre o Mar
Vermelho, Marley causou o maior pesadelo logístico da história do
cinema. Ele causou não sei quantos milhares de dólares em atrasos
inúteis e perda de filme. Ele lambrecou inúmeras roupas, atacou a
mesa de comida, e quase derrubou uma câmera de trinta mil dólares no
chão. Eles cortaram os prejuízos nos cortando de cena. Era a velha
rotina conhecida como “Não nos chame, nós chamamos você”.
— Marley — eu disse, ao chegarmos em casa, — esta era sua
grande chance e você a estragou.
Na manhã seguinte, eu ainda estava lamentando nossos sonhos de
estrelato perdido quando o telefone tocou. Era o assistente, dizendonos
para levarmos Marley até o hotel o mais rápido possível.
—Você quer dizer que querem que ele volte? — perguntei.
—Imediatamente — ele respondeu. — Bob quer que ele esteja
na próxima cena.
Cheguei trinta minutos depois, sem conseguir acreditar que
haviam nos pedido para voltar. Gosse estava eufórico. Ele assistira às
tomadas da véspera e não poderia estar mais feliz:
— O cão foi incrível! — ele exclamou. — Simplesmente hilário!
Um gênio da sandice!
Eu me senti orgulhosíssimo.
— Sempre soubemos que ele possuía um talento natural — Jenny
respondeu.
A filmagem continuou em Lake Worth por mais alguns dias, e
Marley continuava sendo o destaque. Ficávamos nos bastidores com os
outros pais e acompanhantes, conversando, trocando idéias, e fazendo
silêncio absoluto quando o diretor assistente gritava:
— Todos prontos para rodar!
Quando ouvíamos a expressão “Corta!”, a festa continuava.
Jenny conseguiu até mesmo que Gary Carter e Dave Winfield, o astro
do Hall da Fama do Beisebol que estava fazendo uma ponta no filme,
assinasse uma bola para cada um dos meninos.
Marley estava chegando ao estrelato. A equipe, especialmente as
mulheres, ficavam pararicando ele. O tempo estava muito quente, e um
dos assistentes recebeu a incumbência exclusiva de seguir Marley por
toda parte com um prato e uma garrafa de água mineral, dando-lhe de
beber à vontade. Todo mundo, pelo que parecia, dava-lhe de comer dos
pratos do bufê. Eu o deixei com a equipe de filmagem por duas horas
enquanto corri no trabalho, e ao voltar encontrei-o todo esparramado
como o Rei Tut, as patas viradas para o ar, com a barriga sendo coçada
pela linda maquiadora.
— Ele é tão gracinha! — ela arrematou.
O estrelato começara a me subir à cabeça também. Passei a me
apresentar como o “dono do cão Marley” e a dizer coisas como “Para o
próximo filme dele, esperamos que ele possa latir”. Durante um
intervalo das filmagens, entrei no saguão do hotel para usar o telefone
público. Marley estava sem a guia e cheirando a mobília a poucos
metros de distância. O gerente, confundindo o meu astro com um cão
qualquer, barrou-o e tentou enxotá-lo pela porta lateral:
— Saia daqui! — ele gritou. — Suma!
— Desculpe-me? — perguntei, colocando a mão sobre o bocal do
telefone e encarando o gerente do hotel. — Você sabe com quem está
falando?
Ele ficou no set de filmagem por quatro dias, e quando nos
disseram que todas as cenas de Marley haviam terminado e seus préstimos
não seriam mais necessários, Jenny e eu nos sentíamos parte da família
da Shooting Gallery. Verdade que éramos os únicos membros não
remunerados da família, mas membros mesmo assim.
—Nós amamos vocês! — exclamou Jenny a todos que pudessem
ouvir, enquanto colocávamos Marley dentro da nossa minivan.
—Mal posso esperar para ver a edição final!
Mas nós esperamos. Um dos produtores nos disse para deixar
passar uns oito meses e então ligar que eles nos remeteriam uma cópia
antecipada do filme. Oito meses depois, quando liguei, no entanto, uma
atendente deixou-me esperando por vários minutos para dizer no final:
— Por que você não liga novamente daqui a dois meses?
Esperei e liguei, esperei e liguei, mas cada vez me pediam para
ligar dali a algum tempo. Comecei a achar que estava assediando, e
poderia imaginar a recepcionista, com a mão cobrindo o telefone e
sussurrando para Gosse, na mesa de edição:
— E o dono daquele cachorro doido varrido novamente. O que
quer que eu diga a ele desta vez?
Por fim, parei de telefonar, resignando-nos de que nunca
veríamos A Ultima Jogada, achando de que ninguém veria, que o projeto
fora abandonado na sala de edição por conta do imenso desafio de tentar
tirar aquele cão estúpido de cada cena. Passaram-se dois anos inteiros
até finalmente ter a chance de ver as qualidades de interpretação de
Marley.
Eu estava na Blockbuster quando, de repente, resolvi perguntar
ao atendente se ele conhecia um filme chamado A Vitima Jogada. Não
apenas ele conhecia, como tinha o filme disponível em estoque. De fato,
fora uma sorte, pois nenhuma cópia havia sido retirada.
Somente depois eu descobri o lado triste da história. Incapaz de
captar um distribuidor nacional, a Shooting Gallery não teve outra
escolha senão relegar a estréia de Marley no cinema ao destino mais
cruel. A Última Jogada fora produzido direto em vídeo. Eu não me
importei. Corri até em casa com uma cópia e gritei para Jenny e as
crianças para se reunirem em torno da televisão. Ao todo, Marley
passava menos de dois minutos em cena, mas devo dizer que foram os
melhores de todo o filme. Nós rimos, choramos e comemoramos!
—Waddy, é você! — gritou Connor.
—Estamos famosos! — berrou Patrick.
Marley, sempre despretensioso, continuou sem se deixar
impressionar. Ele bocejou e arrastou-se debaixo da mesinha de centro.
Quando o filme acabou e começaram a rolar os créditos, ele estava
dormindo a sono solto. Esperamos com a respiração suspensa enquanto
os nomes de todos os atores (humanos) passavam. Por um minuto,
acreditei que nosso cão não iria merecer seu crédito. Mas, de repente,
apareceu, escrito em letras maiúsculas, de um lado a outro da tela,
para que todos vissem: “O cão Marley... Como Ele Mesmo”.

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