17. Na terra de Bocahontas

Um mês após as filmagens de A Ultima Jogada terem terminado,
dissemos adeus a West Palm Beach e a todas as suas lembranças.
Houve mais dois assassinatos a um quarteirão de casa, mas acabou
sendo a confusão e não o crime o que nos tirou de nosso pequeno
bangalô na Churchill Road. Com duas crianças e toda a tralha que se
carrega junto com elas, estávamos literalmente atulhados até o teto. A
casa havia adquirido o pálido brilho de um outlet da fábrica de
brinquedos Toys “R” Us. Marley pesava 44 quilos, e não conseguia se
mover sem derrubar alguma coisa. A casa tinha dois quartos e
acreditamos, ingenuamente, que os meninos poderiam dividir o
segundo quarto. Mas, quando um começou a acordar o outro,
duplicando nossas aventuras noturnas, transferimos Conor para um
espaço entre a cozinha e a garagem. Oficialmente, aquele era o meu
“escritório de casa”, onde eu tocava violão e pagava contas. Para
qualquer pessoa, no entanto, não tinha desculpa: havíamos colocado o
nosso bebê no corredor. Isso parecia horrível. O corredor estava apenas
um pouco acima da garagem, o que, por sua vez, era quase um sinônimo
para celeiro. E que tipo de pais poria seu filho em um celeiro? O
corredor soava como um local inseguro: um lugar onde passava uma
correnteza de ar — e tudo o mais que viesse com ela. Sujeira, alergias,
insetos, morcegos, criminosos, pervertidos. O corredor era um lugar
onde se poderia esperar encontrar latas de lixo e tênis molhados. E, de
fato, era o lugar onde mantínhamos as vasilhas de água e de comida de
Marley, mesmo depois de termos colocado Conor ali, não porque fosse
um lugar adequado somente para um animal, mas apenas porque era o
lugar onde Marley se acostumara a tê-los.
Nosso corredor-berçário soava como uma descrição de conto de
Charles Dickens, mas na verdade não era tão ruim assim; até era
bastante charmoso. Originalmente, havia sido construído como uma
passagem coberta entre a casa e garagem, e os antigos proprietários a
haviam fechado há alguns anos. Antes de designá-la como berçário,
substituí as telas de plástico por janelas modernas. Pendurei cortinas
novas e apliquei uma nova camada de tinta. Jenny cobriu o chão com
tapetes macios, pendurou quadrinhos alegres, e móbiles interessantes no
teto. Mas mesmo assim, o que parecia? Nosso filho estava dormindo no
corredor, enquanto o cachorro tinha acesso direto ao quarto do casal.
Além disso, Jenny estava agora trabalhando meio expediente para
a seção de cinema do Post e na maior parte do tempo em casa, ela
tentava cuidar dos filhos e desenvolver uma carreira ao mesmo tempo. E
por isso fazia sentido colocá-lo próximo ao meu escritório.
Concordamos que já era hora de mudar.
A vida é cheia de pequenas ironias, e uma delas era o fato de que,
depois de passar meses procurando, escolhemos uma casa na cidade do
sul da Flórida que eu havia ridicularizado publicamente. Este lugar era
Boca Raton que, traduzido do espanhol quer dizer literalmente “Boca do
Rato”. E que boca!
Boca Raton era um rico bastião republicano habitado em grande
parte por recém-chegados de Nova Jersey e Nova York. A maior parte
do dinheiro da cidade era dinheiro novo, e a maioria que possuía esse
dinheiro não sabia gastá-lo sem passar por ridículo. Boca Raton era
uma terra de luxuosos sedãs, carros esportes vermelhos, mansões corde-
rosa apertadas em pequenos terrenos e edifícios com guardas
postados em seus portões. Os homens preferiam calças de linho e
mocassins italianos sem meias, e gastavam uma incrível quantidade de
tempo fazendo ligações de celular a torto e a direito como se estivessem
discutindo os assuntos mais importantes. As mulheres eram
exageradamente bronzeadas, no mesmo tom das bolsas de couro
Gucci que mais gostavam, contrastando a pele escura com o cabelo
tingido em alarmantes tons platinum blonde.
A cidade fervilhava com cirurgiões plásticos, que possuíam as
maiores mansões e os sorrisos mais largos. Para as mulheres bem
conservadas de Boca Raton, os implantes de seios eram uma exigência
tácita para estabelecer residência no local. Todas as mulheres mais
jovens tinham bustos magníficos; todas as mulheres mais velhas tinham
bustos magníficos e plásticas faciais. Escultura de nádegas, plásticas de
nariz, barrigas alisadas, e maquiagem permanente delineavam a
variedade cosmética, dando à população feminina da cidade a estranha
aparência de soldados rasos de um exército de bonecas infláveis
anatomicamente perfeitas. Como eu cantei certa vez numa paródia que
escrevi para uma matéria do jornal, “Lipoaspiração e silicone são os
melhores amigos da mulher de Boca Raton”.
Em minha coluna eu fazia piada ao estilo de vida de Boca,
começando pelo próprio nome da cidade. Os moradores na verdade
nunca a chamavam de Boca Raton. Eles simplesmente se referiam a ela
pelo apelido familiar de “Boca”. E não o pronunciavam como o dicionário
indicava que deveriam, com um “O” mais longo, Bo-ca. Em vez disso,
davam uma inflexão suave, nasal, bem ao estilo de Jersey: “Bouca!”,
assim: “Ah, as árvores cortadas são liiiindas aqui eu Bouuuca!”.
O desenho animado da Disney Pocahontas estava passando nos
cinemas na época, e eu lancei uma paródia com o tema da princesa
indígena, que batizei de “Bocahontas”. Minha protagonista bronzeada
era uma princesa dos subúrbios que dirigia uma BMW cor-de-rosa,
com o busto rijo e cirurgicamente esculpido, apoiado-o sobre a
direção do carro, o que lhe permitia dirigir sem pôr as mãos no
volante, falando em seu celular e ajeitando o cabelo platinado no
espelho retrovisor, enquanto acelerava para o salão de bronzeamento.
Bocahontas vivia em uma tenda de tons pastel, exercitava toda manhã
no ginásio tribal — mas apenas se ela pudesse estacionar a menos de
três metros de distância da porta de entrada — e passava as tardes
procurando casacos de pele, com um cartão AmEx na mão, em sua
área de caça preferida conhecida como Town Center Mall.
— Enterrem meu Visa no Parque Mizner — dizia Bocahontas
solenemente em uma de minhas colunas, uma referência ao shopping
mais badalado da cidade.
Em outra, ela ajusta seu sutiã de pele de animal e faz uma campanha
para fazer uma cirurgia plástica com direito a desconto no imposto de
renda.
Minha caracterização era cruel. Era impiedosa. Era apenas um pouco
exagerada. As Bocahontas da vida real eram a maiores fãs desses artigos,
tentando imaginar qual delas havia inspirado minha heroína ficcional.
(Nunca vou revelar.) Eu era normalmente convidado para falar diante de
associações e grupos comunitários e, invariavelmente, alguém se erguia e
perguntava:
— Por que você odeia tanto Bouca?
Não era que eu odiasse Boca, eu respondia; eu apenas adorava
uma boa piada. Nenhum outro lugar no mundo poderia me dar o
material que eu precisava como a rosada “Boca de Rato”.
Então, parecia fazer sentido que, quando Jenny e eu finalmente
escolhemos uma casa, ela fosse no meio da cidade, entre as propriedades
marinhas do lado leste e as comunidades fechadas por trás de grades do
lado oeste de Boca Raton (que eu caçoava apontando a grande
preocupação dos moradores com seu endereço postal, que ficavam fora
dos limites da cidade no condado de Palm Beach onde ainda não havia
incorporações mobiliárias). Nossa nova vizinhança ficava em uma das
poucas áreas de classe média da cidade, e seus moradores gostavam de
brincar com certo esnobismo às avessas, de que estariam do lado errado
de ambos os lados do trilho. De fato, havia duas linhas de trem, uma
delimitando a região leste da vizinhança, e outra a oeste. A noite,
podíamos ouvir os trens de carga deslizando sobre os trilhos indo e
voltando de Miami, ao nos deitarmos para dormir.
— Você está doida.7 — perguntei a Jenny. — Não podemos nos
mudar para Boca! Vou ser escorraçado da cidade. Eles vão servir minha
cabeça sobre um leito de folhas de alface orgânicas mesclun.
— Ah, deixe disso — ela respondeu. — Você está exagerando de
novo.
Meu jornal, o Sun-Sentinel, era o principal de Boca Raton,
muito à frente do Miami Herald, do Palm Beach Post ou mesmo do
local Boca Raton News em termos de circulação. Meus artigos eram
muito lidos na cidade e nas localidades a oeste e, como minha foto
aparecia acima da coluna, eu era sempre reconhecido. Eu não achei que
estivesse exagerando.
— Eles vão arrancar minha pele e pendurar meu esqueleto em
frente à Tiffany’s — respondi.
Mas nós estávamos procurando fazia meses, e esta era a primeira
casa que se adequava a todas as nossas exigências. Tinha o tamanho
certo pelo preço certo e no local certo, estrategicamente localizada entre
os dois escritórios onde eu dividia o meu tempo. As escolas públicas
eram tão boas quanto as do sul da Flórida, e apesar de todas as suas
superficialidades, Boca Raton tinha excelentes parques, incluindo
algumas das praias oceânicas mais preservadas da área metropolitana
entre Miami e Palm Beach. Com um pouco mais do que um incômodo
pessoal, eu concordei em ir adiante com a compra. Eu me senti como
um agente não tão secreto se infiltrando no acampamento inimigo. O
bárbaro iria passar pelos portões, um indesculpável crítico de Boca
adentrando a festa dos moradores de Boca. Quem poderia culpá-los por
não me querer entre eles?
Quando chegamos, eu me esgueirei pela cidade com sentimento
de culpa, convencido de que todos os olhos estavam me perseguindo.
Minhas orelhas queimavam, imaginando que pessoas sussurrassem ao me
ver passar. Depois que eu escrevi uma coluna dando as boas-vindas a
mim mesmo à vizinhança (e engolindo um monte de sapos ao fazer isso),
recebi inúmeras cartas dizendo coisas como, “Você emporcalha a nossa
cidade e agora quer morar aqui? Que hipócrita sem-vergonha que você
é!” Eu tive de admitir que eles tinham razão. Um colega de trabalho não
conseguiu deixar de me confrontar:
— Então — ele disse, sorrindo maliciosamente —, você decidiu
que a decadente Boca não é um lugar tão ruim assim, afinal? Os
parques, o índice de imposto de renda, as escolas, as praias e o
zoneamento, isso tudo deixa de ser ruim quando se resolve comprar uma
casa, não é?
Tudo que eu pude fazer era me esquivar e dar a mão à palmatória.
Eu logo descobri, no entanto, que a maioria dos meus vizinhos do
lado errado de ambos os trilhos de trem se sentiam solidários com os
ataques por escrito que eu recebia, o que um deles chamou de
“grosseiros e vulgares” . Logo pude me sentir em casa.
Nossa casa, construída na década 1970, tinha quatro quartos, o
dobro da metragem da nossa primeira residência, mas não o mesmo
charme. O lugar, no entanto, podia ser melhorado, e gradualmente
colocamos a nossa marca nele. Arrancamos o carpete que ia de um lado
a outro, e instalamos assoalhos de carvalho na sala de estar e lajotas
italianas nos outros quartos.
Substituímos as horrendas portas de deslizar de vidro por portas de
varanda envernizadas, e eu lentamente transformei o decaído quintal da
frente em um jardim tropical, ostentando arbustos de gengibre,
helicônias e pés de maracujá, que atraíam a admiração de borboletas e
transeuntes.
Os dois melhores aspectos da nossa nova casa não tinham nada a
ver com a casa propriamente dita. Através da janela da sala de estar
podia-se ver um pequeno parque municipal cheio de brinquedos
infantis cercados por altíssimos pinheiros. As crianças adoraram ir lá. E
no quintal dos fundos, exatamente em frente às novas portas
envernizadas, havia uma piscina. Não pensávamos em ter uma,
considerando os riscos para nossos infantes, e Jenny fez o corretor ficar
estarrecido quando ela sugeriu fechá-la. Nossa primeira ação no dia em
que nos mudamos foi cercar a piscina com uma grade de um metro e
vinte de altura, digna de uma prisão de segurança máxima. Os meninos
— Patrick acabara de fazer três anos de idade e Conor tinha dezoito
meses quando nos instalamos na casa — se adaptaram à água como
uma dupla de golfinhos. O parque se tornou uma extensão do nosso
quintal e a piscina uma extensão da estação temperada que tanto
gostávamos. Uma piscina na Flórida — logo nós descobrimos —, fazia a
diferença entre simplesmente suportar os tórridos meses de verão e
passar a desfrutá-los de fato.
Ninguém amava a piscina do quintal dos fundos mais do que
nosso cão de água, aquele orgulhoso descendente dos pegadores de
peixe, que auxiliavam os pescadores cortando as ondas do mar ao
largo da costa da Terra Nova. Se o portão da piscina estivesse aberto,
Marley saltava na água, disparando desde a saleta de televisão,
voando pelas portas duplas e, pulando do chão de tijolos, caía de
barriga, jogando água para todos os lados. Nadar com Marley era uma
aventura potencialmente ameaçadora à integridade física, como se
estivéssemos trombando com um transatlântico. Ele avançaria com
tudo para cima de quem estivesse à sua frente, colocando suas patas
adiante. Imaginava-se que ele fosse desviar no último minuto, mas
simplesmente se arremessava tentando passar por cima. Se
estivéssemos com a cabeça para fora d’água, ele nos empurrava para
baixo.
— O que você pensa que eu sou? Um trampolim? — eu
perguntava, e eu o pegava nos braços para que ele recuperasse seu
fôlego, ainda movendo as patas dianteiras em piloto-automático,
enquanto lambia a água do meu rosto.
Uma coisa que a nova casa não tinha era um abrigo à prova de
Marley. Em nossa antiga casa, a garagem de concreto aparente com
espaço para um carro era um bocado indestrutível, e tinha duas janelas,
o que mantinha o ambiente confortável mesmo quando fazia muito calor
no verão. Nossa casa em Boca tinha uma garagem para dois carros, mas
era inadequada para alojar Marley ou qualquer outra forma de vida que
não suportasse temperaturas acima de 65° C. A garagem não tinha
janelas e ficava muito quente. Além disso, era feita de estuque, não de
concreto, e que Marley já havia provado ser um especialista em pulverizála.
Seus ataques de pânico por causa dos trovões estavam simplesmente
piorando, apesar dos tranqüilizantes.
A primeira vez que o deixamos sozinho em nossa nova casa,
colocamo-lo trancado na lavanderia, ao lado da cozinha, com um
cobertor e uma grande vasilha de água. Quando voltamos algumas horas
depois, ele havia desbeiçado toda a porta. O prejuízo foi pequeno, mas
havíamos empenhado nossas vidas pelos trinta anos seguintes para
comprar essa casa, e sabíamos que isso não era um bom sinal.
—Talvez ele esteja apenas se habituando ao novo ambiente —
eu arrisquei.
—Não há sequer uma nuvem no céu — observou Jenny, cética.
— O que vai acontecer quando realmente cair uma tempestade?
Na vez seguinte que nós o deixamos sozinho, nós descobrimos.
Quando a tempestade se aproximou, encurtamos a nossa saída e corremos
de volta para casa, mas já era tarde. Jenny estava apenas a alguns passos à
minha frente, e quando ela abriu a porta da lavanderia, parou
repentinamente e balbuciou:
— Oh, meu Deus!
Ela disse isso de uma forma como se tivesse visto um corpo
pendurado de cima do lustre. E repetiu:
— Oh, meu Deus!
Olhei por cima do ombro dela e era pior do que eu temia. Marley
estava ali, de pé, arfando freneticamente, com as patas e a boca
sangrando. Havia pêlo por toda a parte, como se os trovões o tivessem
arrancado de seu corpo. O estrago fora pior do que qualquer coisa que ele
fizera antes, e isso já era muito. Uma parede inteira havia sido
esburacada, abrindo um rombo em sua estrutura. Havia lascas de
madeira, gesso e pregos dobrados à volta dele. A fiação elétrica estava
para fora. O chão e as paredes estavam manchados de sangue. Parecia,
literalmente, uma cena de homicídio qualificado.
—Oh, meu Deus! — disse Jenny, uma terceira vez.
—Oh, meu Deus! — eu repeti.
Era tudo que nós conseguíamos dizer.
Depois de alguns segundos parados ali, mudos, apenas olhando
aquela carnificina, eu disse, finalmente:
— O.k., vamos dar um jeito. Tudo dá para consertar.
Jenny me olhou duro; ela conhecia os meus consertos.
— Vou chamar um carpinteiro e mandar fazê-lo de forma
profissional — respondi. — Desta vez, não vou tentar fazê-lo eu
mesmo.
Dei a Marley um dos seus tranqüilizantes e me preocupei se esta
última investida autodestrutiva poderia fazer com que Jenny voltasse ao
seu estado depressivo depois que Conor nasceu. Aquele
comportamento, no entanto, parecia ter desaparecido completamente.
Ela reagiu de forma surpreendentemente despreocupada.
—Algumas poucas centenas de dólares e vai ficar tudo
parecendo novo de novo — ela pipilou.
—Concordo com você — respondi. — Vou dar algumas palestras
extras para fazer mais dinheiro. Vai ser o suficiente para pagar por isto.
Em poucos minutos, Marley começou a dormir. Suas pálpebras
ficaram pesadas e seus olhos ficaram avermelhados, como sempre
acontecia quando ficava dopado. Como se ele fizesse parte de um
concerto do Grateful Dead. Eu detestava vê-lo assim, sempre detestei, e
sempre resisti sedá-lo. Mas os comprimidos o ajudavam a superar o
terror, a superar a ameaça mortal que existia apenas em sua mente. Se
ele fosse humano, eu diria que ele era um psicótico. Ele era alucinado,
paranóico, convencido de que uma força obscura e maligna viria do alto
para levá-lo. Ele se enroscou no tapete em frente à pia da cozinha e
soltou um longo suspiro. Eu me ajoelhei ao lado dele e acariciei seu pêlo
sujo de sangue.
— Ihhh, cachorro... — eu disse. — O que vamos fazer com você?
Sem levantar a cabeça, ele olhou para mim com seus olhos
vermelhos, o olhar mais triste, mais deprimido que eu já vira, parados,
sem se mover, me encarando. Era como se ele estivesse tentando me
dizer alguma coisa algo importante que ele queria que eu entendesse:
— Eu sei — respondi. — Eu sei que você não consegue evitar.
No dia seguinte, Jenny e eu levamos os meninos até a loja de
animais e compramos uma gaiola gigante. Há gaiolas de todos os
tamanhos, e quando eu descrevi Marley para o balconista, ele nos levou
para ver a maior de todas. Era enorme, grande o suficiente para um leão
ficar de pé e zanzar dentro dela. Era feita de inox e tinha duas traves para
segurar a porta firme e um chão de chapa de aço. Esta foi a nossa resposta,
nossa Alcatraz portátil. Conor e Patrick entraram na gaiola e fecharam as
trancas por alguns minutos.
— O que vocês acham, garotos? — perguntei. — Acham que vai
segurar o nosso supercão?
Conor sacudiu a porta da gaiola, colocando seus dedos em volta
das barras como um presidiário e disse:
—Mim na cadeia.
—Waddy vai ser nosso prisioneiro! — Patrick cantarolou,
divertindo-se com a idéia.
Em casa, colocamos a gaiola ao lado da máquina de lavar. Nossa
Alcatraz portátil ocupava quase metade da lavanderia.
— Venha aqui, Marley! — chamei-o quando terminei de montar.
Joguei um biscoito de leite do lado de dentro e ele alegremente
zuniu atrás dele. Eu fechei e tranquei a porta atrás dele, e ele ficou lá
dentro mastigando sua guloseima, sem se abalar com a nova experiência
de vida que ele estava prestes a começar, conhecida nos círculos de
saúde mental como “confinamento involuntário”.
— Esta vai ser sua nova casa quando nós sairmos — eu disse, com
um sorriso estampado.
Marley ficou ali, arfando satisfeito, sem parecer preocupado, e
então ele se deitou e soltou um suspiro.
— Um bom sinal — eu disse a Jenny. — Um muito bom sinal.
Naquela noite, decidimos fazer um teste com a unidade de
segurança máxima de contenção de cachorro. Desta vez, sequer precisei
de um biscoito de leite para atrair Marley para dentro. Simplesmente
abri a porta, assobiei, e ele entrou, batendo o rabo nas laterais da
gaiola.
— Seja um bom menino, Marley — eu recomendei.
Ao colocar os meninos na minivan para sairmos para jantar,
Jenny comentou:
— Sabe?
— O que? — perguntei.
—Esta é a primeira vez desde que o temos que não fico com um
aperto no estômago de deixar Marley sozinho em casa — ela disse. —
Nunca tinha me dado conta de quanto isso me angustiava até agora.
—Sei o que quer dizer — respondi. — Nunca sabíamos o que
iria acontecer, como num jogo de adivinhação: O que o seu cachorro vai
destruir desta vez?
—Ou “quanto sair para ir ao cinema esta noite pode custar a
você”?
—Era uma roleta russa.
—Acho que aquela gaiola será o dinheiro mais bem gasto até
hoje — ela disse.
— Nós deveríamos ter feito isso há muito tempo — concordei. —
Não há preço para a paz de espírito.
Tivemos um excelente jantar fora, seguido de um passeio ao pôrdo-
sol na praia. Os meninos se divertiram na água, caçaram gaivotas,
arremessaram punhados de areia no mar. Jenny estava incrivelmente
relaxada. Apenas de saber que Marley estava em segurança dentro de
Alcatraz, impossibilitado de se machucar sozinho ou de quebrar qualquer
coisa, foi um bálsamo.
— Que maravilhoso passeio fizemos hoje — ela disse, ao
chegarmos à calçada em frente de casa.
Eu estava a ponto de concordar com ela quando notei algo no meu
campo de visão periférica, algo adiante que não estava muito certo. Virei a
cabeça e olhei pela janela ao lado da porta da frente. As venezianas
estavam fechadas, como as deixamos ao sair de casa. Mas a cerca de trinta
centímetros da base da janela, as hastes metálicas estavam separadas e
havia algo entre elas.
Algo preto. E molhado. E pressionado contra o vidro.
— O que...? — eu exclamei. — Como pode... Marley?
Quando abri a porta da frente, ali estava o comitê de recepção
formado por nosso único cão, sacudindo-se no corredor de entrada,
felicíssimo em nos ver em casa novamente. Zunimos pela casa,
checando todos os quartos e armários, procurando rastros da aventura
incerta de Marley. A casa estava inteira, com tudo no lugar. Fomos à
lavanderia. A porta da gaiola estava totalmente aberta, tão aberta
quanto a pedra do túmulo de Cristo na manhã do Domingo de Páscoa.
Era como se um cúmplice oculto tivesse se esgueirado e libertado o
nosso prisioneiro. Eu me abaixei ao lado da gaiola para olhar mais de
perto. As duas travas estavam escancaradas, e — uma dica significativa
— estavam lambuzadas de saliva.
— Parece que ele se soltou de dentro — eu disse. — De alguma
forma, este Houdini aqui lambeu até conseguir sair da sua jaula.
— Eu não acredito! — respondeu Jenny.
Em seguida, ela xingou usando uma expressão que fiquei muito
feliz que as crianças não estivessem por perto para ouvir.
Sempre imaginamos que Marley era tão burro quanto uma alga,
mas ele foi inteligente o suficiente para descobrir como usar sua língua
de modo a levantar e soltar a barra que prendia a trava. Ele havia
aprendido a usar a língua para se libertar, e provou, nas semanas
seguintes, de que era capaz de facilmente repetir a façanha quando
quisesse. Nossa prisão de segurança máxima havia, na verdade, se
tornado em um albergue em regime semi-aberto. Em alguns dias,
voltaríamos para encontrá-lo descansando pacificamente dentro da
gaiola; em outros, estaria esperando por nós na janela da frente.
“Confinamento involuntário” não era um conceito que Marley iria
aprender por si só.
Passamos a ligar ambas as travas a um cabo elétrico pesado. Isso
funcionou por algum tempo. Mas um dia, ao ouvir trovejar ao longe,
voltamos para casa para descobrir que o canto inferior da porta da gaiola
estava escancarado como se tivesse sido aberto por um abridor de lata
gigante, e um Marley em pânico, com as patas novamente
ensangüentadas, preso pela cintura, com metade do corpo para dentro e
a outra metade para fora por aquela estreita abertura. Coloquei a porta
de aço de volta no lugar do melhor modo que pude, e colocamos fios
elétricos, não só nas travas, mas nos quatro cantos da porta. Logo
estávamos reforçando as quinas da gaiola, pois Marley continuava a usar
sua força para conseguir escapar. Dentro de três meses, a gaiola de aço
reluzente que pensamos que fosse inexpugnável, parecia ter sido
vitimado por uma granada. As barras estavam dobradas e torcidas, a
base torta, a porta completamente fora de prumo, os lados capengas.
Continuei reforçando a gaiola o melhor que pude, e ela continuou a
resistir aos assaltos aterradores de Marley. Havíamos perdido o falso
sentido de segurança que a gaiola nos proporcionara. Cada vez que
saiamos, mesmo que por meia hora, imaginávamos se esta seria a vez em
que nosso louco prisioneiro escaparia e rasgaria o sofá, romperia a
parede, e comeria a porta. Era demais para a nossa paz de espírito.

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