Afundei no banco da janela.
- O que ... - meus lábios estavam entorpecidos. Não sei se era uma complicação da concussão ou o quê, mas de repente não conseguia sentir os lábios. - O que você disse, Jack?
- Eu exorcizei ele para você. - Jack parecia imensamente satisfeito. - Sozinho. Bem, a dona ajudou um pouco. Deu certo? Ele foi embora?
Do outro lado do quarto o padre Dominic estava me olhando com ar interrogativo. Não é de espantar. Minha conversa, ouvida deste lado, devia parecer totalmente bizarra. Afinal de contas eu não tinha tido chance de lhe falar sobre o Jack.
- Suze? - disse Jack. - Você ainda esta aí?
- Quando? - murmurei através dos lábios entorpecidos.
- O quê?
- Quando, Jack. Quando você fez isso?
- Ah. Ontem à noite. Enquanto você estava fora com meu irmão. Veja só, a tal de Maria veio aqui e trouxe aquela pintura e umas velas, e então falou o que eu deveria dizer, e eu disse, e foi bem maneiro, porque começou a sair uma fumaça vermelha das velas, que foi girando e girando, e então se abriu um buraco enorme no ar, acima da cabeça da gente, e eu olhei dentro e era bem escuro, e então falei mais umas palavras, e então o cara apareceu, e foi sugado bem lá para dentro.
Não falei nada. O que poderia dizer? O garoto havia acabado de descrever um exorcismo - pelo menos todos os que eu tinha visto. Não estava inventando. Tinha exorcizado Jesse. Tinha exorcizado Jesse. Jesse fora exorcizado.
- Suze - disse Jack. - Suze, você ainda esta aí?
- Ainda estou. - Acho que devia estar com uma cara medonha, porque o padre Dom veio e se sentou no banco da janela, ao meu lado, parecendo todo preocupado.
E por que não? Eu estava em choque.
E era um tipo de choque diferente de todos que eu já tivera. Não era como ser jogada de um telhado ou sentir uma faca na garganta. Era pior. Porque não dava para acreditar. Simplesmente não dava.
Jesse tinha mantido a promessa. Não tinha desaparecido porque seus restos finalmente haviam sido encontrados, provando que fora assassinado. Tinha desaparecido porque Maria de Silva mandou exorcizá-lo.
- Você não está com raiva de mim, está? - perguntou Jack, preocupado. - Quero dizer, eu fiz a coisa certa, não foi? A tal de Maria disse que Hector era muito mau com você, e que você agradeceria ... - Houve um ruído ao fundo, e então Jack falou: - É Caitlin. Ela quer saber quando você vai voltar. Quer saber se você pode vir esta tarde, porque ela precisa ...
Mas não fiquei sabendo o que Caitlin precisava fazer.
Porque eu tinha desligado.
Simplesmente não podia ouvir aquela vozinha doce dizendo coisas horríveis, medonhas, nem por mais um segundo.
O negócio era que aquilo não penetrava na minha cabeça.
De jeito nenhum. Eu entendia intelectualmente o que Jack tinha acabado de dizer, mas emocionalmente não estava registrando.
Jesse não tinha ido deste plano ao próximo - pelo menos não por sua livre vontade. Tinha sido arrancado da existência aqui do mesmo modo como fora arrancado da vida e, em ultima instância, pelas mesmas mãos.
E por quê?
Pelo mesmo motivo pelo qual fora morto: para não causar vergonha à Maria de Silva.
- Suzannah. - A voz do padre Dominic era gentil. - Quem é Jack?
Levantei a cabeça, espantada. Tinha praticamente esquecido que o padre D. estava no quarto. Mas ele não estava simplesmente no quarto. Estava sentado ao meu lado, com os olhos azuis cheios de preocupação.
- Suzannah - disse ele. O padre Dom nunca me chama de Suze, como todo mundo. Uma vez perguntei o motivo, e ele disse que achava Suze vulgar. Vulgar! Na hora achei uma piada. Ele é tão engraçado, tão antiquado!
Jesse também nunca me chamou de Suze.
- Jack é um mediador – falei. - Tem oito anos. Eu estava trabalhando como babá dele, no hotel.
O padre Dominic ficou surpreso.
- Um mediador? Verdade? Que extraordinário! - Então sua expressão de surpresa voltou a ser de preocupação. - Você deveria ter me telefonado imediatamente no momento em que ficou sabendo, Suzannah. Não há muitos mediadores no mundo. Eu gostaria muito de falar com ele. Mostrar o caminho, por assim dizer. Você sabe, há muita coisa que um jovem mediador deve aprender. Talvez não fosse bom você assumir o treinamento de um deles, Suzannah, dada sua comparativa juventude ...
- É - falei com um riso amargo. Para meu espanto, o som ficou preso na garganta, como uma espécie de soluço. - Nem diga!
Não dava para acreditar. Eu estava chorando de novo. Que negócio era esse, afinal? Quero dizer, essa coisa de chorar? Durante meses fico seca que nem um osso, e de repente abro o berreiro sem mais nem menos.
- Suzannah. - O padre Dominic segurou meu braço e me deu uma leve sacudida. Pela sua expressão dava para ver que estava realmente pasmo. Como falei, eu nunca choro. - Suzannah, o que é isso? Você está chorando, Suzannah?
Só pude confirmar com a cabeça.
- Mas por que, Suzannah? - perguntou ele ansioso. - Por quê? Por causa do Jesse? É difícil, e eu sei que você vai sentir falta dele, mas ...
- O senhor não entende. - Eu estava com problema para enxergar. Tudo tinha ficado muito turvo. Não podia ver minha cama nem o estampado das almofadas no banco da janela, e elas estavam muito mais perto. Levantei as mãos diante do rosto, pensando que talvez o padre Dom estivesse certo e que eu deveria tirar um raio-X, afinal de contas. Evidentemente havia alguma coisa errada com minha visão.
Mas quando meus dedos encontraram o molhado nas bochechas, fui obrigada a admitir a verdade. Não havia nada errado com minha visão. Meus olhos estavam simplesmente transbordando de lágrimas.
- Ah, padre - falei, e pela segunda vez em meia hora envolvi com os braços o pescoço de um padre. Minha testa colidiu com os óculos dele, que ficaram tortos. Dizer que o padre Dominic ficou espantado com esse gesto seria um eufemismo do tipo mais grotesco.
Mas avaliando pelo modo como ele se imobilizou quando as pronunciei, ele ficou ainda mais surpreso com as palavras que saíram da minha boca.
- Ele exorcizou o Jesse, padre D. Maria de Silva o enganou para que fizesse isso. Disse ao Jack que Jesse estava me in-incomodando, e que ele me f-faria um favor, livrando-se dele. Ah, padre Dominic ... - Minha voz cresceu até um uivo. - O que eu vou fazer?
Pobre padre Dominic. Duvido tremendamente de que tenha mulheres chorando histéricas e o abraçando com muita freqüência. Dá para ver totalmente. Ele não sabia como reagir. Quero dizer, me deu tapinhas no ombro e disse "Shhh, tudo vai dar certo", e coisas do tipo, mas dava para ver que o sujeito estava realmente desconfortável. Acho que tinha medo de que Andy aparecesse e achasse que eu estava chorando por causa de algo que ele tinha dito.
O que era ridículo, claro. Como se alguma coisa que alguém dissesse fosse me fazer chorar.
Depois de alguns minutos com o padre Dom dizendo "Shhh, tudo vai dar certo" e ficando todo rígido, não pude deixar de rir.
Sério. Quero dizer, era engraçado. De um modo triste e patético.
- Padre Dominic - falei, afastando-me e olhando-o através dos olhos chorosos. - Está brincando? Tudo não vai dar certo. Está bem? Nada nunca mais vai dar certo.
O padre Dominic podia não ser muito bom de abraço, mas estava com tudo no departamento de lenços. Eu já o tinha visto fazer isso com as crianças pequenas na escola, as do jardim -de- infância que choravam por causa de sorvetes caídos no chão ou algo assim. Ele realmente era bom em enxugar.
- Ora, Suzannah - disse ele enquanto enxugava. - Isso não é verdade. Você sabe que não é.
- Padre, eu sei que é. Jesse foi embora e a culpa é totalmente minha.
- Como a culpa é sua? - o padre Dominic me olhou, desaprovando. - Suzannah, não é sua culpa.
- É sim. O senhor mesmo disse. Eu deveria ter ligado para o senhor no minuto em que percebi a verdade sobre Jack. Mas não liguei. Achei que podia cuidar dele sozinha. Achei que não era grande coisa. E agora olha o que aconnteceu. Jesse foi embora. Para sempre.
- É uma tragédia - disse o padre Dominic. - Não consigo pensar numa injustiça maior. Jesse era um amigo muito bom para você ... para nós dois. Mas o fato, Suzannah... - Ele tinha conseguido enxugar quase todas as minhas lágrimas, e guardou o lenço. - ... é que ele passou muitos anos vagueando numa espécie de meia-vida. Agora suas lutas acabaram, e talvez ele possa começar a desfrutar das recompensas justas.
Estreitei os olhos. O que o sujeito estava falando?
Ele deve ter lido o ceticismo no meu rosto, porque disse:
- Bom, pense nisso, Suzannah. Durante 150 anos Jesse esteve preso numa espécie de submundo entre a vida passada e a próxima. Ainda que você possa lamentar o modo como isso aconteceu, pelo menos ele deu o salto para o destino final...
Afastei-me bruscamente do padre D. Na verdade, me afastei do banco da janela. Fiquei de pé, dei alguns passos e depois girei, pasma com o que tinha escutado.
- O que o senhor está falando? Jesse estava aqui por um motivo. Não sei qual era, e não sei se ele também sabia. Mas, qualquer que fosse, ele deveria ficar aqui, neste "submundo", até descobrir o que era. Agora nunca mais vai poder. Agora não saberá por que ficou aqui por tanto tempo.
- Entendo isso, Suzannah - disse o padre Dominic numa voz que achei irritantemente calma. - E, como falei antes, é uma infelicidade, uma tragédia. Mas, independentemente disso, Jesse foi em frente, e pelo menos devemos ficar felizes por ele ter encontrado a paz eterna ...
- Ah, meu Deus! - Eu estava gritando de novo, mas não me importei. Estava furiosa. - Paz eterna! Como sabe que foi isso que ele encontrou? O senhor não sabe.
- Não.
Dava para ver que agora o padre Dominic estava escolhendo as palavras com cuidado. Como se eu fosse uma bomba que poderia explodir se ele usasse a errada.
- Você está certa - disse o padre D em voz baixa. - Não sei. Mas esta é a diferença entre você e eu, Suzannah. Veja bem, eu tenho fé.
Atravessei o quarto em três passos. Não sabia o que ia fazer. Certamente não ia bater nele. Quero dizer, o gatilho do meu mecanismo de raiva pode ser supersensível, mas não ando por aí dando socos em padres. Bem, pelo menos não no padre Dom. Ele é meu mano, como costumávamos dizer lá no Brooklyn.
Mesmo assim, acho que eu ia sacudi-lo. Ia por as mãos em seus ombros e tentar sacudi-lo ate cair na real, já que a argumentação não estava funcionando. Quero dizer, serio, fé. Fé! Como se a fé alguma vez funcionasse melhor que umas boas cacetadas.
Mas antes que pudesse por a mão nele ouvi alguém pigarrear atrás de mim. Olhei e ali estava o Andy, com o cinto de ferramentas, jeans e uma camiseta que dizia "BEMDO A DUCK BILL FLATS", parado junto a porta aberta e parecendo preocupado.
- Suze - disse ele. - Padre Dominic. Está tudo bem aí? Pensei ter ouvido alguém gritar.
O padre Dominic se levantou.
- Sim - disse ele, parecendo sério. - Bem, Suzannah está, e com todo o direito, preocupada com a ... bem, a descoberta infeliz em seu quintal, ontem. Ela pediu, Andrew, que eu desse uma benção na casa e, claro, eu disse que daria. Mas deixei a Bíblia no carro ...
Andy se empertigou imediatamente.
- Quer que eu pegue para o senhor, padre?
- Ah, seria maravilhoso, Andrew. Simplesmente maravilhoso. Deve estar no banco da frente. Se puder trazê-la, eu faria o trabalho imediatamente.
- Sem problema, padre - respondeu Andy, e saiu parecendo todo feliz. O que é fácil, se você, como Andy, não faz a mínima idéia do que esta acontecendo em sua própria casa. Quero dizer, Andy não acredita. Não sabe que existe um plano de existência diferente deste. Não sabe que pessoas do outro plano estão tentando matá-lo.
Ou que eu estava apaixonada pelo sujeito cujos ossos ele desenterrou ontem.
- Padre D. - falei, no minuto em que ouvi os pés de Andy baterem na escada.
- Suzannah - interrompeu ele, cansado. Dava para ver que estava tentando me cortar antes que eu fosse em frente.
- Entendo como isto é difícil para você. Jesse era muito especial. Sei que ele significava muito ...
Nao pude acreditar naquilo.
- Padre D.
- ... mas o fato, Suzannah, é que agora Jesse está num lugar melhor. - Enquanto falava, o padre Dominic atravessou meu quarto, parou junto à porta e tirou uma bolsa preta que aparentemente havia colocado no corredor. Levantou a bolsa, pousou-a de novo na minha cama desarrumada e abriu. Então começou a tirar coisas de dentro.
- Nós dois - continuou ele - vamos simplesmente ter fé nesse pensamento e ir em frente.
Pus as mãos nos quadris. Não sei se era a concussão ou o fato de que meu namorado sofrera um exorcismo, mas acho que meu quociente de vaca insuportável estava regulado no máximo.
- Eu tenho fé, padre Dom. Tenho muita fé. Tenho fé em mim mesma e tenho fé no senhor. Por isso sei que podemos consertar isso.
Os olhos azul-bebê do padre Dom se arregalaram por trás das lentes de seus óculos bifocais enquanto ele erguia aos lábios uma tira de pano roxa, beijava-a e depois passava em volta do pescoço.
- Consertar isso? Consertar o quê? O que você quer dizer, Suzannah?
- O senhor sabe - falei, porque ele sabia.
- Eu ... - o padre Dominic pegou na bolsa um negócio de metal que parecia uma colher de tirar sorvete, junto com um frasco do que eu só podia supor que fosse água benta. - Eu percebo, claro, que Maria de Silva Diego terá de ser enfrentada. Isso é perturbador, mas acho que você e eu somos perfeitamente preparados para cuidar da situação. E o garoto, Jack, terá de ser visto e adequadamente doutrinado nos métodos apropriados de mediação, dentre os quais, você sabe, o exorcismo só deve ser usado como ultimo recurso. Mas ...
- Não é isso.
O padre Dominic ergueu os olhos de seus preparativos de benção de casa.
- Não?
- Não - repeti. - E não finja que não sabe do que estou falando.
Ele piscou algumas vezes, fazendo eu me lembrar de Clive Clemmings.
- Não posso dizer que sei, Suzannah. De que você está falando?
- De trazê-lo de volta.
- Trazer quem de volta, Suzannah?
A maratona noturna do padre Dom, dirigindo toda a noite, estava começando a aparecer. Ele era um cara bonito, para alguém de sessenta e poucos anos. Tenho certeza de que metade das freiras e a maior parte da congregação feminina da missão era apaixonada por ele. Não que o padre D. notasse isso. A idéia de que era um gato da terceira idade só iria deixá-lo sem graça.
- O senhor sabe quem.
- Jesse? Trazer Jesse de volta? - o padre Dominic ficou ali parado, com a estola em volta do pescoço e o negócio de espirrar água benta numa das mãos. Parecia atarantado. - Suzannah, você sabe tão bem quanta eu que assim que os espíritos saem deste mundo nós perdemos todo o contato com eles. Eles se foram. Passaram adiante.
- Eu sei. Não falei que ia ser fácil! De fato só consigo pensar num modo de fazer isso. E, mesmo assim ... bem, é arriscado. Mas com sua ajuda, padre D., pode funcionar.
- Minha ajuda? - o padre D. estava confuso. - Minha ajuda em quê?
- Padre D., quero que o senhor me exorcize.
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