Capítulo 13 > (Hora mais sombria)

Ele não estava na piscina.
Não estava comendo hambúrguer no Pool House. Não estava nas quadras de tênis, no estábulo, nem na loja de lembranças.
Por fim, decidi verificar o quarto, se bem que não fazia nenhum sentido ele estar lá. Principalmente num dia glorioso como este.
Mas quando a porta da suíte se abriu quando bati, foi exatamente lá que o encontrei. Segundo Caitlin me informou tensa, estava tirando um cochilo.
- Tirando um cochilo? - Encarei-a. - Caitlin, ele tem oito anos, e não oito meses.
- Ele disse que estava cansado - respondeu Caitlin, ríspida. - E o que você está fazendo aqui, afinal? Achei que estava doente.
- Eu estou doente - falei, passando por ela e entrando na suíte.
Caitlin me olhou desaprovando. Dava para ver que sentia ciúme do meu vestido justo e das delicadas sandálias cor-de-rosa, para não falar da bolsa. Quero dizer, comparada a ela, com sua camiseta pólo e short cáqui, eu parecia Gwyneth Paltrow. Só que com cabelo melhor, claro.
- Você não está parecendo muito doente.
- Ah, é? - Levantei a franja para ela ver a testa.
Caitlin inspirou fundo e fez aquela cara tipo "ah, deve ter doido".
- Meu Deus. Como conseguiu isso?
Pensei em dizer que era algum tipo de acidente de trabalho, para poder arrancar uma grana dela, mas achei que não daria certo. Em vez disso falei que tinha tropeçado.
- Então o que está fazendo aqui? Quero dizer, se não veio para trabalhar.
- Bem. Aí é que está. Sabe, eu me senti culpada de deixá-la com o Jack, por isso pedi à mamãe para me trazer aqui depois de me levar ao médico. Posso ficar com ele pelo resto do dia, se você quiser.
Caitlin ficou em dúvida.
- Não sei. Você não está de uniforme ...
- Bom, eu não iria de uniforme ao consultório do médico – guinchei. Verdade, era incrível como aquelas mentiras elaboradas estavam se derramando da minha língua. Eu mal podia acreditar, e era eu que inventava. - puxa, qual é a sua? Mas olha, ele disse que eu estou bem, portanto, não há motivo para não substituir você. Só vamos ficar aqui na suíte, se você está tão nervosa com a hipótese de me verem sem uniforme. Sem problema.
Caitlin olhou de novo para a minha testa.
- Você não está dopada com analgésicos, está? Porque não quero você trabalhando de babá doidona.
Levantei os três primeiros dedos da mão direita, no símbolo internacional dos escoteiros.
- Pela minha honra. Não estou doidona.
Caitlin olhou para a porta fechada do quarto de Jack. - Bem ... - disse hesitando.
- Ah, qual é! - falei - Eu estou precisando da grana. E você e Jake não tem um encontro esta noite?
O olhar dela veio tímido na minha direção.
- Bem - falou ruborizando.
Sério. Ela ruborizou.
- É - disse Caitlin. - Temos sim.
Meu Deus. Tinha sido uma suposição.
- Não quer sair um pouquinho mais cedo para ficar, você sabe, mais chique para ele?
Ela deu um risinho. Caitlin realmente deu um risinho.
Estou dizendo, meus meios-irmãos deveriam vir com etiquetas de alerta do governo: cuidado, perigoso quando misturado com estrogênio.
- Certo - disse ela, e começou a ir para a porta. - Mas meu chefe me mata se vir você sem uniforme, portanto, tem de ficar no quarto. Promete?
Eu tinha feito e quebrado tantas promessas nas ultimas 24 horas que não achei que mais uma fosse fazer mal.
- Claro, Caitlin.
E então a acompanhei até a porta.
Assim que ela saiu, larguei a bolsa e fui ao quarto de Jack.
Não bati antes. Não há nada em um garoto de oito anos que eu já não tenha visto. Além do mais, ainda estava meio pê da vida com o moleque.
Alguém podia ter dito a Jack para tirar um cochilo, mas certamente ele não estava fazendo isso. Quando entrei no quarto ele jogou embaixo dos cobertores a coisa com a qual estava brincando e levantou a cabeça do travesseiro, com o rosto todo franzido, como se estivesse sonolento.
Então viu que era eu, jogou as cobertas para longe e revelou não apenas que estava totalmente vestido mas que estivera brincando com seu GameBoy.
- Suze! - gritou ao me ver. - Você voltou!
- É. - Estava escuro no quarto. Fui até a porta de vidro e puxei as cortinas pesadas, para a luz entrar. – Voltei.
- Achei que você estava com raiva de mim - disse Jack, pulando empolgado na cama.
- Eu estou com raiva de você - falei, girando para olhá-lo. Mas a visão daquele mar luminoso tinha ofuscado meus olhos, portanto, não podia enxergá-lo muito bem.
- O que foi? - Jack parou de pular. - Por que está com raiva de mim?
Olha, eu não ia pegar pesado com o garoto, certo? Só queria que todo mundo tivesse sido tão honesto assim comigo quando eu tinha a idade dele. É possível que eu não fosse tão rápida com os punhos se não tivesse essa raiva contida por terem me mentido tanto aos oito anos. Sim, Suze, claro que Papai Noel existe, mas não, fantasmas não existem. E então o golpe final: Não, essa injeção que eu vou lhe dar não vai doer nem um pouco.
- Sabe aquele fantasma que você exorcizou? - falei, encarando-o com as mãos nos quadris. - Era meu amigo. Meu melhor amigo.
Eu não ia dizer namorado, nem nada, porque isso não era verdade. Mas a dor que eu estava sentindo devia ser clara em minha voz, porque o lábio inferior de Jack começou a se projetar um pouquinho.
- O que você quer dizer? O que você quer dizer com isso, ele era seu namorado? Não foi isso que aquela dona falou. A dona falou ...
- Aquela dona é uma mentirosa. Aquela dona - falei indo rapidamente para a cama e levantando a franja do cabelo - fez isso comigo ontem à noite. Ou pelo menos o marido dela fez isso. O que ela fez foi tentar me esfaquear.
De pé na cama, Jack estava mais alto do que eu. Olhou para o hematoma na testa com uma espécie de horror.
- Ah, Suze - ofegou ele. - Ah, Suze.
- Você ferrou tudo - falei baixando a mão. - Não foi de propósito. Sei que Maria enganou você. Mas, mesmo assim, você ferrou, Jack.
Agora seu lábio inferior estava tremendo. Na verdade, todo o queixo. E os olhos tinham se enchido de lagrimas.
- Desculpe, Suze. - Sua voz tinha ficado uns três tons mais aguda do que o normal. - Suze, sinto muito!
Ele estava se esforçando um bocado para não chorar. Mas não tinha sucesso. Lágrimas escorriam dos olhos e rolavam pelas bochechas gorduchas ... a única parte dele que era gorducha, a não ser, talvez, seu cabelo de Albert Einstein.
E, mesmo não querendo, me peguei abraçando-o e dando-lhe tapinhas nas costas - enquanto ele soluçava no meu pescoço -, dizendo que tudo ia ficar bem.
Exatamente o que o padre Dominic tinha feito comigo, percebi com algo próximo do horror.
E, como ele, eu estava mentindo completamente. Porque tudo não ia ficar bem. Pelo menos não para mim. Nunca mais. A não ser que eu fizesse algo a respeito, e depressa.
- Olha - falei depois de alguns minutos deixando Jack uivar. - Para de chorar. Temos trabalho a fazer.
Jack levantou a cabeça do meu ombro - que, por sinal, ele havia molhado completamente com ranho, lagrimas e coisas, já que meu vestido era sem mangas.
- O que ... o que você quer dizer? - Seus olhos estavam vermelhos e franzidos, de tanto chorar. Tive sorte porque ninguém entrou naquela hora. Definitivamente eu teria sido condenada por abuso contra criança ou algo assim.
- Vou tentar trazer Jesse de volta - expliquei, descendo Jack da cama. - E você vai me ajudar.
- Quem é Jesse?
Expliquei. Pelo menos tentei explicar. Disse que Jesse era o cara que ele tinha exorcizado, e que ele era meu amigo, e que exorcizar pessoas era errado, a nao ser que elas tivessem feito algo muito, muito ruim, como tentar matá-lo, o que, explicou Jack, era o que Maria lhe contou que Jesse tinha tentado fazer comigo.
Então falei a Jack que os fantasmas são como as pessoas; alguns são legais, mas alguns são mentirosos. Garanti que, se tivesse conhecido Jesse, saberia no ato que ele não era assassino.
Maria de Silva, por outro lado ...
- Mas ela pareceu tão legal- disse Jack. - Quero dizer, ela é tão bonita e tudo ...
Homens. Estou falando sério. Mesmo aos oito anos. É patético.
- Jack. Você já ouviu a expressão "Não julgue um livro pela capa"?
Jack franziu o nariz.
- Não gosto muito de ler.
- Bem. - Nós tínhamos ido para a sala de estar, e agora peguei a bolsa e abri. - Você vai ter de ler um pouco, se quisermos trazer Jesse de volta. Vou precisar que você leia isso.
E entreguei um cartão onde tinha escrito algumas palavras. Jack franziu os olhos.
- O que é isso? Não é inglês.
- Não. - E comecei a tirar outras coisas da bolsa. – É português.
- O que é isso?
- Uma língua que falam em Portugal. E também no Brasil e alguns outros países.
- Ah. - Jack apontou para um pequeno pote Tupperware que eu havia tirado da bolsa. - O que é isso?
- Sangue de galinha.
Jack fez uma careta.
-Eca!
- Olha. Se vamos fazer esse exorcismo, vamos fazer direito. E para fazer direito, você precisa de sangue de galinha.
- Eu não usei sangue de galinha quando Maria esteve aqui.
- É. Bem, Maria faz as coisas do jeito dela, eu faço do meu. Agora vamos ao banheiro fazer isso. Tenho de pintar coisas no chão com o sangue de galinha, e duvido tremendamente que as arrumadeiras vão gostar se fizermos isso aqui no carpete.
Jack me acompanhou até o banheiro que interligava seu quarto ao do irmão. Na parte do meu cérebro que não estava concentrada no que estava fazendo, meio me perguntei onde Paul estaria. Era estranho ele não ter ligado depois de ter me deixado em casa e visto todos os carros da polícia diante dela. Quero dizer, é de pensar que ficaria curioso, pelo menos, com o que teria sido aquilo.
Mas não tive nenhuma notícia dele.
Não que me importasse. Havia coisas muito mais importantes com que me preocupar. Mas mesmo assim era meio estranho.
- Pronto - falei quando tinha arrumado tudo. Demorou uma hora, mas quando terminamos estávamos com um exemplo bem decente de como deve ser um exorcismo, pelo menos ao estilo macumba brasileira. - Pelo menos segundo um livro que li uma vez sobre o assunto.
Com o sangue de galinha, que comprei numa loja para gourmets no centro da cidade, tinha feito uns símbolos especiais no meio do piso do banheiro, e em volta espalhei velas (votivas, as únicas que consegui achar de ultima hora, entre a redação do Pinha de Carmel e o hotel; tinham perfume de canela, de modo que o banheiro cheirava a Natal... bem, a não ser pela fragrância não tão festiva do sangue de galinha).
Apesar do amadorismo com que tinha sido feito, era de fato um portal viável para a outra vida - ou pelo menos seria, assim que Jack fizesse sua parte com o cartão. Eu havia repassado a pronúncia de cada palavra, e ele parecia ter aprendido bem. A única coisa que não conseguia engolir era o fato de que a pessoa que estávamos exorcizando era ...
bem, eu.
- Mas você esta viva - ficava dizendo. - Se eu exorcizar seu espírito, você não vai ficar morta?
Na verdade, esse era um pensamento que não havia realmente me ocorrido. O que aconteceria com meu corpo quando o espírito o abandonasse? Eu estaria morta?
Não, isso era impossível! Meu coração e os pulmões não parariam de funcionar só porque minha alma tinha saído. Provavelmente eu só ficaria ali deitada, como alguém em coma.
Mas isso não era muito reconfortante para Jack.
- E se você não voltar? - perguntou ele.
- Eu vou voltar. Já disse. O único motivo pelo qual eu posso voltar é que tenho um corpo vivo. Só quero dar uma olhada por lá e ver se Jesse está bem. Se estiver, ótimo. Se não ... bem, vou tentar trazê-lo de volta.
- Mas você disse que o único motivo pelo qual pode voltar e porque tem um corpo vivo. Jesse não tem. Então como ele pode voltar?
Esta, claro, era uma boa pergunta. Provavelmente por isso me deixou mal-humorada.
- Olha - falei enfim. - Ninguém nunca tentou isso antes, pelo que eu saiba. Talvez não seja preciso ter um corpo ao qual voltar. Não sei, certo? Mas não posso deixar de tentar só porque não sei a resposta. Onde a gente estaria se Cristóvão Colombo não tivesse tentado? Hein?
Jack ficou pensativo.
- Morando na Espanha?
- Muito engraçado. - Foi nesse ponto que peguei a última coisa dentro da bolsa e amarrei uma das pontas na minha cintura. Amarrei a outra ao pulso de Jack.
- Para que a corda? - perguntou ele, olhando-a.
- Para eu achar o caminho de volta até você.
Jack ficou confuso.
- Mas se só o seu espírito vai, de que adianta amarrar uma corda no seu corpo? Você disse que o seu corpo não ia a lugar nenhum.
- Jack - falei com os dentes trincados. - Só me puxe de volta se eu não voltar em meia hora, certo? - Achei que meia hora era o máximo que a alma de alguém poderia ficar separada do corpo. Na TV eu sempre assistia a programas sobre crianças que caíam na água gelada, afogavam-se e ficavam tecnicamente mortas durante até quarenta minutos, e no entanto se recuperavam sem qualquer dano cerebral. Por isso achei que meia hora era o máximo que eu teria.
- Mas como ...
- Ah, meu Deus - falei rispidamente. - Só faça, está certo?
Jack me olhou irritado. Ei, só porque nós dois somos mediadores não significa que tenhamos de nos dar bem o tempo todo.
- Certo. - Baixinho, ouvi-o murmurar: - Você não precisa ser tão má por causa disso.
Só que ele não disse "má". Verdade: é chocante ouvir as palavras que as crianças usam hoje em dia.
- Certo – falei. Em seguida entrei no centro do círculo de velas e fiquei no meio dos símbolos desenhados com sangue de galinha. - Lá vai.
Jack olhou para o cartão. Depois olhou de novo para mim.
- Você não deveria se deitar? Quero dizer, se vai ser como um coma, não quero que você caia e se machuque.
Estava certo. Eu não queria que meu cabelo pegasse fogo nem nada.
Por outro lado, não queria sangue de galinha no vestido.
Quero dizer, ele era caro. Noventa e cinco dólares no Urban Outfitters.
Então pensei: "Suze, o que há de errado com você? É só um vestido. Você está fazendo isso pelo Jesse. Ele não vale mais de noventa e cinco dólares?"
Por isso comecei a me deitar.
Mas só tinha conseguido apoiar um dos joelhos no chão quando houve uma batida terrível na porta da suíte.
Admito. Entrei em pânico. Achei que era o corpo de bombeiros ou alguém respondendo a um alerta de fumaça dado por algum hóspede no banheiro adjacente ao de Jack.
- Depressa - sibilei. - Assopre todas as velas!
Enquanto Jack se apressava em obedecer, fui até a porta.
- Quem é? - falei em voz doce ao chegar.
- Suzannah - disse uma voz familiar demais. - Abra esta porta agora mesmo.

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