11. Novembro: Uma criminosa na família

QUARTA-FEIRA, 1º DE NOVEMBRO

56,9kg (consegui, consegui), 2 unidades alcoólicas (m.b.), 4 cigarros (não pude fumar na
casa de Tom para não botar fogo na roupa que ele ia usar no concurso Miss Mundo
Alternativo), 1,848 calorias (b.), 12 Smoothies (grande progresso).

Dei uma passada na casa de Tom para uma reunião de alto comando só para conversar sobre o
assunto Mark Darcy. Mas Tom estava preocupado com o concurso Miss Mundo Alternativo.
Há muito tempo ele resolveu concorrer fantasiado de Miss Aquecimento Global e agora
estava numa crise de insegurança.
— Não tenho a menor esperança de ganhar - disse, olhando- se no espelho e caminhando
até a janela. Sua fantasia era uma esfera de polistireno imitando o globo terrestre com as
calotas polares derretendo e uma grande mancha de queimado em cima do Brasil. Numa das
mãos, Tom segurava um pedaço de madeira tropical e um aerossol Lynx, e na outra uma pele
que garantia ser de jaguatirica. — Você acha que eu devo pintar um melanoma na pele? –
perguntou ele.
— É um concurso de beleza ou de fantasias?
— É esse o problema, eu não sei de que é o concurso, ninguém sabe - disse ele, tirando seu
adereço de cabeça, uma miniatura de árvore que ficaria iluminada durante o desfile. — É as
duas coisas. É tudo, Beleza. Originalidade. Arte. É ridiculamente confuso.
— É preciso ser gay para participar? - perguntei, tocando no polistireno.
— Não, qualquer um pode entrar: mulher, animal, o que for. É esse o problema - explicou,
voltando a se olhar no espelho — Às vezes acho que teria mais chance se desfilasse com um
cachorro bem garboso.
Acabamos chegando à conclusão de que, embora em si o tema aquecimento global fosse
correto, o globo de polistireno não tinha um design muito insinuante para um traje de luxo.
Achamos melhor colocar uma tira de seda chinesa em azul Yves Klein flutuando em meio a
fumaça e sombras para simbolizar as calotas polares derretendo.
Como percebi que não ia conseguir falar com Tom a respeito de Mark Darcy, fui embora
antes que ficasse muito tarde, prometendo pensar em algum traje de praia ou esporte para ele
se fantasiar.
Cheguei em casa e liguei para conversar com Jude, mas ela só falava numa nova e
maravilhosa invenção oriental chamada Feng Shui, divulgada na revista Nova-Cosmopolitan
desse mês. Essa técnica ajuda as pessoas a conseguirem tudo na vida, basta desbloquear os
caminhos tirando todos os armários do apartamento e dividi-lo em nove partes (o que se
chama fazer o baguá). Cada uma das partes representa uma área da vida: profissão, família,
relacionamentos, dinheiro ou filhos, por exemplo, Essas coisas vão depender da disposição de
móveis e objetos pela casa. Por exemplo: se você está sempre sem dinheiro, pode ser por
causa de uma cesta de papel colocada no seu Canto da Prosperidade. Mto interessada na nova
teoria, já que pode explicar muitas coisas. Vou já comprar a revista. Jude disse para eu não
contar para Sharon pois, óbvio, ela acha que Feng Shui é besteira. Depois de toda essa
conversa, consegui levar o assunto para o tema Mark Darcy.
— Claro que você não acha graça nele, Bridget, sempre tive certeza disso – garantiu Jude,
acrescentando que só havia uma solução: eu devia fazer um jantar e convidá-lo. — É a melhor
coisa, diferente de convidar para sair. Não há tensão, você fica à vontade e pode se exibir
loucamente, e fazer com que seus amigos finjam que acham você maravilhosa.
— Jude, você disse “finjam”? – perguntei, magoada.

SEXTA-FEIRA, 3 DE NOVEMBRO

58 kg (argh), 2 unidades alcóolicas, 8 cigarros, 13 smoothies, 5.245 calorias.

11h. Estou muito animada com o jantar. Comprei o novo e maravilhoso livro de receitas de
Marco Pierre White. Afinal, consegui entender a simples diferença entre comida caseira e de
restaurante. Como diz Marco, o segredo está na concentração de sabor. O segredo dos
molhos, além da concentração de sabor, está nos bons caldos. É preciso cozinhar muitos
ossos de peixe, carcaças de frangos etc. e congelar tudo em forma de cubos de gelo. Depois,
fica tão fácil merecer uma estrela no Guia Michelin como fazer uma torta de carneiro. Aliás,
muito mais fácil, já que não é preciso descascar as batatas, basta passá-las em gordura de
ganso. Incrível eu não ter percebido isso antes.
Vou preparar o seguinte cardápio:
Velouté de aipo (mto simples e barato, basta preparar o caldo).
Atum grelhado no carvão sobre velouté de tomates-cereja acompanhados de confit de alho
e batatas fondant.
Confit de laranjas. Creme Inglês ao Grand Marnier.
Vai ficar uma delícia. Vou virar uma grande e famosa cozinheira, sem muito esforço.
As pessoas vão invadir meus jantares, dizendo em coro "É ótimo jantar na casa de Bridget, lá
tem pratos com qualidade Michelin num ambiente descontraído.” Mark Darcy vai ficar muito
impressionado e perceber que sou uma pessoa diferente e com prendas domésticas.

DOMINGO, 5 DE NOVEMBRO

57kg (horror), 32 cigarros, 6 unidades alcoólicas (não tem mais smoothies na mercearia –
esses comerciantes são uns desleixados), 2.266 calorias, 4 bilhetes de loteria.

19h. Hum. Hoje é a Noite das Fogueiras e não fui convidada para nenhuma fogueira. Ouço
fogos estourando por todo lado. Vou dar uma passada na casa de Tom.
23h. Foi ótimo. Tom estava tentando se acostumar com o fato do título de Miss Mundo
Alternativo ter sido concedido à maldita Joana d'Arc.
— O que me deixa mais chateado é eles dizerem que não é um concurso de beleza, mas no
fundo é. Tenho certeza de que, se não fosse o meu nariz... - concluiu, se olhando no espelho,
furibundo.
— O quê?
— Meu nariz.
— O que ele tem de errado?
— Ah, o que tem de errado. Puxa, basta olhar.
O nariz tinha uma pequena marca no lugar onde alguém tinha jogado um vidro quando
Tom tinha 17 anos.
— Entendeu o que estou falando? - perguntou ele.
Expliquei que não tinha sido por causa daquela marca que Joana d'Arc ganhou o prêmio, a
menos que os jurados estivessem usando um telescópio Hubble para examinar os candidatos,
mas aí Tom começou a reclamar que, além do mais, estava muito gordo e ia começar um
regime.
— Quantas calorias deve-se ingerir por dia numa dieta? - perguntou.
— Umas mil. Bom, eu geralmente pretendo comer mil e acabo em 1.500 - falei, sabendo
muito bem que a última parte não era bem verdade.
— Mil? Mas eu achava que a gente precisasse de duas mil só para continuar vivo -
confessou Tom, incrédulo.
Olhei-o, confusa. Percebi que fazia regime há tantos anos que nem passava pela minha
cabeça que o corpo necessita de calorias para sobreviver. Cheguei num ponto em que o ideal
de nutrição é não comer absolutamente nada e a única razão para as pessoas comerem é
porque são tão gulosas que não conseguem parar e acabam quebrando o regime.
— Quantas calorias tem um ovo cozido? – perguntou Tom.
— 75.
— Uma banana?
— Pequena ou grande?
— Pequena.
— Sem casca?
— É.
— 80 - garanti.
— Uma azeitona?
— Preta ou verde?
— Preta.
— 9.
— Um drinque?
— 81.
— Uma caixa de chocolate Milk Tray?
— 10.896 calorias.
— Como você sabe tudo isso?
Pensei um pouco.
— Da mesma forma que se sabe recitar o alfabeto ou ler as horas.
— Certo. E quanto é nove vezes oito?
— 64. Não, 56. Aliás, 72.
— Responda rápido: qual a letra antes do J?
— P. Quer dizer, L.
Tom disse que estou doente mas sei que sou igual a todo mundo – isto é, Sharon e Jude.
Honestamente, estou preocupada com Tom. Acho que participar de um concurso de beleza fez
com que ele não suporte a pressão que nós mulheres há muito suportamos, e está ficando
inseguro, obcecado pela aparência e quase anoréxico.
A noite terminou com Tom se divertindo na cobertura do prédio, soltando rojões no jardim
dos vizinhos de baixo, que, segundo ele, têm horror a gays.

QUINTA-FEIRA, 9 DE NOVEMBRO

56,7kg (melhor sem os smoothies), 5 unidades alcoólicas (melhor do que ficar com um
estômago dilatado, cheio de frutas amassadas), 12 cigarros, 1.456 calorias (excelente).

Estou muito animada com o jantar. Marquei para a próxima terça-feira. Eis a lista de
convidados:
Jude Richard o Vil
Sharon
Tom Jerome o Pretensioso (a não ser que eu tenha muita sorte e até terça eles
tenham terminado)
Magda Jeremy
Eu Mark Darcy
Mark Darcy gostou muito quando liguei para convidá-lo.
— O que você vai preparar? - perguntou. — Sabe cozinhar bem?
— Bom, na verdade, eu sigo o livro de Marco Pierre White. É incrível como fica simples
cozinhar quando a pessoa sabe concentrar o sabor.
Ele riu e recomendou:
— Bom, não faça nada muito complicado. Lembre-se de que as pessoas vão ao jantar para
vê-la e não para comer doces confeitados dentro de forminhas.
Daniel jamais diria algo tão gentil assim. Estou louca para que chegue o dia do jantar.

SÁBADO, 11 DE NOVEMBRO

56,2kg, 4 unidades alcoólicas, 35 cigarros (crise), 456 calorias (só estou tomando líquido).

Tom sumiu. Fiquei preocupada porque Sharon ligou de manhã dizendo que não podia jurar
mas achava que, na quinta-feira, quando estava num táxi na Ladbroke Grove, tinha visto Tom
com um olho roxo e escondendo a boca com a mão. Quando Sharon conseguiu que o táxi
voltasse ele tinha desaparecido. Ontem, ela deixou dois recados na secretária dele
perguntando notícias, mas não teve resposta.
Enquanto ouvia, lembrei que tinha deixado um recado para Tom na quarta-feira
perguntando se ele estava em casa no fim de semana e não tive resposta, o que nunca
acontece. Liguei para ele na hora. Tocou várias vezes e ninguém atendeu, então liguei para
Jude, que tambem não tinha notícias dele. Tentei falar com Jerome o Pretensioso e nada. Jude
disse que ligaria para Simon, que mora na rua seguinte à de Tom, e pediria para que ele fosse
à casa dele. Ela ligou 20 minutos depois dizendo que Simon tocou a campainha de Tom e
bateu na porta durante horas, mas ninguém atendeu. Sharon me ligou de novo. Tinha falado
com Rebecca, que achava que Tom ia almoçar na casa de Michael. Liguei para Michael: ele
disse que Tom tinha deixado um recado estranho na secretária, com uma voz enrolada,
dizendo que não poderia ir ao almoço, sem explicar por quê.
15h. Estou começando a entrar em pânico, e ao mesmo tempo estou adorando o fato de ser o
centro do drama. Sou praticamente a melhor amiga de Tom, então todo mundo fica ligando
para mim, e passei a fazer uma voz calma e mostrar grande preocupação. Estou achando que
ele encontrou um novo amor e passa por uma espécie de lua-de-mel, escondido uns dias em
algum lugar. Talvez não tenha sido ele que Sharon viu, ou o olho roxo fosse conseqüência do
sexo entusiástico ou uma maquiagem pós-moderna no estilo Rocky Horror Show. Preciso dar
mais uns telefonemas para confirmar essa tese.
15h30. As pessoas discordam da tese, todos acham que é impossível Tom encontrar um novo
homem, quanto mais ter um novo caso, sem ligar para todo mundo contando. Não posso dizer
nada. Pensamentos muito loucos percorrem minha cabeça. É verdade que Tom andava meio
perturbado. Comecei a pensar se sou mesmo uma boa amiga. Em Londres, somos tão egoístas
e ocupados. Será que um dos meus amigos poderia ficar tão infeliz a ponto de ... ah, olha só
onde meti a revista Marie Claire deste mês: em cima da geladeira!
Fiquei folheando a Marie Claire, imaginando o enterro de Tom e que roupa eu usaria.
Aaargh, de repente lembrei daquele membro do Parlamento que se sufocou com um saco
plástico na cabeça, um laço de corda no pescoço e uma laranja de chocolate na boca, ou
alguma coisa assim. Será que Tom pratica atos sexuais esquisitos e não conta para nós?
17h. Acabo de ligar para Jude de novo.
— Você acha que devemos chamar a polícia e pedir para arrombar o apartamento? -
perguntei.
— Eu já chamei - disse Jude.
— E o que eles disseram? - sem conseguir disfarçar minha chateação porque ela chamou a
polícia sem me consultar. A melhor amiga de Tom sou eu e não ela.
— Os policiais não pareceram muito preocupados. Disseram para ligarmos se ele não
aparecer até segunda-feira. É compreensível. Não se pode ficar muito assustado porque um
solteiro de 29 anos não está em casa no sábado de manhã e não compareceu a um almoço ao
qual disse que não iria.
— Mas tem alguma coisa errada, eu sinto - falei, com uma voz misteriosa e soturna,
percebendo pela primeira vez como sou uma pessoa sensitiva e intuitiva.
— Sei o que você está querendo dizer - pressentiu Jude. — Eu também sinto. Tem alguma
coisa muito errada.
19h. Extraordinário. Depois que falei com Jude, não consegui fazer compras nem nada assim
mais fútil. Achei que era a melhor hora para fazer o Feng Shui, então saí e comprei a Nova-
Cosmopolitan. Com cuidado, seguindo o desenho publicado na revista, fiz o baguá do
apartamento. Levei um susto. Tinha uma cesta de papel no meu Canto dos Amigos. Claro que
era por isso que o Tom tinha sumido.
Liguei correndo e contei para Jude. Ela disse para eu tirar a cesta de papel daquele lugar.
— Mas onde ponho? Não vou colocar no meu Canto das Relações ou dos Filhos.
Jude disse para eu aguardar um instante enquanto ela dava uma olhada na revista. Na volta,
perguntou:
— Que tal colocar a cesta no Canto da Prosperidade?
— Hum, não sei, logo agora que o Natal está chegando e tal - falei, me sentindo muito
sovina.
— Bom, se você acha isso. De todo jeito, vai acabar tendo de comprar um presente a
menos ... - acusou Jude.
Coloquei a cesta de papel no meu Canto do Conhecimento e fui a uma floricultura comprar
plantas de folhas redondas para colocar no Canto da Família e dos Amigos (plantas com
espinhos, principalmente cacto, não são indicadas). Estava tirando o cache-pot do armário
embaixo da pia quando ouvi um som de chaves. Dei um tapa na própria testa: como não
lembrei antes? Aquelas eram cópias das chaves de Tom, que ele tinha deixado comigo quando
foi para Ibiza.
Pensei em ir até a casa dele sem Jude: ela não telefonou para a polícia sem me avisar? Mas
achei que seria muito mesquinho, então liguei para ela e resolvemos chamar Sharon também,
porque foi ela quem deu o alarme.
Quando entramos na rua de Tom, imaginei o jeito digno, trágico e composto que eu teria
ao ser entrevistada pelos jornais, ao mesmo tempo que sentia um medo paranóico de a policia
achar que matei Tom. De repente, aquilo deixou de ser uma brincadeira. Talvez tivesse
mesmo acontecido alguma coisa terrível e trágica.
Subimos a escada do prédio sem nos olharmos nem dizer uma palavra.
Quando coloquei a chave na fechadura, Sharon teve uma dúvida:
— Será que não é melhor tocar a campainha primeiro?
— Eu toco - disse Jude, dando uma olhada para nós e tocando a campainha.
Ficamos quietas. Nada. Ela tocou de novo. Eu ja ia virar a chave quando ouvimos uma voz
no interfone.
— Alô?
— Quem é? - perguntei, com a voz trêmula.
— Quem você acha que pode ser, sua boba?
— Tom! - gritei de alegria. — Deixa a gente subir.
— A gente quem? - perguntou, desconfiado.
— Eu, Jude e Sharon.
— Querida, preferia que vocês não subissem, para dizer a verdade.
— Ai, droga - disse Sharon, me empurrando. — Tom, sua bicha idiota, você simplesmente
deixou a metade de Londres desperada ligando para a polícia, vasculhando a cidade inteira
atrás de você porque ninguém sabe onde voce está. Droga, deixa a gente entrar.
— Não quero ninguém, só Bridget - disse Tom, arrogante.
Passei gloriosa entre as duas.
— Não fique tão metida - disse Sharon.
Silêncio.
— Anda, seu idiota, deixa a gente entrar.
Houve um silêncio e ouvimos o som da porta abrindo. Bzzz.
Chegamos no último andar e ele abriu a porta, perguntando:
— Vocês agüentam ver isso?
Nós três gritamos. Tom estava com o rosto todo desfigurado, com marcas amarelas e
escuras e um gesso no nariz.
— Tom, o que houve? - gritei, tentando dar um abraço desajeitado nele e acabando por
beijar sua orelha. Jude começou a chorar, Sharon deu um soco na parede.
— Não se preocupe, Tom. Vamos descobrir os bárbaros que fizeram isso - ameaçou ela.
— O que houve? - repeti, com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Bom, é... É que eu fiz uma plástica no nariz - disse Tom, se soltando do meu abraço.
Sem ninguém saber, ele foi operado na quarta-feira e ficou com vergonha de contar para
nós porque achávamos a marca no nariz dele insignificante. Jerome devia ter cuidado dele - e
a partir de então passou a ser chamado de Jerome o Canalha (devia ser Jerome Sem Coração,
mas concordamos que o outro apelido soava melhor). Mas quando Jerome o Canalha viu Tom
depois da cirurgia ficou tão assustado que explicou que ia embora por uns dias e sumiu. O
pobre Tom estava tão deprimido e traumatizado, tão esquisito por causa da anestesia, que
simplesmente desligou o telefone, se enfiou debaixo dos lençóis e dormiu.
— Então era você que estava na Ladbroke Grove quinta-feira à noite? - perguntou Sharon.
Era. Ele esperou ficar bem escuro para ir comprar comida. Apesar da nossa alegria por ele
estar vivo, Tom estava muito triste por causa de Jerome.
— Ninguém me ama - disse ele.
Falei para ele ligar para minha secretária eletrônica e ouvir os 22 recados desesperados dos
amigos dele, preocupados porque estava sumido há 24 horas, o que afastou nosso medo de
morrermos sozinhos e sermos comido por um pastor-alemão.
— Ou do corpo só ser encontrado três meses depois, em decomposição sobre o tapete -
completou Tom.
Perguntamos então como um lunático com um nome daquele podia fazer Tom achar que
ninguém o amava?
Dois bloodymary depois ele estava rindo da mania que Jerome tinha de usar o termo
"autoconfiante" e de suas cuecas Calvin Klein samba-canção. Enquanto isso, Simon, Michael,
Rebecca, Magda, Jeremy e um rapaz que disse se chamar Elsie ligaram para saber notícias
dele.
— Sei que todos nós somos neuróticos, solteiros, completamente malucos e nossa vida gira
em torno do telefone - disse Tom, enrolando as palavras, emocionado. — Mas é meio
parecido com uma família, não?
Eu sabia que o Feng Shui ia funcionar. Agora que deu certo, vou rapidamente mudar a
planta de folhas redondas para o Canto dos Relacionamentos. Gostaria que existisse um Canto
da Culinária também. Faltam só nove dias para o jantar.

SEGUNDA-FEIRA , 20 DE NOVEMBRO

56,2 kg (m.b.), 0 cigarro (é horrível fumar quase se está realizando milagres gastronômicos),
3 unidades alcoólicas, 200 calorias (o esforço de ir ao supermercado deve ter queimado mais
calorias que as que comprei, sem falar nas que comi).

19h. Acabo de voltar da odiosa experiência de solteira classe média no supermercado, que
fica na fila do caixa ao lado de adultos com filhos comprando feijão, nuggets, macarrão de
letrinhas etc., trazendo os seguintes mantimentos:
20 cabeças de alho
1 lata de gordura de ganso
1 garrafa de Grand Marnier
8 filés de atum
3 dúzias de laranjas
4 potes de creme de leite
4 bastões de baunilha de 1,39 libra cada.
Tenho de começar os preparativos hoje à noite, já que trabalho amanhã.
20h. Argh, não estou com a menor vontade de cozinhar. Muito menos de mexer com esse
horrendo saco de ossos de galinha: que nojo.
22h. Já coloquei os ossos de galinha na panela. O problema é que Marco manda amarrar dois
ingredientes que acentuam o sabor - alho-poró e aipo - com um barbante, mas o único que
tenho é azul. Bom, espero que funcione.
23h. Deus meu, a coisa levou séculos para cozinhar mas valeu a pena porque rendeu quase
dez litros, que congelei em cubos de gelo e tudo ficou por apenas 1,70 libra. Hum, o confit de
laranja vai ficar uma delícia. Agora, basta descascar 36 laranjas e ralar a casca. Faço isso em
dois tempos.
Uma da manhã. Estou morrendo de sono mas faltam umas duas horas para o caldo cozinhar
e mais uma hora para as laranjas assarem no forno. Já sei o que vou fazer. Deixo o caldo em
fogo brando durante a noite e as laranjas na temperatura mínima do forno, assim ficarão mto
macias como se cozidas no vapor.

TERÇA-FEIRA, 21 DE NOVEMBRO
 
55,8kg (o nervosismo queima as gorduras), 9 unidades alcoólicas (mto ruim mesmo), 37
cigarros (m.m. ruim), 2.475 calorias (é tudo um nojo).

9h30. Acabo de destampar a panela. Os dez litros de caldo concentrado esperados viraram um
monte de ossos de galinha queimados e cobertos por uma geléia. O confit de laranja parece
delicioso, igualzinho ao da foto do livro de receitas, só um pouco mais escuro. Agora vou
trabalhar. Saio da redação às quatro, na volta penso numa solução para o problema da sopa.
17h. Ai, Deus. O dia virou um pesadelo. Richard Finch me deu uma bronca na frente de todo
mundo na reunião da manhã:
— Bridget, pelo amor de Deus, esqueça esse livro de receitas. Pense em crianças
queimadas por fogos de artifício. Estou pensando em mutilações. Estou pensando em alegres
comemorações familiares que se transformam em pesadelos. Estou pensando em 20 anos
depois O que aconteceu com aquele menino dos anos 60 que queimou o pinto com bombinhas
de São João guardadas no bolso da calça? Onde está ele? Bridget, descubra o menino das
bombinhas que ficou sem pinto. Ache o John Bobitt dos anos 60.
Argh. Eu estava no quadragésimo oitavo telefonema para saber se existia um grupo de
apoio às vítimas de pinto queimado quando o telefone tocou.
— Alô, querida, é mamãe - ela parecia mais animada e histérica do que nunca.
— Oi, mãe.
— Alô, querida, liguei só para me despedir, espero que fique tudo bem.
— Despedir? Aonde vai?
— Ah. Rá-rá-rá. Eu contei, Julio e eu vamos passar duas semanas em Portugal só para ver
a família dele e tornar um pouco de sol antes do Natal.
— Você não tinha contado.
— Não seja boba, querida. Claro que contei. Você tem que aprender a prestar atenção. Mas
fique direitinha, sim?
— Sim.
— Ah, querida, só mais urna coisa.
— O quê?
— Estive tão ocupada que esqueci de comprar meus cheques de viagem.
— Ah, não se preocupe, você pode fazer isso no aeroporto.
— O problema, querida, é que estou indo para o aeroporto e esqueci meu cartão do banco.
Incrível, pensei, encarando o telefone.
— Uma chatice. Então achei que você talvez pudesse me emprestar algum dinheiro. Não
muito, só umas 200 libras para cheques de viagem.
Ela falou de um jeito que lembrava os mendigos pedindo esmola para tomar uma xícara de
chá.
— Estou trabalhando, mãe. Julio não pode emprestar?
Ela ficou cheia de melindres.
— Não posso acreditar que você seja tão sovina, querida. Depois de tudo o que fiz por
você. Dei-lhe o dom da vida e você não pode emprestar algumas libras para sua mãe comprar
cheques de viagem.
— Mas como vou entregar o dinheiro para você? Terei de ir ao caixa eletrônico e mandar
por um motoqueiro. Aí o dinheiro será roubado e vai ser um problema. Onde você está?
— Aah. Bom, por sorte eu não podia estar mais perto: se você atravessar a rua em frente ao
NatWest, nos encontramos daqui a cinco minutos. Obrigada, querida. Tchau!
— Bridget, onde diabos você está indo? - berrou Richard quando tentei sair de fininho. —
Já achou o menino do pinto queimado?
— Estou com uma pista ótima - respondi, e saí correndo.
Minha mãe chegou na hora em que eu esperava o dinheiro sair do caixa, novinho em folha,
e pensava como ela ia passar duas semanas em Portugal com 200 libras. Surgiu esbaforida e
escondida atrás de óculos escuros, embora estivesse chovendo muito.
— Ah, querida. Você é um amor. Muito obrigada. Tenho de correr senão perco o avião.
Tchau! _ disse ela, arrancando as notas da minha mão.
— O que está acontecendo? - perguntei. — Por que você estava por aqui, tão distante do
aeroporto? Como vai se arranjar sem o cartão do banco? Por que Julio não pode emprestar?
Como você vai fazer? Hein?
Ela pareceu assustada, como se estivesse prestes a chorar, mas logo fez um olhar distante e
uma magoada cara de princesa Diana.
— Tudo vai dar certo, querida - deu seu sorriso-coragem. — Cuide-se - acrescentou com
uma voz trêmula, me deu um abraço rápido, fez sinal para os carros pararem e atravessou a
rua.
19h. Acabo de chegar em casa. Certo. Calma, calma. Equilíbrio interior. A sopa vai ficar uma
delícia. Vou só cozinhar e amassar os legumes como está na receita e depois – para concentrar
o sabor - cozinhar aquela geléia azul da carcaça de galinha junto com o creme e a sopa está
pronta.
20h30. Vai tudo muito bem. Os convidados estão na sala. Mark Darcy, muito gentil, trouxe
uma garrafa de champanhe e uma caixa de chocolates belgas. Ainda não fiz o prato principal,
só cozinhei as batatas, mas logo termino isso. De todo jeito, a sopa é o primeiro prato.
20h35. Ai, Deus. Destampei a panela para retirar os ossos. A sopa está azul brilhante.
21h. Adoro meus adoráveis amigos. Tiveram uma atitude bem esportiva em relação à sopa
azul. Mark Darcy e Tom chegaram até a discutir o preconceito contra comidas coloridas.
Mark argumentou: por que não pode haver sopa azul, só porque não existe legume azul?
Afinal de contas, nuggets de peixe não são, originalmente, de cor alaranjada. (A verdade é
que, apesar de todo o meu esforço, a sopa ficou com gosto de creme cozido, como Richard o
Vil teve a gentileza de observar. Nesse momento, Mark Darcy perguntou qual era a profissão
dele e foi ótimo porque Richard o Vil acabou de ser demitido na semana passada por fraude
nos gastos.) Mas tudo certo. O prato principal vai ficar bem gostoso. Bom, vamos começar
cuidando do velouté de tomates-cereja.
21h15. Ai, Deus. Houve alguma coisa na mistura, algo de estranho: o purê de tomates-cereja
está espumoso e numa consistência três vezes maior. E as batatas cozidas deviam estar
prontas há dez minutos, mas estão duras como pedra. Talvez seja melhor eu colocar no
microondas. Aargh, aargh. Dei uma olhada na geladeira e não achei o atum. Que fim levou o
atum? Onde foi parar?
21h30. Graças a Deus. Jude e Mark Darcy vieram para a cozinha, me ajudaram a preparar
uma grande omelete, amassaram a batata meio cozida e fritaram como se fossem batatas
coradas. Colocamos o livro de receitas aberto em cima da mesa para vermos pelas fotos como
seriam as fases de preparo do atum grelhado. Pelo menos o confit de laranja vai ficar bom,
está com uma cara ótima. Tom disse que era melhor a gente não se preocupar com o creme
inglês ao Grand Marnier e beber o licor direto.
22h. Estou bem triste. Fiquei na maior expectativa quando as pessoas deram a primeira
garfada na sobremesa. Houve um silêncio embaraçoso.
— O que é isso, meu bem? - Tom acabou perguntando. — Geléia?
Apavorada, provei. Era, como ele disse, pura geléia. Conclui que, depois de gastar tanto
dinheiro, acabei servindo aos meus amigos:
Sopa azul
Omelete
Geléia
Sou um completo fracasso. Estrela do Guia Michelin de gastronomia? Pareço mais uma
marmiteira.
Pensei que as coisas não pudessem ficar piores do que estavam, depois da geléia. Mas,
assim que terminamos aquela horrenda refeição, o telefone tocou. Felizmente, atendi no
quarto: era papai.
— Você está sozinha? - perguntou.
— Não, está todo mundo aqui, Jude e tal. Por quê?
— É que gostaria que você estivesse com alguém ... desculpe, Bridget. As notícias não são
muito boas.
— O que houve? O quê?
— A polícia está procurando sua mãe e Julio.
2h. da manhã. Northamptonshire, cama de solteiro num quartinho da casa dos
Alconbmy. Argh. Tive de sentar e tomar fôlego enquanto papai ficou repetindo "Bridget?
Bridget? Bridget?" como um papagaio.
— O que aconteceu? - consegui perguntar.
— Os dois pegaram - acredito e espero, sem o conhecimento de sua mãe - muito dinheiro
de uma porção de gente, inclusive meu e de alguns amigos nossos. Ainda não sabemos quanto
foi mas, pelo que a polícia disse, sua mãe pode ser condenada a muitos anos de prisão.
— Ai, meu Deus. Foi por isso que ela viajou para Portugal com minhas 200 libras.
— Ela agora deve estar bem longe.
Vi o futuro surgindo como um horrível pesadelo: Richard Finch me chamando de De
Repente, Filha de Detenta do Boa Tarde!, e me obrigando a fazer uma entrevista ao vivo da
sala de visitas do Presídio Holloway antes de ser De Repente, Demitida ao vivo.
— O que eles fizeram?
— Parece que Julio usou sua mãe como testa-de-ferro, digamos assim, para pegar muito
dinheiro de Una e Geoffrey, Nigel e Elizabeth, Malcolm e Elaine (ai, Deus, os pais de Mark
Darcy). Muito, mas muito dinheiro para dar como entrada em apartamentos num condomínio
— Você não sabia que seus amigos estavam metidos nisso?
— Não. Acho que não me disseram nada porque ficaram sem graça de fazer negócio com
aquele cafajeste gomalinado que corneou um dos mais antigos amigos deles.
— E o que aconteceu?
— Os apartamentos nunca existiram. A poupança da sua mãe acabou, além da minha
aposentaria. Foi bobagem minha colocar a casa no nome dela, sua mãe penhorou. Bridget,
estamos falidos, sem recursos, sem casa e com sua mãe prestes a ser condenada como
criminosa.
Depois de dizer isso, ele não agüentou. Una veio ao telefone e disse que ia dar um pouco
de Ovomaltine para papai. Falei que chegaria lá dentro de duas horas mas ela falou para eu só
dirigir depois de me recuperar do choque, pois não se podia fazer nada, melhor ir na manhã
seguinte.
Desliguei o telefone e bati com a cabeça na parede, me xingando por ter largado os
cigarros na sala. Mas Jude apareceu com um copo de Grand Marnier.
— O que foi? - perguntou ela.
Contei tudo, bebendo o Grand Marnier de um gole. Jude não disse uma palavra e foi
procurar Mark Darcy.
— Sinto-me culpado - confessou ele, passando a mão no cabelo. — Devia ter sido mais
claro naquela festa dos Vigários e Vagabundas. Eu sabia que Julio tinha alguma coisa
estranha.
— Como assim?
— Ouvi quando falou no celular perto dos canteiros do jardim. Ele não sabia que eu estava
ouvindo. Se eu soubesse que meus pais também estavam envolvidos, eu... - ele balançou a
cabeça. — Agora lembro de minha mãe dizendo alguma coisa, mas fiquei tão distraído com a
simples menção da palavra condomínio que devo ter mandado ela ficar quieta. Onde sua mãe
está agora?
— Não sei. Em Portugal? No Rio de Janeiro? No cabeleireiro?
Ele começou a andar de um lado para outro na sala, fazendo perguntas como um grande
advogado.
— O que está sendo feito para encontrá-la? Qual é a quantia envolvida? Como descobriram
a fraude? O que a polícia sabe? Quem mais tem conhecimento do caso? Onde está seu pai?
Você gostaria de falar com ele? Você permite que eu vá junto? - foi uma cena muito sexy,
juro.
Jude apareceu trazendo café. Mark resolveu que era melhor achar o motorista dele para nos
levar ate Grafton Underwood e, por um segundo, tive a sensação completamente inusitada de
ser grata à mamãe.
Foi tudo muito dramático quando chegamos na casa de Una e Geoffrey: tinha Enderby e
Alconbury chorando por todo canto e Mark Darcy telefonava sem parar. Fiquei me sentindo
culpada, pois uma parte de mim estava - apesar do medo - adorando não ter de ir trabalhar e
viver uma situação totalmente diferente do cotidiano, com todo mundo podendo beber vários
copos de xerez e comer sanduíches de salmão como se fosse Natal. Foi a mesma sensação que
tive quando vovó ficou maluca e, depois de tirar toda a roupa, correu para o pomar de Penny
Husbands-Bosworth e precisou ser contida pela polícia.

QUARTA-FEIRA, 22 DE NOVEMBRO

55, 6kg (viva!), 3 unidades alcoólicas, 27 cigarros (muito compreensível, já que minha mãe
está sendo considerada uma criminosa), 5.671 calorias (ai, Deus, parece que meu apetite
voltou), 7 bilhetes de loteria (esse foi um ato de desprendimento, tentando recuperar o
dinheiro de todo mundo. Mas cheguei à conclusão de que, se ganhasse, não ia dar tudo para
eles), 10 libras gastas, 3 libras de lucro (preciso começar a partir de alguma coisa).

10h. Cheguei em casa, exausta por não ter dormido. Para completar, tenho de ir trabalhar e
ainda vou levar bronca por estar atrasada. Quando vim embora, papai parecia estar
melhorando: numa hora mostrava-se muito satisfeito porque Julio tinha provado que era um
salafrário e assim mamãe poderia voltar para casa e começar vida nova. Outra hora caía em
profunda depressão, achando que a dita vida nova ia consistir em visitas à prisão, aonde
chegaria de ônibus.
Mark Darcy voltou para Londres de madrugada. Deixei um recado na secretária eletrônica
dele agradecendo a ajuda e tal, mas ele não ligou de volta. Não posso culpá-lo. Aposto que
Natasha e todas as outras mulheres que ele conhece não servem sopa azulada para ele nem
viraram filhas de criminosa.
Una e Geoffrey disseram para não me preocupar com papai, pois Brian e Mavis vão ficar e
ajudar a cuidar dele. Fiquei pensando em por que sempre falam Una e Geoffrey e não
Geoffrey e Una, mas dizem Malcolm e Elaine e Brian e Mavis. Por outro lado, dizem Nigel e
Audrey Coles. Do mesmo jeito que nunca se diz Geoffrey e Una, jamais se diria Elaine e
Malcolm. Por quê? Por quê? Sem querer, fico pensando em Sharon e Jude daqui a muitos
anos, chateando as filhas, dizendo: "Você conhece Bridget e Mark, querida, que moram
naquela casa enorme em Holland Park e sempre passam as férias no Caribe." Isso mesmo.
Seria Bridget e Mark. Bridget e Mark Darcy. Os Darcy.
E não Mark e Bridget Darcy, pelo amor de Deus: horrível. De repente, me sinto mal por
estar pensando em Mark Darcy nesse contexto, como se fosse a governanta Maria com o
Capitão Von Trapp no filme A noviça rebelde e precisasse fugir para conversar com a Madre
Superiora que vai cantar Climb Every Mountain para mim.

SEXTA-FEIRA, 24 DE NOVEMBRO

56,7kg, 4 unidades alcoólicas (mas tomadas na presença da policia, por isso, nada a
declarar), 0 cigarro, 1.760 calorias, 11 ligações para o 1471 para saber se Mark tinha me
ligado.

22h30. As coisas estão indo de mal a pior. Achei que o único lado positivo do processo contra
mamãe tinha sido fazer com que Mark Darcy e eu nos aproximássemos, mas não soube mais
dele, desde que saiu da casa dos Alconbmy. A polícia acaba de vir ao apartamento pegar meu
depoimento. Comecei a me comportar como as pessoas que são entrevistadas na televisão
quando um avião cai no jardim delas, usando aqueles chavões de telejornais, de filmes
passados em tribunais e que tais. Acabei descrevendo minha mãe como tendo "estatura
mediana" e "tez clara".
Os policiais eram muito interessantes e tranqüilizadores. Ficaram até tarde e um dos
detetives disse que ia aparecer de novo no meu apartamento para ver como estavam as coisas.
Simpático mesmo, adorei.

SÁBADO, 25 DE NOVEMBRO

57kg, 2 unidades alcoólicas (xerez, argh!), 3 cigarros (fumados na janela da casa dos
Alconbury), 4.567 calorias (só de biscoitos recheados e sanduíches de salmão), 9 ligações
para o 1471 para saber se Mark Darcy tinha ligado.

Graças a Deus. Mamãe ligou para papai. Parece que disse para ninguém se preocupar, ela
estava bem, tudo ia bem, depois desligou de repente. A polícia estava na casa de Una e
Geoffrey interceptando a linha, como no filme Thelma e Louise, e disseram que ela estava
mesmo em Portugal, mas não conseguiram localizar a cidade. Gostaria tanto que Mark Darcy
ligasse.
Claro que ele deve ter ficado assustado com meus desastres culinários e por haver uma
criminosa na minha família, mas era muito educado para demonstrar isso. Claro também que
o fato de termos tido uma piscininha de plástico em comum na infância não significa nada
depois do roubo das economias dos pais dele pela vexaminosa mãe da malcriada Bridget. Vou
encontrar papai hoje à tarde como uma solteirona desprezada por todos os homens e não do
jeito que já tinha me acostumado: ao lado de um grande advogado, dentro de um carro com
motorista.
13h. Viva! Viva! Na hora em que ia sair de casa, o telefone tocou, mas eu só conseguia ouvir
um ruído. Depois, tocou de novo. Era Mark, falando de Portugal. Que gentileza e que
sagacidade. Ele passou a semana inteira em contato com a polícia, além de continuar
mantendo seu escritório de grande advogado e ter ido para Albufeira ontem. A polícia local
encontrou mamãe; Mark acha que ela vai ser inocentada porque está bem evidente que
ignorava o que Julio estava fazendo. A polícia conseguiu recuperar parte do dinheiro, mas
ainda não encontrou Julio.
Mamãe volta hoje à noite e terá de ir direto à delegacia para ser interrogada. Mark disse
para eu não me preocupar, tudo vai acabar bem e ele já está vendo se vai ser preciso pagar
fiança. Desligamos, sem dar tempo nem para eu agradecer. Fiquei louca para falar com Tom e
contar as maravilhosas notícias, mas lembrei que não era para ninguém saber do problema de
mamãe e, infelizmente, na última vez que falei de Mark Darcy para Tom, acho que disse que
ele é um horrível filhinho de mamãe.


DOMINGO, 26 DE NOVEMBRO
57,6kg, 0 unidade alcoólica, ½ cigarro (não fumo mais), Deus sabe quantas calorias, 188
minutos desejando matar minha mãe (número aproximado).

Dia horrível. Fiquei aguardando a chegada de mamãe ontem à noite, hoje de manhã e à tarde;
quase fui três vezes para o aeroporto de Gatwick. Acaba que ela chegou à tarde no aeroporto
de Luton, escoltada pela polícia.
Papai e eu estávamos nos preparando para consolar uma pessoa bem diferente daquela que
conhecíamos. Ingênuos, achávamos que, depois de tudo o que passou, ela teria se redimido.
— Me larga, seu pateta - ouvimos no saguão de chegada do aeroporto. — Agora estamos
em território britânico, tenho certeza que me conhecem e não quero que todo mundo me veja
destratada por um policial. Ih, sabe de uma coisa? Acho que deixei meu chapéu de palha
embaixo da poltrona do avião.
Os dois policiais fizeram uma cara de espanto enquanto mamãe - de casaco xadrez branco
e preto estilo anos 60 (provavelmente ela planejou para combinar com o uniforme dos
policiais), lenço na cabeça e óculos escuros – entrava na sala de bagagens seguida pelos
agentes da lei. Meia hora depois, saíram. Um dos policiais trazia o chapéu de sol.
Colocá-la no carro da polícia foi quase uma luta corporal. Papai estava chorando ao
volante do seu Sierra e eu tentava explicar para mamãe que ela precisava ir à delegacia saber
se ia pagar uma fiança, mas só o que ouvi sem parar foi:
— Não seja boba, querida. Chega aqui: o que você passou no rosto? Não tem um lenço
para eu limpar?
— Mãe - falei, enquanto ela tirava um lenço da bolsa e dava uma cuspidinha nele. — Você
pode ser condenada - avisei, com ela esfregando o lenço no meu rosto. – Acho melhor ir para
a delegacia com os policiais.
— Veremos, querida. Talvez amanhã, depois que eu esvaziar a cesta de legumes. Deixei
um quilo de batatas King Edwards lá e devem estar apodrecendo. Ninguém cuidou das plantas
enquanto estive fora e aposto o quanto você quiser como Una deixou o aquecimento ligado.
Só quando papai se aproximou e participou que a casa ia ser penhorada, incluindo a cesta
de legumes, ela ficou quieta e, muito mal-humorada, entrou no banco de trás do carro, ao lado
dos policiais.

SEGUNDA-FEIRA, 27 DE NOVEMBRO

57,6kg, 0 unidade alcoólica, 50 cigarros (isso mesmo), 12 ligações para o 1471 para saber se
Mark Darcy ligou, 0 hora de sono.

9h. Acabo de fumar o último cigarro antes de ir para a redação. Estou arrasada. Na noite
passada, papai e eu tivemos de esperar duas horas sentados num banco na delegacia. Até que
ouvimos uma voz pelo corredor.
— É, sou eu mesma. Apresento o De repente, solteira todas as manhãs! Claro que você
pode pedir. Tem uma caneta? Escrevo aqui? Autógrafo em nome de quem? Ah, seu danado.
Sabe que eu morro de vontade de experimentar um desses...
— Ah, você está aí, papai - constatou minha mãe, surgindo no corredor com um capacete
da polícia na cabeça. — O carro está lá fora? Sabe, estou morrendo de vontade de chegar em
casa e esquentar água para um chá. Será que Una lembrou de ligar o timer?.
Papai parecia abatido, assustado e confuso. Eu idem.
— Você foi libertada? - perguntei.
— Ah, não seja boba, querida. Libertada! Não sei! Disse ela revirando os olhos para o
detetive-chefe e me empurrando rumo à porta. Do jeito que o detetive estava corado e agitado,
eu não me surpreenderia se ela tivesse conseguido se livrar concedendo alguns favores
sexuais na sala de interrogatório.
— Mas o que houve? - perguntei, enquanto papai colocava todas as malas, chapéus, burro
de palha ( Não e uma graça?") e castanholas no bagageiro do Sierra. A seguir, papai ligou o
carro. Eu tinha resolvido. que ela não ia fugir dos problemas, varrer tudo para baixo do tapete
e começar a mandar em nós dois.
— Está tudo esclarecido, querida, foi apenas um mal-entendido. Alguém fumou dentro do
carro?
— O que houve, mãe? O que houve com o dinheiro das pessoas e os apartamentos do
condomínio? - perguntei. — Onde estão minhas 200 libras?
— Arre ! Foi só um probleminha com o projeto dos prédios. Você sabe que esses
funcionários portugueses às vezes são bem corruptos. Só querem saber de propina e gorjeta,
iguaizinhos à Winnie Mandela. Então, Julio devolveu todos os depósitos. Acabamos tendo
umas férias ótimas! O tempo estava um pouco nublado, mas ...
— Onde está Julio? - perguntei, desconfiada.
— Ah, ficou em Portugal para resolver o problema com o projeto.
— E como fica a minha casa? E a poupança? – indagou papai.
— Não sei do que você está falando. Não tem nenhum problema com a casa.
Mas, infelizmente, mamãe estava enganada. Quando chegamos em The Gables, todas as
fechaduras tinham sido trocadas e tivemos de voltar para a casa de Una e Geoffrey.
— Arre, Una. Estou exausta, acho que vou direto para a cama - disse mamãe depois de ver
as caras desapontadas, o lanche frio sobre a mesa e as fatias murchas de beterraba.
Papai foi atender o telefone e voltou dizendo:
— Era Mark Darcy.
Tentei não demonstrar que meu coração tinha pulado para a boca.
— Ele está em Albufeira. Parece que conseguiram pegar o... o cafajeste gomalinado ... e
recuperaram parte do dinheiro. Pode ser que a gente consiga The Gables de volta.
Quando ele disse isso, todos gritaram de alegria e Geoffrey começou a cantar "Ele é um
bom companheiro". Esperei que Una comentasse alguma coisa a meu respeito, mas ela não
disse nada. Era sempre assim. Exatamente na hora em que resolvo gostar de Mark Darcy,
todos param de querer me juntar a ele.
— Aceita um pouco de chá no leite, Colin? – ofereceu Una, passando para papai um bule
de chá decorado com um friso de flores de damasco.
— Não sei ... não entendo por que ... não sei o que pensar - disse papai, preocupado.
— Olha, não precisa mais se preocupar – interrompeu Una, com um ar calmo e controlado
que não era comum nela. De repente a vi como a mãe que eu jamais tive. — Coloquei muito
leite na sua xícara. Vou tirar um pouco e completar a xícara com água quente.
Quando finalmente saí da confusão, peguei a estrada para Londres a mil por hora, fumando
sem parar, num ato de rebeldia insensato.

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